A condição pós-moderna, de Jean-François Lyotard

A condição pós-moderna, de Jean-François Lyotard

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

O pós-modernismo originariamente indicaria movimento das culturas capitalistas mais avançadas, especialmente nas artes e, nesse sentido, estaria para a pós-modernidade na medida em que o modernismo estaria para a modernidade. A pós-modernidade sugere o que vem após a modernidade. Óbvio. Refere-se à dissolução de todas as formas culturais e sociais associadas com a chamada tradição moderna. O termo foi pela primeira vez utilizado por Arnold Toynbee, historiador inglês. A expressão pós-modernismo sugere toda oposição e crítica à modernidade, ao modernismo e, consequentemente, aos planos dos iluministas.

O termo, a exemplo de “globalização”, foi glamoroso nas décadas de 1990 e de 2000. No entanto, perdeu muito de sua força e persuasão. Do mesmo modo que se concebe uma “desglobalização” em relação à qual os identitários se alinham, parece-me que o obscurantismo contemporâneo ameaça a modernidade (e o que seria pós-moderno também) na medida em que avança a irracionalidade. Triste. Lembremo-nos que somos poeira...

O livro central para as reflexões em torno do chamado pós-modernismo é de Jean-François Lyotard (1924-1998), “A Condição Pós-Moderna”. Trata-se de relatório que o filósofo francês preparou para o governo canadense. Estudou as condições do conhecimento em sociedades altamente desenvolvidas. O relato foi publicado e aceito pela comunidade acadêmica como importante referencial para o estudo do pós-modernismo. Um dos temas centrais do livro é o conceito de “narrativa”.

Por narrativa cogita-se conjunto de percepções e valores que decorrem de contexto cultural que se propõe a universalizar. A narrativa choca-se com a ciência, e essa última vincula-se à filosofia, que a legitima. Lyotard chamava de moderna a ciência que se autentica com referências explícitas às “grandes narrativas, como a dialética do espírito, a hermenêutica do significado, a emancipação do racional (...) ou criação de riqueza.” Em outras palavras, seriam grandes narrativas, nesse perspectiva, bem entendido, conceitos como contrato social, liberdade de expressão, interesse público, constitucionalismo.

Lyotard discorre, por exemplo, sobre a narrativa do iluminismo, como aquela que promove acordo entre seres racionais, e que possibilita que o herói do conhecimento trabalhe para a paz universal, por meio de recursos éticos. Nesse sentido, justiça e verdade seriam grandes narrativas. Lyotard definiu pós-modernismo como atitude de incredulidade para quaisquer narrativas, que estariam perdendo seus grandes heróis e referencias. O pós-modernismo seria então caracterizado pelo descrédito para com percepções e valores que decorrem do contexto cultural iluminista, cujo projeto se pretendia universal. As promessas do iluminismo revelaram-se inconclusas.

Lyotard problematizou a própria definição de pós-moderno ao questionar onde poderíamos encontrar qualquer forma de legitimação, abandonadas as metanarrativas. Pretendia critério técnico, que não se preocupasse com a relevância do que seria certo ou justo. Investindo contra um conhecimento que se definia como universal e científico, Lyotard qualificava o conhecimento como mero discurso. Relativismo maior não pode haver.

O conhecimento científico é produzido, negociado, vendido; seu objetivo é a materialização de relação de escambo; é moeda de troca. O conhecimento se tornou o principal ingrediente na produção. A ciência ocupa posição primordial entre os recursos pelos quais se luta. O conhecimento tornou-se uma “commodity”. Do mesmo modo como já se resistiu por territórios, por matérias-primas, por mão-de-obra barata, busca-se o domínio de conhecimento científico. Descortina-se novo campo para estratégias industriais, comerciais, políticas e militares. Lyotard é um escritor difícil; difícil encará-lo pelo ângulo correto pois, nenhum de seus ângulos é certo, ao mesmo tempo em que todos os ângulos o são.

A ideologia que pede transparência nas comunicações e que caminha ao lado da comercialização do conhecimento começa a perceber o Estado-Nação como fator de opacidade e de ruído comunicacional. É um modo de franquias que emerge. A relação entre poderes econômico e político determinaria a motivação da produção do conhecimento. Os resultados são previstos. Lyortard, de algum modo, suspeitou do que hoje vivemos com o conhecimento (ou falso conhecimento) gerado pelas redes sociais.

No entanto, o conhecimento científico não representa a totalidade do conhecimento. Sempre existiu concomitantemente a outros modelos de informação. Volta-se ao problema de sua legitimação. De novo, refiro-me ao conhecimento, ou ao não conhecimento, que é predicado no obscurantismo, cuja natureza não era possível Lyotard prever. Quem decide o que é conhecimento é quem de algum modo radica seu poder de decisão no poder político. O conhecimento enquanto narrativa possui uma pragmática. Não pode ser reduzido à ciência e nem mesmo ao mero aprendizado.

Há também uma narrativa determinada por critérios de competência que ilustra como o conhecimento deve ser aplicado. E porque fazem parte da cultura, as narrativas são legitimadas pelos fatos. Ensina-se o que se sabe, e o que se pode ensinar. Porém, na medida em que o destinatário do processo didático reconhece o que não sabe, e o que está tentando aprender, insere-se na dialética da pesquisa, dividindo com a comunidade científica uma espécie de jogo linguístico. Não se pode perder essa dinâmica, que também é mais uma narrativa.

Nesse caso, busca-se legitimar o conhecimento e com ele a narrativa se confunde. Lyotard exemplificou com o cientista que na imprensa anuncia uma descoberta. Descreve-se evento épico, que causa admiração, e que propicia reconhecimento popular. Em sociedades avançadas, a exemplo do Canadá, país no qual Lyotard desenvolveu sua pesquisa, os governos precisam desse tipo de reconhecimento popular para justificar as destinações orçamentárias que financiam a pesquisa científica.

É um desafio para a democracia a potencialização e a disseminação do conhecimento, libertando-o do paroquialismo e do obscurantismo que de alguma maneira nos marcam, e que tem sido recorrente em nossa história cultural. O paroquialismo, uma sinecura acadêmica histórica e o obscurantismo, uma tragédia inesperada, ainda que por alguns intuída e anunciada. O livro de Lyotard, ainda que concebido em outro contexto histórico e cultural, de algum modo anuncia esse desafio.

Lyotard apresentou uma teoria, o que, segundo Sérgio Milliet, é apenas um instrumento de trabalho e não uma explicação totalitária do universo, um conjunto de leis ou de mandamentos morais.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 15/01/2020
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