Diário das minhas leituras/38

23/08/2019 – JOÃO UBALDO RIBEIRO

Como só se fala na Amazônia, aqui e lá fora, lembrei-me dessa passagem do João Ubaldo Ribeiro em “Os índios de Berlim”, uma das divertidíssimas crônicas de “Um brasileiro em Berlim”:

“Uma coisa eu aprendi, nesta minha temporada berlinense: só apareço outra vez na Alemanha depois de frequentar um curso sobre a Amazônia e ler pelo menos uma bibliografia básica sobre os índios brasileiros. As coisas aqui podem ficar difíceis para brasileiros como eu, que não entendem nada de Amazônia e de índios. Ao serem informados dessa minha ignorância, alguns alemães ficam tão indignados que desistem imediatamente de conversar comigo. Outros, talvez a maioria, se recusam a acreditar em algo tão inaceitável, não ouvem minhas negativas e vão em frente, num diálogo às vezes um pouco esquizofrênico.

— Deve ser fascinante a Amazônia, não é?

— Deve ser, sim. Certamente que é.

— Compreendo o que você quer dizer. Para você, imerso na Amazônia, é difícil ter a mesma visão fascinada que um estrangeiro. Para quem está de fora, contudo...

— Não é bem isso, é que eu nunca vi a Amazônia.

— Você mora fora do Brasil desde criança?

— Não, moro no Brasil mesmo. Mas nunca vi a Amazônia.

— Meu Deus do céu, o que é que você está me dizendo, que coisa horrível!

— Sim, bem... Eu...

— Eu não sabia que a devastação havia chegado a esse ponto, que horror! Você não chegou a ver a Amazônia! Quando nasceu, ela já tinha sido em grande parte destruída, queimada, arrasada! Você não acha isso um terrível crime contra a Natureza, o planeta?

— Sim, claro que acho. Mas não é isso, é que eu...

— Você não concorda em que é preciso conter de qualquer maneira a devastação da Amazônia?

— Concordo, concordo.

— Eu não esperava outra atitude de sua parte. Realmente é uma coisa terrível. Helga, venha cá, escute aqui o que este amigo brasileiro está me contando sobre a Amazônia, ninguém melhor do que um brasileiro para nos mostrar a verdade sobre a Amazônia, e o que ele está me contando é de estarrecer, é muito pior do que nós pensávamos! Imagine que ele nasceu e se criou no Brasil e não chegou a ver a Amazônia! A destruição já se estendeu a tal ponto que não deu para ele ver mais nada! Conte aqui, meu caro amigo, conte aqui para a Helga o que você acaba de me contar, realmente é terrível Helga, ele me disse que..."

