Petrônio e a dama de Éfeso

Petrônio e a dama de Éfeso

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

O escritor e satirista romano Petrônio (século I d. C.) deixou-nos um conjunto de deliciosos textos, sob o título de Satiricon. Petrônio revela-se como um autor cheio de surpresas e caprichos. Ainda que dúvidas haja sobre a existência de Petrônio, ou mesmo sobre a autenticidade de suas obras, merece destaque um pequeno excerto, A dama de Éfeso. O texto provoca reflexões sobre problemas de gênero, de fidelidade, de luto, de melancolia, e de processos de superação da dor.

A dama de Éfeso era uma senhora conhecida por seus fortíssimos dotes morais, por sua postura irreprimível, por seu caráter reto, por sua moral ilibada e inquestionável. Era um exemplo para as já sisudas mulheres do mundo greco-romano. A morte do esposo a surpreendeu e, como todas as esposas da época, chorou todas as lágrimas. Acompanhou o féretro até uma ampla sepultura, de onde se recusou a sair.

Ela chorava o tempo todo, lamentando a perda do amado esposo. Enquanto persistia na tumba, o governador da cidade mandou crucificar dois criminosos nas cercanias do túmulo. Ordenou que um soldado cuidasse daqueles míseros corpos, que não poderiam ser dali retirados. Se algo ocorresse, o soldado responsável pela vigilância responderia com a própria vida. Assim, o soldado passaria o tempo todo de olhos nos corpos crucificados.

Porém, observando uma luz que surgia do túmulo, o soldado aproximou-se da tumba e encantou-se com a imagem daquela linda mulher, ainda que em constante sofrimento. Descendo até aquele funesto lugar o soldado tentou, a todo custo, dividir seu alimento com aquela triste figura de viúva. Uma serva que a acompanhava também se esforçava, dizendo, segundo Petrônio, que o próprio cadáver do marido deveria lembrá-la da necessidade de se alimentar para continuar vivendo.

Convencida, a dama de Éfeso se alimentou. O soldado esforçava-se para agradá-la, socorrendo-a, todas as noites, com farto alimento. A casta viúva percebeu que o soldado não era nada disforme. Dormiram juntos, e o soldado, “cativo da beleza da dama e do mistério, (...) comprava o de bom e melhor, de acordo com suas posses, e ao cair da noite levava tudo para a sepultura”.

Numa das manhãs, ao sair do túmulo, que dividia morbidamente com a viúva e com o morto, o soldado verificou que um dos corpos pendurados na cruz fora de lá tirado, provavelmente pelos parentes do crucificado. Em desespero, o soldado voltou ao túmulo, anunciando à dama de Éfeso que se suicidaria, antes que o governador soubesse. De qualquer modo, pagaria com a própria vida a desatenção; iria, decididamente, suicidar-se. A viúva raciocinou que não pretendia enviuvar de novo. E assim, segundo Petrônio“(...) manda tirar do caixão o corpo do marido e pregá-lo na cruz vazia (...) aceitou o soldado o expediente de tão hábil senhora; e no dia seguinte o povo perguntava, de si para si, por que milagre o morto se metera na cruz”. O marido foi pregado na cruz, e de tal modo o soldado fora salva da punição do governador.

Essa intrigante passagem permite-nos várias abordagens. Se para o filósofo barbudo de Trier - - Karl Marx - - tudo que é sólido desmancha no ar, e tudo o que é sagrado será profanado, para o nosso poeta da paixão o amor não detém a imortalidade (posto que é chama), mas que seja infinito, enquanto dure. À perturbadora possibilidade lógica de Vinicius (eterno enquanto dure), acrescenta-se o sedicioso realismo de Marx (o sagrado será profanado).

A dama de Éfeso transita entre a lógica da paixão (que também tem sua racionalidade cega) e o realismo (que ao mesmo tempo se revela pela irrealidade, significando que de algum modo queimamos o que adoramos e um dia adoraremos o que queimamos). Morto, o marido já nada mais era do que uma referência de um tempo passado, que ela insistia em manter presente. O luto e a melancolia exigem superação, como condição de nossa sobrevivência.

O marido pregado na cruz, com a consequente salvação do soldado caridoso e apaixonado, é o epílogo de uma narrativa que confirma que os limites da moralidade podem se encontrar nos interesses próprios, o que pode revelar o relativismo de uma suposta virtude. Em favor da dama de Éfeso, a quem veementemente admiro, a lealdade vivida durante a vida do esposo, pois é essa que verdadeiramente conta, se sincera, bem como a coragem de superar a dor, pois é a dor moral o sentimento que verdadeiramente nos devasta, se autêntico.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 15/12/2019
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