Diário das minhas leituras/31

21/06/2019 – TANJA DÜCKERS

Li um conto dessa alemã, que é das modernas e contemporâneas, área a que não me dediquei ainda como deveria. Em todo caso, em “Café Brazil”, eu tive a certeza de que as mulheres realmente já estão ocupando lugares até então exclusivamente masculinos. Agora, também as mulheres já são capazes de transformar o amor numa coisa tão repulsiva como os homens. Alvíssaras.

23/06/2019 – BRUNO SCHULZ

Sempre tive muita curiosidade sobre esse escritor e agora tive a oportunidade de ler um conto seu pela primeira vez. Entretanto, “Lojas de canela”, que inclusive dá nome a um livro dele e que, por isso, imagino ser bem expressivo da sua produção, foi um conto muito difícil para mim. Passei a ter algum medo dele.

23/06/2019 – MARY LAVIN

Quanta beleza junta no conto “O fundo da terra e o fundo do mar”, da irlandesa Mary Lavin! É sobre uma comunidade de pescadores, dois em especial, pai e filho, que encontram o corpo de outro homem no mar e precisam agora voltar à terra para dar a infausta notícia à viúva, uma mulher “da terra”, que tinha sempre medo de que acontecesse isso mesmo que havia acontecido. Os homens, no entanto, têm uma surpresa ao não encontrar a mulher em casa e depois descobrem que ela estava junto com ele no mar e que queria estar junto com ele mesmo, para estar próximo ao pescador se a morte viesse, como veio. O corpo do homem, que havia sido deixado na areia, é depois colhido pelo mar e volta às profundezas. E tudo isso descrito com muita beleza, com falas, ritmo e estruturas muito próximas à da poesia. Lindo.

23/06/2019 – ANNA-KARIN PALM E INGER EDERFELDT

Anna-Karin Palm, com “O quarto da Anna”, e Inger Ederfeldt, com “Verão”, são duas escritoras suecas que tive a felicidade de ler pela primeira vez. Ambos os contos são bastante “ambientais” e existenciais, o primeiro em relação a uma idosa que, ao enviuvar, experimenta um despertar para a vida, e o segundo sobre uma adolescente que descobre por meio de um estranho, ferido e tratado na sua casa, sentimentos que talvez ainda não supunha existirem. São exatamente o tipo de conto que eu imagino que se faz em uma terra que já resolveu boa parte dos seus problemas sociais. Ah, os escandinavos são tão lindos!

23/06/2019 – MOSAICO DE HISTÓRIAS – UMA ANTOLOGIA DO CONTO EUROPEU

Essa é uma interessante, mas muito desigual coletânea de contos. Dela fazem parte contistas de todos os países que, pouco tempo antes da publicação do livro, haviam formado a União Europeia. Alguns dos países mereceram dois contos, sem nenhuma justificativa visível para isso. Temos contos que vão desde o medieval Boccaccio, representando a Itália, até a modernosa Tanja Dückers, pela Alemanha. Talvez fosse mais interessante juntar escritores modernos de todos os países. O livro também me pareceu bem desigual em relação à qualidade dos contos, pois muitos não caíram no meu gosto pessoal e houve até um que resolvi abandonar no meio. Entretanto, há ali também “O horla”, do Maupassant, em sua primeira versão, que é também a que eu mais gosto, e há esse extraordinário Karel Capek, com “O poeta”, como bons exemplos dos contos excelentes do livro. Tive também algumas boas surpresas, como foi o caso da irlandesa Mary Lavin, com “O fundo da terra e o fundo do mar”, um conto que parece que vai arrebentar de tanta poesia concentrada, e de duas maravilhosas suecas, Anna-Karin Palm (“O quarto da Anna”) e Inger Ederfeldt (“Verão”), contos bastante “ambientais” e existenciais, cheios daquela beleza que somente os escritores escandinavos são capazes de colocar na escrita. Outro bom momento vem com o português João de Melo, também contemporâneo, e o seu “O vinho”, um conto bastante machadiano, e do qual eu só não gostei mais porque fiquei com o desejo de que fosse estendido em um trabalho maior. Também as considerações do holandês Cees Nooteboom em “O rapto da Europa” são interessantes, mas está bem claro que não se trata de um conto, e sim um ensaio, ainda que com certas liberdades. Dos demais, não houve quem me chamasse muito a atenção, à exceção daqueles que me chamaram a atenção por causa da grande dificuldade que tive em lê-los, principalmente o inglês Bill Broady e o seu conto “Na neblina”.

