Diário das minhas leituras/34

16/07/2019 – CONTOS HÚNGAROS

Que coisa mais linda e triste e comovente é “Contos húngaros”, uma raríssima edição da Gleba, editora de Portugal, editada em 1944 e que tive a felicidade de pegar emprestado na biblioteca de Curitiba! Um livro maravilhoso. Acho apenas que o primeiro conto, “Koszibrovszky, homem de negócios”, de Kálmán Mikszáth, poderia ser substituído por algum outro menor, pois todos os demais são mais ou menos do mesmo tamanho, ao passo que esse, de tão grande, está muito mais para novela. É uma história sobre um sujeito que tenta passar para frente uma fazenda e para isso monta uma grande farsa para enganar o futuro comprador, mas acaba fisgado pela sobrinha dele. Nos demais contos, o que se sobressaiu para mim foi uma acentuada nota existencialista, seja discutindo abertamente questões como “o direito a se suicidar”, em “A última lição”, de Aurél Kárpáti, ou, mais comumente, através de trajetórias de vidas que evidenciam, se não a falta de sentido, ao menos a quase impossibilidade da felicidade. Em verdade, até há a “felicidade”, pois um dos contos, de Dezső Kosztolányi, se chama “Um homem completamente feliz”, mas essa é uma felicidade que nasce do puro isolamento do mundo cotidiano, que não o valoriza e tampouco o compreende. A incompreensão, aliás, é uma marca comum para esses personagens, como se vê em “Elvira” de Lajos Zilahy, em que a personagem chega ao ponto de criar na imaginação outros pais para si, bem mais amáveis. O comum então é fugir das pessoas, como Elvira foge, ao mesmo tempo em que anseia por alguma forma de afeto. O irônico é que quando lhe aparece uma oportunidade, e ela tem então a chance de ser feliz, já é tarde demais: ela já havia decidido acabar com tudo. O personagem de “Solidão”, de A. Bonyi havia passado por uma experiência traumática e passou a sentir a necessidade de companhia, só que ele conseguiu, teve a sua amada, a sua “enfermeira”, mas também essa não foi uma felicidade que se consolidou, pois, num momento de “fraqueza” dela a solidão voltou e, com ela, a tragédia que ele tanto temia. Há casos em que são os outros que vêm nos procurar e oferecer algo que pode ser visto como a felicidade, mas, se nos tiram do nosso ambiente, é possível que a adaptação não venha e, pior, que sequer consigamos nos encontrar outra vez no momento da volta, como demonstra Ferenc Molnár em “O boneco de neve”. Ah, e aquelas vezes em que o bem-estar não é possível desde cedo, porque as condições financeiras não permitem! O mais comovente conto do livro é “A última vontade”, de Jószef Nyirö, a mostrar o quanto a dor e a tragédia, que por si só já são obstáculos para a felicidade, se tornam ainda maiores se, a elas, se ajunta a falta de dinheiro. Nada mais natural que, em algum momento, se chegue a um desespero como o que é mostrado em “O pão”, de Lajos Bibó. Não que não haja esforço. Há esforço e às vezes o esforço vira sacrifício, sacrifício que, nem por isso, recebe alguma compensação. “O paraíso das mães”, de Kálmán Csathó”, demonstra vivamente tudo o que uma mãe é capaz de fazer para conseguir a felicidade dos outros. Mas até as mães, quem diria, podem ser um obstáculo à felicidade, como é explorado por Zsolt Harsányi em “Abaixo a tirania!”. Mas não poderia faltar também o problema do coração, que tão bem incorpora o ideal de felicidade, mas que, uma vez frustrado ou mal resolvido, pode afastar uma pessoa dela definitivamente. Há memórias muito duras de se suportar e das quais se quer fugir, como em “O pato bravo” de Sándor Hegedűs. Há aqueles casos em que achamos que temos o amor e a felicidade nas mãos, mas sem saber que o outro lado, a outra metade, está com outros planos, e talvez até se divirta às nossas costumas, com uma crueldade que é exposta em “Uma mulher singular”, de Ferenc Herczeg, e “Noite no bar”, de Zoltan Szytnyai, no que se refere às mulheres, e em “A carta que não chegou a ser enviada”, de C. Koncz, em que a maldade é toda masculina. Nem por isso, nem por todo o mal que se pode conseguir, deixa-se de sonhar, deixa-se de admirar “A mulher bela”, como no conto de Tibor Zsekely, mas mesmo isso pode ser um perigo, para nós, para a mulher bela, quem sabe se para a própria humanidade. Ao fim de tudo, fica a impressão de que é, ou de que um dia foi, muito difícil, a despeito de toda a beleza local, ser feliz lá na Hungria.

