José Saramago e a greve da morte

José Saramago e a greve da morte

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Imagine o leitor se no dia seguinte (amanhã) as pessoas parássemos de morrer. É esse o problema inicial que José Saramago nos coloca em Intermitências da morte. Com essa premissa ficcional, várias questões práticas e ao mesmo tempo filosóficas são colocadas. Uma vez vencido o medo superior com o qual convivemos, a morte, seríamos dominados por uma incontida euforia. E depois?

Sem morte não haveria ressurreição e, por isso, pergunta-nos Saramago, o que ocorreria com a Igreja? E as empresas funerárias, o que fariam sem os mortos? E os hospitais, superlotados? E as companhias seguradoras? Cancelariam as apólices de seguro de vida? E os doentes terminais, não terminariam nunca? E os cartórios, não mais faturariam com certidões de óbito? E os idosos? O que fariam os parentes, de quem dependiam, e com quem conviviam, e de quem mais nada esperavam? E os hospitais, superlotados? E os produtores, vendedores, propagandistas e consumidores de remédios?

Na narrativa de Saramago, descobriu-se que nos países vizinhos a morte ainda persistia. Assim, alguns desesperados, atravessavam a fronteira, e então finalmente morriam. Do ponto de vista jurídico esta fuga sugere mais uma pergunta: praticavam a eutanásia? E aqueles que os ajudavam? Havia o crime de incitamento previsto no art. 286 do Código Penal brasileiro, se em um Brasil imaginário isso ocorresse? Uma máfia (que o autor grafa como “ph”) agita um surto imigratório para aqueles que insistiam em morrer. Eram milicianos.

Esse fascinante livro de Saramago é divido em três partes. Primeiramente, trata dos problemas que decorreram com o fim da morte. Na segunda seção, a partir do momento no qual a morte retorna enviando cartas violetas para os escolhidos, indicando hora e local, a lógica do medo se inverte. Na parte final, a morte passa a protagonizar o que de mais delicioso a vida pode nos oferecer: apaixona-se. Esse delicioso livro nos faz refletir sobre a morte, que é só nossa. Quando formos, a nossa morte não matará mais ninguém. É com ela que acertamos nossas contas. E é só nossa. Viver, no limite, é um aprendizado para a morte.

No romance, A suspensão das mortes suscitou muitos suspenses. A rainha-mãe, sempre prestes a morrer a qualquer momento estava livre da morte. Que o digam os príncipes herdeiros, a situação aflitiva se eternizaria. E o governo, com o fim das mortes, que posição tomar? Comemorar? Lamentar? O cardeal, preocupado, intuía que o fim da morte significava, efetivamente, o fim motivo pelo qual sua narrativa continha consistência. Pregar o que? Salvação do que? O cardeal viveu um paradoxo. Sofreu um ataque de apendicite aguda que o levou a uma intervenção cirúrgica, da qual sairia ileso, justamente porque não morreria. Sobreviveu.

Alguns comemoraram o fim da morte como uma conquista nacional, motivo de forte patriotismo. Bandeiras nacionais foram hasteadas em todos os lugares. A vida eterna era uma conquista nacional. Patriotismo tolo, fútil e desnecessário. Seria o contrário? Já o houve de alguma forma sadia?

Na dificuldade vence-se a crise com criatividade. Funerárias conseguiram uma ordem governamental para que animais (que continuavam morrendo) fossem enterrados. As companhias de seguro fixaram uma data limite para uma morte cartorial e fictícia: resgata-se o prêmio do seguro quando se completava 80 anos. Tratava-se de uma morte obrigatória, burocrática. Saramago insiste que igrejas precisavam dos falecimentos, pelo que os fiéis mais fervorosos fervorosamente oravam pela volta das mortes. Os filósofos também se viram desacorçoados: a filosofia também precisa da morte, como um ponto de inflexão na reflexão sobre a vida.

Cansaram-se. Protestou-se pela volta da morte. Essa volta. Vira-se o roteiro. A morte anunciava-se. Temia-se a carta que inesperadamente chegava. Alguns ainda tentavam morrer antes da hora. Tentavam o suicídio. Não conseguiam. Outros, optavam por uma solução mediana. Suicidavam-se, no dia marcado...

Depois de sete meses sem mortes, uma hecatombe tomou conta da país. Viveu-se um estado nosológico de coisas. Bom tema para constitucionalistas sem assunto. Os religiosos festejam que suas preces foram ouvidas e acolhidas. Bom tema para teólogos que já desvendaram todos os mistérios da tradução dos textos canônicos. Os coveiros protestaram por salários mais elevados. Bom tema para o sindicalismo que renascerá das cinzas. A carta da morte foi interpretada pelos gramáticos. O purismo desses últimos é uma brincadeira de Saramago com o estilo não usual de sua escrita.

A morte, no entanto, não conseguiu entregar uma das cartas. É o destinatário, um músico, que a tornará humana e falível, como nós todos. A morte fez-se alguém. Esse o grande mistério do livro, cujos pormenores só se alcança com a leitura do livro, e que aqui um pudor de resenhista me impede de avançar. Não posso. Leiam o livro.

Nessa obra, Saramago reitera nossa condição substancialmente igual, por mais diferentes que sejamos. Aquela ideia inicial de que alguém nos supera é superada com a constatação de que também superamos. Ninguém é mais ou melhor do que ninguém. Nos completamos. Enfatizando essa igualdade, Saramago não perdeu a chance de citar a emblemática passagem latina de nossa condição igualitária: “memento, homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris”, isto é, “lembre-te, homem, que do pó saímos e para o pó voltaremos”. Essa verdade irrefutável aprendi com minha bisavó Dona Druzila.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 27/10/2019
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