25/06/2019 – BENITO PÉREZ GALDÓS

Uma filosofia do transporte coletivo, em trecho do conto "A novela do ônibus", do espanhol Pérez Galdós:

"Entre os mil aborrecimentos da vida, nenhum sobrepuja o estar uma dezena de pessoas a olhar umas para a cara das outras, sem dizer palavra, contando reciprocamente as suas rugas ou sinais, e observando um ou outro acidente, no rosto ou no gesto. É singular este rápido contato com pessoas desconhecidas e que provavelmente não mais tornaremos a ver. Ao entrar, já encontramos alguém; outros sobem depois de já estarmos ali; uns partem, deixando-nos, e por último também nós descemos. É uma paródia da vida humana, em que o nascer e o morrer são como as entradas e saídas a que me refiro, pois vão renovando sem cessar, em gerações de viajantes, o pequeno mundo existente ali dentro. Entram, saem; nascem, morrem... Quantos passaram por aqui antes de nós? Quantos virão depois?"

"E, para que a semelhança seja ainda mais completa, há também um mundo pequeno de paixões em miniatura, dentro daquela espécie de caixa. Muitos que ali vão se nos afiguram excelentes pessoas; agrada-nos o seu aspecto e é com desgosto que as vemos sair. Com outras, pelo contrário, antipatizamos assim que as vemos; aborrecemo-nos delas durante alguns minutos, examinamos com certo rancor os seus caracteres frenológicos e sentimos certo prazer ao vê-las sair. O veículo, no entanto, como um arremedo da existência humana, vai seguindo, recebendo e largando gente, uniforme, incansável, majestoso, insensível ao que se passa no seu interior; sem que, pouco ou muito, comovam-no as mil refreadas paixões de que é mudo teatro".

25/06/2019 – O CONTO ÍDICHE

Estou lendo esse calhamaço voltado ao conto ídiche (quase 500 páginas) e vou comentá-lo aos poucos. Há uma introdução bastante extensa, mas cuja leitura é absolutamente necessária. Trata-se de um tipo de literatura que até então eu praticamente ignorava, com exceção dos contos do Isaac Bashevis Singer. Uma realidade e um povo dos mais fascinantes que convém conhecermos. O primeiro conto do livro é, até agora, aquele de que mais gostei. Pelo que li, o lituano Aizik Meier Dick não é apontado muito como um “precursor do conto ídiche”, mas sim alguém que “pavimentou o caminho” para que pudessem surgir os primeiros escritores do gênero. Seja como for, a leitura de “Dois forasteiros chegam à cidade” é das mais saborosas. É uma daquelas burlas que, desde Boccacio, Cervantes e as novelas picarescas, tanto divertem o leitor. Tudo, evidentemente, em se tratando de “conto ídiche”, voltado a uma moral judia, mas é interessantíssimo o modo como se faz, através da comicidade do conto, uma crítica feroz contra certos comportamentos de alguns judeus, que foram, afinal, os próprios responsáveis pela burla em que caíram. Depois vêm dois contos do Mêndele Moher Sforim, também lituano. Esse sim é apontado como precursor do conto ídiche, a ponto de ser chamado de “avô” por aqueles que influenciou no gênero. Mas os contos dele não me chamaram muito a atenção. Outro dos mais importantes nomes da literatura ídiche é o de Itzhok Leibusch Peretz, polonês que comparece com quatro contos nessa seleção. Alguns dos seus contos no livro podem ser vistos como “piedosos”, passando uma moral positiva e de esperança para o judeu, no cumprimento dos seus ritos religiosos. O que mais gostei é “Mêndel Braines”, porque ele expõe o quanto a mulher judia podia se sacrificar, até o fim das forças, em favor do marido e dos sonhos dele. O outro contista que já li é Mordehai Spektor, com o curiosíssimo “Um banquete para os pobres”, que, após a inusitada “greve” dos pobres contratados para um casamento judeu, conforme os ritos obrigatórios, faz uma defesa de como deveriam ser celebrados os casamentos entre esse povo. Foi o que li até agora.