23/07/2019 – ANTOLOGIA DO CONTO ULTRAMARINO

E de repente você descobre essa pérola: uma edição portuguesa só com contos feitos nas colônias de Portugal na África e na Ásia. São dois contos de Cabo Verde, dois de Guiné, dois de São Tomé e Príncipe, oito de Angola, sete de Moçambique, dois do “Estado Português da Índia”, dois de Macau e, por fim, dois de Timor-Leste. E não se trata de obra para despertar um sentimento impassível do tipo “ah, que legal, lá também se faz literatura”. É obra com vários contos bons que certamente figurariam em uma lista do tipo “Grandes contos da literatura mundial”, se essas listas fossem realmente “mundiais”, em vez de francesas e inglesas. É interessante que o livro, tanto quanto possível, preferiu abranger escritores que nasceram nessas colônias portuguesas, e não em Portugal. Quando se trata de escritor português, não é também nunca um mero viajante, mas alguém que viveu nas colônias e foi transformado por elas. Como não podia deixar de ser, os conflitos e as interações com os africanos e os asiáticos marcam presença em boa parte dos contos. Embora eventualmente alguma frase mais problemática possa ter escapado, pareceu-me que o conteúdo é largamente simpático às etnias não portuguesas, que geralmente eram também as escolhidas para “estrelar” os contos. Os contos de que mais gostei foram “Carabina de precisão”, de Manuel Joaquim Reis Ventura, português que escreveu por Angola e fez um conto sobre o terrorismo no país em 1961, sem deixar de ser, também, um conto de amor; “Jangô”, de Guilherme de Melo, natural de Moçambique, que expõe a miséria lado a lado com a esperança, ainda que, no fim de tudo, só reste um triste conformismo; “Papá, cobra e eu”, de Luis Bernardo Honwana, também natural de Moçambique, em um conto muito característico tanto do ambiente como da cultura local, sem deixar de acreditar em uma redenção (“Meu filho, tem de haver uma esperança! Quando um dia acaba e sabemos que amanhã será tudo igualzinho, temos de ir arranjar forças para continuar a sorrir e continuar a dizer ‘isso não tem importância”); “Numa aldeia verde e florida”, de Alberto de Menezes Rodrigues (natural do Estado Português da Índia), em outro conto de miséria, às raias do suicídio, mas ainda com a vitória da ternura, do sorriso e da esperança; “Os filhos de Jó”, de Vimala Devi (natural do Estado Português da Índia), em que a medicina “científica” se bate com a tradição local, em meio a uma gente pobre, mas que tinha muito presente as suas noções de dignidade; e “O calvário de Lin Fong”, de Deolinda da Conceição (nascida em Macau), onde há também a miséria, mas também uma promessa de dias melhores, em meio a um choque de culturas que leva ao amor, mas não à redenção. “O enterro de Nhã Candinha Sena”, de Antônio Aurélio Gonçalves, natural de Cabo Verde, também é bem interessante. Também me foram agradáveis “Balanguinho”, de Baltasar Lopes (Cabo Verde), “O baú de folha”, de Fernando Marcelino dos Santos Reis (português de São Tomé e Príncipe), conto que encerra morais interessantes sobre a avareza, “Maiá Póçon”, de José Maria Viana de Almeida (São Tomé e Príncipe), o existencialista “Um rapaz de pouca sorte”, de Mário Antônio (Angola), “A praga”, de Óscar Ribas (Angola), outra grande peça e que revela um pouco das superstições locais, “Nhangau – Curandeiro Negro”, de Rodrigues Júnior (português de Moçambique), que expõe conflitos entre as crenças locais e o cristianismo. Alguns, é verdade, me foram um pouco difícil, principalmente os primeiros de Angola. Mas nem por isso se deixa de ganhar muito com a experiência. De maneira geral, nota-se a vida mais humilde dos personagens e, com frequência, a sua miséria, mas é bastante significativa a presença da esperança permeando os contos. O livro é de 1972 e buscava ressaltar uma literatura que andava esquecida em Portugal. Imagine no Brasil, onde ela não foi sequer lembrada. É muito bom que haja um Mia Couto, mas isso deveria estimular a redescoberta de todos os outros que andaram escrevendo maravilhas nas colônias portuguesas.