23/08/2019 – O CONTO FEMININO 5

Continuando com o volume “O conto feminino”, reunindo apenas brasileiras mulheres que escreveram até o ano de 1959, cheguei aos primeiros contos “regionais”. Um deles é “Uma história de Lampião”, título que já explica o conteúdo, escrito por Maria Wanderley de Meneses, mais uma escritora desconhecida de quem não consegui apurar sequer as datas de nascimento e morte. Parece que é uma pernambucana que tem “um pouco de sangue holandês”, como diz a introdução do conto, e que era chegada mesmo da literatura regionalista. Em seguida vem “Potranca”, de Mercedes Dantas (-1982), que é mais urbano do que regional, ainda que seja uma “urbanidade” do interior. Notei alguma inspiração machadiana, seja no encadeamento das frases ou no diálogo com o leitor. É a história de uma mulher que preferia a liberdade ao casamento, mas que, no fim das contas, aceita se casar com um homem bem de vida. Depois dela, vem a gaúcha Morena Flores, outra mulher que, em rápida pesquisa, não consegui identificar no Google. A introdução faz referência ao Simões Lopes Neto, dizendo que seguia a trilha aberta por ele, também a que foi percorrida por Darcy Azambuja, de quem não tenho boas lembranças. O conto dela se chama “O espelho de Narciso” e também não é o que eu chamaria de regional, apesar do parentesco. É o conto de uma professora que, a partir de uma das suas alunas, rememora a sua própria trajetória estudantil, que, em verdade, era marcada pela pregação religiosa. Interessante a situação em que ela, como aluna, teve que responder se, em uma escolha hipotética, negaria a sua fé ou aceitaria ser torturada e disse que não sabia, só vivendo para saber, para o pasmo de todos os outros, talvez menos sinceros do que ela. A religião também aparece em “Nhá Colaquinha, cheia de graça”, de Nair Lacerda (1903-1996), em que uma mulher, simples e ingênua, vê o seu próprio filho tornar-se padre, apesar das dificuldades, e celebrar uma missa ao voltar para a sua aldeia, depois de ter estado na Europa e lá escapado dos horrores de guerra. Conto bonito. Por fim, o último conto que li nesta “leva” foi o de Ondina Ferreira (1909-2000), “Pássaro assustado”. Gostei bastante e achei bem atual. A mãe de uma criança resolver sair de casa para viver uma paixão com outro cara e, a partir de então, o pai da menina a proíbe de manter qualquer tipo de contato com ela. Em verdade, ele criou um verdadeiro terror na cabeça da menina, que passou a viver uma vida de constante medo e tensão, mas, de fato, não se encontrava mais com a mãe. A mãe aceitou humilde e tristemente a sua condição. Essa mãe tinha uma amiga cuja filha era amiga da filha dela. Essa mãe também vai até a casa da amiga e pede que essa outra menina passe um recado à sua filha. Quer vê-la. Mas não quer “se encontrar” com ela, sabe que isso o pai não deixa, quer realmente “vê-la”. Pede que fique na frente de uma sorveteria em determinado horário, porque assim ela poderá vê-la quando passar de ônibus. A filha reluta em topar isso, tem um medo terrível do pai, diz que o pai vai bater, que o pai vai matar. Por fim, concorda em ir, mas avisando que sequer olharia para a mãe. Ela se deixa ficar olhando para qualquer outro lugar, enquanto a mãe passa de ônibus e se esforça para ver o máximo que puder antes que o motorista se afaste. Um momento comovente. “Pássaro assustado”, é claro, é como essa menina parecia, desde que a situação dos pais chegou a esses extremos. Temia-se até que pudesse ocorrer alguma tragédia, embora o pai fosse mais um pobre coitado do que um homem cruel. Porém, o pai um dia, talvez para fugir de vez da mãe, leva a filha para morar em outro lugar e perde-se o contato com a família de sua amiga. As duas meninas só vão se encontrar outra vez depois de grandes, por acaso. E então somos informados: os pais delas se acertaram e estavam juntos de novo.

24/08/2019 – O CONTO FEMININO 6

Conclui a leitura com os quatro contos que faltavam. Rachel Crotman (1907-2007) apresenta “O bloco”, uma cena de carnaval, com vários personagens e certos “estragos” em seus relacionamentos provocados pela festa. Depois vem a Rachel mais famosa, a Rachel de Queiroz, com “Metonímia, ou a vingança do enganado”. É interessante que esse texto foi classificado pela própria Rachel como crônica, mas foi visto pelo organizador do livro (R. Magalhães Júnior) como conto, a ponto de ser publicado num livro voltado só a esse tipo de gênero. Creio que há uma compreensão equivocada do que venha a ser crônica, pois se trata um gênero independente que, em seu bojo, vale-se de vários outros gêneros, literários ou não, e isso inclui o conto. O texto da Rachel é exemplar na capacidade de misturar outros gêneros na feitura da crônica. Não há como negar, pelo próprio posicionamento do narrador, que o início desse texto é típico da crônica. Chama a atenção também o fato de que se trata de um “drama em 3 quadros”. No último desses quadros, ficamos sabendo que os textos foram publicados em diferentes semanas. Ao término de cada quadro, a cronista deixava um suspense no ar, afinal, tinha que manter a atenção do leitor até a semana seguinte. Mesmo os teóricos da crônica não costumam considerar a importância do “espaço” em que se publica o texto. Claro está que as limitações do jornal, além da sua periodicidade, interferem diretamente no conteúdo da crônica, o que é perfeitamente visível naquelas que continuam em edições seguintes. Tudo isso é para dizer que o texto da Rachel, para mim, ainda é crônica, embora crônica que se vale de elementos característicos do conto (só a partir de determinado ponto da narrativa). Quanto ao conteúdo, é praticamente uma anedota, ainda que muito bem explorada e descrita, apresentada como um exemplo fatal de metonímia: o sujeito traído mata o carteiro que entregava as cartas do amante à sua mulher. Já o penúltimo conto do livro é “O extraordinário relógio”, de Rosalina Coelho Lisboa (1900-1975), um conto bastante poético, talvez o mais poético do livro, e que eu chamaria até de “oriental”, tendo como mote a criação de um relógio que só marcaria as horas felizes (depois de pronto, ele só tocou na hora da morte). O último conto ficou por conta de Teresinha Éboli, cujas datas de nascimento e possível óbito não achei. Ela é autora de “O internato”, que apresenta a interessante cena de dois irmãos mandados para lá pelos pais, o primeiro bastante ressentido pela mudança, achando que os pais querem se livrar deles para que possam gritar à vontade um com o outro em casa, e o outro, criança menor, ainda ingênuo e sem saber muito bem as implicações daquilo que acontecia. Os dois são deixados lá e ficam sozinhos na hora de dormir, quando se deparam com uma aranha enorme. Há uma tensão com aquele bicho, até que os dois escapam de lá e conseguem telefonar para a mãe deles, avisando que tem uma aranha no quarto deles.

