Pai contra Mãe, de Machado de Assis

Pai contra Mãe, de Machado de Assis

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

O problema da escravidão é um dos mais intricados na obra de Machado de Assis, além, evidentemente, de ser o mais vergonhoso de nossa história. Pode-se atribuir à ironia machadiana uma crítica à mais sórdida fórmula de exploração que o Brasil conheceu, que muito nos envergonha, e que nos choca, sempre, e sempre; e que deixou reflexos que até hoje são assustadores. Condições desumanas de trabalho e exploração superlativa da força humana são desdobramentos modernizados dessa condição odiosa.

O assunto - - escravidão - - é um dos temas do conto Pai contra Mãe, publicado em Relíquias da Casa Velha, já na edição de 1906. Trata-se da estória de um caçador de escravos: Cândido Neves, o Candinho da intimidade da família. Cândido Neves, ao que pode parecer, era branco-branco, no inusitado nome. Candinho era um homem andado. Passou por muitas empresas, trabalhou no comércio, aprendeu tipografia. Mas Candinho nunca se fixou em ofício nenhum. Ganhava a vida (muito mal) na malfazeja tarefa de capturar escravos foragidos. Era a ocupação que encontrou depois de que quase tudo havia tentado.

Para tudo ficar mais branco ainda, Candinho casou-se com Clara, moça casadoura, mas muito operosa, e que costurava para fora. Por falta de melhor opção, Clara acabou acomodando-se com Candinho. Vida dura. Dividiam o cômodo alugado com a tia de Clara. Clara engravidou. A espera da criança coincidiu com um declínio da atividade de Cândido. As condições de vida haviam piorado. Rareavam escravos foragidos. A abolição se aproximava. Clara auxiliava o marido como podia.

A tia que vivia com o casal sugeriu que a criança que nasceria fosse levada à roda dos enjeitados, como então se chamava um triste lugar que sugere os orfanatos que surgiriam mais tarde. Cândido resistia. Os credores ameaçavam de todos os lados, e de todos os modos. O senhorio, dono do cômodo alugado, deu a Cândido um prazo fatal para pagamento do débito: cinco dias.

Cândido não se rendeu aos fatos e ainda tentava alternativas, antes de deixar o filho entre crianças abandonadas. Tentava, e lembrou-se de uma velha notícia de jornal relativa a escravos foragidos, que dava conta de uma mulata; oferecia-se uma quantia que resolveria os problemas de Cândido. Em vão, Cândido buscou informações.

Sem mais opções e sem recursos, desiludido, e com o filho recém-nascido no colo, Cândido rumava para a roda dos enjeitados. Foi quando teve a impressão de ter visto a tal escrava foragida. Deixou o filho aos cuidados de um farmacêutico, a quem pediu que cuidasse da criança, por um instante.

Cândido alcançou a escrava — Arminda — a quem capturou, na linguagem de Machado de Assis, após ter “tirado o pedaço de corda da algibeira”, e de quem “pegou dos braços”. E então, com a escrava capturada, enquanto o filho estaria ainda com o farmacêutico, Cândido apressou-se a ter com o dono da presa, na busca da recompensa.

Constatou-se que a escrava estava grávida. O realismo da narrativa impressiona, deprime. Machado de Assis descreve o aborto vivido pela pobre escrava, o que ocorria enquanto Cândido recebia a recompensa. Cândido ainda conseguiu apanhar o filho. Pagou as dívidas. Retornou a vida com alguma esperança. Alguma maldade o marcava; justificou para si o aborto, “nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração”

No contexto desta narrativa atemorizante, de quem testemunhou ou conheceu testemunhas de tal tempo (Machado de Assis nasceu em 1839 e morreu em 1908), descreve-se os horrores da escravidão. Não se sabe (e nem se saberá) se Machado de Assis o fez como espectador desinteressado (do que duvido) ou como ativista sutil.

Odioso tempo. O bruxo do Cosme Velho descrevia com muita naturalidade a situação de sua época. A captura de escravos fugidos parece ter sido ofício rentável, que alimentava uma então sofisticada e auto enganadora ideia de se “pôr ordem à desordem” A narrativa machadiana permite que se vejam peculiaridades e tristezas de uma época difícil. Instituições e rotinas que escapam à narrativa oficial são captadas, com toda intensidade.

Hoje, os atores talvez não sejam os mesmos. Os personagens, porém, persistem, ainda que com outros figurinos. O caçador de escravos transformou-se em todo aquele que não compreende a legitimidade de qualquer movimento de luta contra situações de exploração, de humilhação e de aviltamento. A fuga do escravo era uma forma de resistência. Como são formas de resistência os vários movimentos sociais que há, ainda que perturbem arranjos cotidianos de nossas vidinhas organizadas, centrípetas e ensimesmadas.

Referência

Machado de Assis, Joaquim Maria. Contos, São Paulo e Rio de Janeiro: Record, 2008.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 10/12/2019
Código do texto: T6815323
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