24/07/2019 - MANUEL JOAQUIM REIS VENTURA

Quero falar um pouco mais sobre o conto “Carabina de precisão”, desse português de Angola. A história fala sobre um atirador que, escondido de cima de uma árvore com a tal de carabina de precisão, atira unicamente nos alferes das tropas portuguesas que avançam em meios aos conflitos no país em 1961. O homem é, ele próprio português, mas largou tudo, deixou o exército e mudou de lado depois que viu sair da sua casa, tendo um caso com sua mulher, um... alferes. Então ele se vinga unicamente dos alferes, mas ao mesmo tempo está a serviço dos nativos. Ele reconhece um alferes à distância, tem todo um método de análise de gestos e comportamentos que faz com que nunca se confunda. Durante um conflito que se mostra extremamente difícil aos nativos, cercados que estão pelos portugueses, ele tem um momento de vacilação quando reconhece, no exército inimigo, um dos seus colegas. Acaba deixando a carabina escapar das suas mãos, ela dispara, acerta-lhe a cabeça e morre. Concluem que foi suicídio.

24/07/2019 – ANNA SEGHERS

Escritora alemã do pós-guerra. Interessante o conto, imagino que com muito de confessional, “O passeio das meninas mortas”. Nele, a personagem, em primeira pessoa, meio que tem um vislumbre das colegas que conheceu na infância, antes da Primeira e da Segunda Guerra Mundial. Agora, porém, ela já tem o conhecimento do que veio depois, de como elas se comportamento por ocasião do advento do Nazismo, de tudo o que o destino reservou para elas (frequentemente, mortes trágicas), e por isso o olhar que lança ao passado se torna um olhar de espanto por perceber que nada havia no comportamento delas todos que sugerisse o que ainda estava por vir. Mesmo os afetos daquela época se transformaram em separação e abandono no momento em que era preciso decidir de que lado se estava. Cada pessoa iria se comportar de um jeito durante o tempo de Hitler, mas o que se percebe, avaliando como elas eram e como agiam na sua juventude, é que tudo aquilo podia ser muito diferente e que a guerra desabou sobre eles e estragou tudo. Talvez, é claro, as pessoas já tivessem certas inclinações, mas elas não iriam se manifestar da mesma forma se não fossem aqueles anos de pesadelos, quando muitos destinos foram alterados, quando não interrompidos, sem que houvesse a menor lógica por trás de toda a violência.

25/07/2019 – ANTOLOGIA DO MODERNO CONTO ALEMÃO

Comecei ontem esse livro. “Moderno” era o moderno em 1966. São os primeiros escritores alemães a se sobressaírem na literatura após a Segunda Guerra. E lá está nela, inevitável, marcando o tema de quase todos os contos. “A refugiada”, de Elisabeth Langgässer tem como mote isso que o título sugere, ou seja, o abrigo de uma refugiada judia, durante a guerra, na casa de uma mulher alemã. Mas o conto está longe de idealizar a figura da família que aceitava abrigar um refugiado nessas condições. Mesmo esse gesto de aparente bondade pode, afinal, não ter sido motivado pela bondade, e depois de algum tempo virão a tona os interesses individuais de cada um, a separar os destinos. “Sua cara alegre”, conto de Paul Schallück, é uma ótima peça. Um sobrevivente da guerra retorna, alquebrado, para a sua aldeia natal, e é todo entusiasmo pelo que essa volta representa e pela possibilidade de encontrar novamente a sua mãe e a sua família, mas é de tal modo atingido pela frieza dos seu compatriotas (apesar da enfermeira que o acolhe) que acaba por perder o sorriso que o caracterizava. Depois desse conto, vem o que mais gostei até agora, “Reservado”, de Paul Hühnerfeld. Supostamente, esse não tem como tema a guerra, apesar de se tratar de um encontro de ex-colegas no período imediato ao término do conflito. Entretanto, como o tema do conto é, conforme lembrado na introdução do livro, a “culpa não expiada”, pode ser que tudo não passe de uma metáfora sobre o comportamento alemão no período que se seguiu à guerra. Na história, um dos personagens evoca a trágica história de um professor que foi por ele e seus colegas de tal forma hostilizado durante as suas aulas que acabou, depois de provocado, reagindo e agredindo um aluno. Depois de voltar para casa, esse professor se matou. O agora adulto que evoco essa história era o único a sentir e a sofrer aquela culpa, durante vinte anos. Ele esperava que os seus colegas pudessem compartilhar daquele sentimento, que já não conseguia carregar sozinho. Entretanto, os seus colegas não consentem. Eles se recusam a pensar e a assumir a culpa por aquilo que fizeram, chegam até a rir, porque realmente não veem possibilidade de se enxergarem como assassinos daquele professor. E eu me pergunto até que ponto isso não pode ter relação com o alemão que, pela sua ação ou omissão, deu a sua contribuição para o massacre dos judeus. Depois, li “Serões musicais”, de Reinhard Baumgart, em que a música aparece como refúgio seguro contra o que acontecia no mundo, mas isso era apenas uma ilusão, porque os barulhos do mundo também chegam àquele quarteto e lhe roubam o membro judeu.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 29/07/2019
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