26/06/2019 – O CONTO ÍDICHE 2

Scholem Aleihem foi o próximo nome que li. O primeiro conto dele é “Se eu fosse Rothschild”, que tem uma interessante construção a partir de um monólogo, além da reflexão sobre o impacto do dinheiro e a possibilidade de, com ele, resolver todos os problemas dos judeus e, quiçá, do mundo. O escritor parece gostar dos monólogos, pois também o usa em “Às pressas”, onde o conto é uma carta. Um trecho solto, que não concorre para o tema desse conto, mas que achei bem divertido:

“Eu próprio pesquei um bocado do francês e já entendo um pouco do idioma. Por exemplo: quando me dizem “Parlez-vous français?” (“Como tem passado de saúde?”), respondo: “Merci, bonjour” (“Louvado seja o nome do Senhor!”)”.

Há ainda o conto “Asilo dos velhos”, bastante característico da pertinácia com o que judeu corre atrás dos objetivos para a sua comunidade. Depois, há um conto de Leon Kobrin, “”Doutor Iahentchik”, que conta uma história de amor desencontrado que poderia acontecer, com ligeiras variações, em toda religião ou até na ausência delas. Depois vem esse fabuloso David Pinski, com três contos magistrais. Foi o escritor que mais me entusiasmou até o momento. Em “O despertar”, fala-se sobre a descoberta do amor em um jovem que só sabia viver para os estudos da sua religião. Tudo muito bonito e sensível. “Ele vive!”, por sua vez, marca a primeira aparição do nazismo e seus nefastos crimes contra os judeus. Nessa trama, tirada ao que parece de uma notícia, uma comunidade judaica é fuzilada sob a assistência do seu rabino, que fora enterrado até o pescoço e ali permaneceu. Escrito com muita vivacidade e com os detalhes que só um outro judeu seria capaz de atinar e descrever. Depois desse conto impactante, há ainda “Ela era feia”, conto que em que não há nenhuma alusão direta ao judaísmo. Como o nome revela, trata-se de uma mulher feia, mas feia só de cara, porque o corpo era muito belo. Os homens a seguiam pela rua, mas, quando a alcançavam e viam o seu rosto, recuavam assustados. Pinski traça toda a psicologia da mulher ao lidar com esses casos, primeiro se esforçando para não ser alcançada, depois ocultando o rosto, e depois ainda tentando ficar indiferente. Ela morava próxima a uma movimentada rua, onde passavam trens pela manhã. E então, dá janela do seu quarto, à distância dos homens que passavam de trem, mas que ainda a podiam ver, ela pensa em um meio de resolver a sua solidão. Na verdade, foi tudo meio por acaso. Ela estava de camisola à janela, um homem que pegava o trem passou, viu-a de longe, mandou um beijo, coisa e tal. O homem, àquela distância, não viu a sua feiura. Então ela toma coragem e tira também a camisola, fica toda nua. E então os homens que passavam rapidamente de trem olham, e se espremem na janela para ver, mas o trem passa rápido e eles se lamentam. De toda forma, levarão a imagem daquele corpo o resto do dia, e a esperarão no dia seguinte, e ela própria se lembrará do efeito que causou, dos olhares, da curiosidade, da fome, e tinha tudo então para estar feliz com a situação, mas ela termina o conto escondendo a cabeça no travesseiro e chorando amargamente. Um conto muito bem escrito, as variações psicológicas da personagens são detalhadas e perfeitamente factíveis. Parece que o fato de nascer na Rússia, onde Pinski nasceu, exerce uma influência que transcende as religiões.

27/06/2019 – MÁRIO BENEDETTI

Um ligeiro comentário que fiz a respeito de “A borra de café”, do Mário Benedetti, livro que eu só cheguei a ler porque, antes, havia lido o fantástico “A trégua” e achado que alguém que escreve uma coisa dessas por certo há de ter muito mais coisas boas espalhadas por todos os seus escritos:

“Não é tão arrebatador quanto "A trégua" e, ao contrário dela, você também não deseja matar o autor ao final da leitura. Mas é um livro bom, bonito e atraente, que se lê rapidamente. Tem as características de um romance de formação, pois reconstrói a infância do personagem até a vida adulta, e isso é feito com algum lirismo e boas doses de sonho e mistério”.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 27/06/2019
Código do texto: T6682770
Classificação de conteúdo: seguro