25/08/2019 – O CONTO FEMININO (RESUMO)

Um livro interessante que mostra uma vigorosa prosa feminina praticada principalmente por nomes que há muito tempo não são mais lembrados. Se é verdade que ali estão Clarice Lispector, Rachel de Queiroz e Lygia Fagundes Telles, três bastante conhecidas e festejadas, também estão Lia Correa Dutra, Ondina Ferreira, Emi Bulhões Carvalho Fonseca, Nair Lacerda, Chrysanthème, Adalgisa Nery e várias outras que já não dizem nada ao leitor médio atual. A leitura dos contos dessas mulheres, no entanto, faz ver que urge um resgate da literatura feminina feita no Brasil. São diferentes estilos, são diferentes épocas, mas tudo forma um belo panorama do que escreviam as mulheres até o ano de 1959.

29/08/2019 – BERNARD MALAMUD

Este era um nome que até então eu não havia ouvido falar, mas era muito bem recomendado e, além do mais, falavam-se coisas tão maravilhosas sobre o seu livro de contos “O barril mágico” que eu não tive outra coisa a fazer que não ir atrás desse livro. Trata-se de mais um contista norte-americano, e nota-se na sua escrita essa origem (creio que os seus textos se aparecem mais com os contos americanos do que com os contos judeus). Minha alta expectativa com o livro não chegou a se cumprir totalmente, já que não tive o entusiasmo que achei que teria com os contos. Não que eu os tenha desgostado totalmente, mas o único que eu apreciei de verdade, o único que, ao terminar de ler, eu pensei “uau, que conto!”, foi “Eis a chave”. A escalada de aflições do sujeito que procurava desesperadamente um local para morar na Itália, coisa tão difícil que parecia quase envolver a máfia, prendeu-me bastante a atenção. Três contos do livro se passam mesmo na Itália, mas eu não tive a mesma sorte com o italiano “A dama do lago”, que não me despertou muito interesse, apesar da revelação final sobre uma prisioneira dos nazistas. O último conto italiano, “O último moicano”, já me atraiu mais, embora menos que “Eis a chave”. Gostei em alguma medida também de contos como os dois primeiros, “Os sete primeiros anos” e “O selecionador de ovos”, e os outros todos manteram nível parecido, que, naturalmente, eu jamais classificaria como “ruim”, mas eles não chegaram a tocar tão fundo em mim. Ao lê-lo, me lembro de outros contistas americanos, como os célebres Raymond Carver e John Cheever, que, por melhores que sejam, também não me tocam tanto assim. Acho realmente que há um jeito americano de fazer contos com o qual eu não me identifico muito. Gosto muito, isso sim, de um William Saroyan e de uma Dorothy Parker, mas esses faziam um negócio diferente. Em relação aos americanos judeus, também apreciei mais o Isaac Bashevis-Singer.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 01/09/2019
Reeditado em 01/09/2019
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