“A PROLE DO CORVO”

LUIZ ANTONIO DE ASSIS BRASIL é gaúcho de Porto Alegre, passou a infância e a adolescência em Estrela, zona de colonização germânica. De volta a Porto Alegre, estudou com os padres jesuítas e seguiu Direito, formando-se em 1970. Durante os estudos e mesmo depois, atuou na Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (OSPA) como violoncelista. A música, entretanto, foi substituída pela literatura e a prática da advocacia pelo magistério superior. Atualmente é professor junto ao Curso de Pós-Graduação em Letras da PUC-RS, onde coordena uma oficina de criação literária que deu origem a várias antologias.

Participou três vezes da Série Novo Romance, da Editora Mercado Aberto – a primeira foi com As Virtudes da Casa (1985); a segunda foi com Cães da província (1987) -Prêmio Literário Nacional do I.N.L em 1988; e a terceira com Um quarto de légua em quadro (1976). Publicou ainda A prole do corvo (1978), Bacia das almas (1981); Manhã transfigurada (1982); O homem amoroso (1986). Em 1987 o autor publicou no jornal Diário do Sul o folhetim Breviário das terras do Brasil. Em 1987 a Câmara de Vereadores de Porto Alegre, por unanimidade, conferiu-lhe o prêmio Érico Veríssimo pelo conjunto da obra.

Na obra, objeto dessa resenha, A Prole do Corvo, a ação situa-se, de um lado na Fazenda Santa Flora, onde vive a família do herói, Filhinho Paiva, e, de outro, nos campos de batalha, para onde ele vai. É sua trajetória que o narrador acompanha, desde sua convocação para a tropa revolucionária, ao seu aprisionamento pelos imperiais e posterior retorno à estância. Pela leitura torna-se possível traçar o perfil da guerra, a morte inútil, a ausência de ideais, a tirania militar e a derrota inevitável. As batalhas não são, portanto, o lugar para os gestos heróicos, mas para a preservação da vida a qualquer preço. O valor mais alto é o da sobrevivência, e a luta que enseja promove o amadurecimento pessoal.

Por isso é importante a configuração psicológica de Filhinho. O apelido afetivo designa de antemão sua dependência e imaturidade, e sua fixação amorosa pela irmã assinalando a atração edípica, complementa um quadro de puerilidade. É convocado à revelia e enviado aos campos de batalha pelo pai que, não querendo perder mais cavalos, é obrigado a ceder o herdeiro às tropas de Bento Gonçalves. Sendo a vida militar a iniciação de Filhinho para a existência adulta, é igualmente a passagem para a derrota. O abandono da proteção maternal significa o contato com a realidade adversa e a fatalidade. Em vista disso, seu sonho é o retorno ao lar, o que alcança ao final, mergulhando nos braços da irmã.

O confronto com o mundo não significa um crescimento, o que justifica a permanência da infantilidade de Filhinho. A guerra aparece na sua face cruel não apenas pelo sacrifício dos homens e propriedade a que enseja, mas porque não possibilita ao indivíduo qualquer tipo de elevação. É esta abordagem do envolvimento psíquico do herói que confere a atualidade ao texto, verificando as conseqüências de um processo histórico no âmbito pessoal.

Trata-se de um romance histórico-ficcional que se desenvolve no último ano da Guerra dos Farrapos, examinando os vários conflitos a que se inserem as personagens simultaneamente, onde todos são apresentados sem a arma da bravura, da raça guerreira, vivendo seus cotidianos em conflito, de acordo com suas próprias limitações.

É bem verdade que há uma intercessão entre a obra ficcional de Assis Brasil e o contexto histórico oficial. Essa intercessão, porém, se dá de forma invertida, e a inversão ocorre exatamente nos momentos em que a história oficial é caricaturizada pela parodização do texto-ficção em relação ao contexto histórico real.

Numa análise crítica, A prole do corvo faz, através da ficção, uma denúncia satírica dos fatos inertes da história oficial, conferindo-lhes movimento e emoção. A leitura voltada para o indivíduo vê o romance como desnudamento da crueza da realidade.

A história é narrada na 3ª pessoa, revelando-se o narrador, figura onisciente. Observa-se a presença nítida desse na escuta das pulsações dos personagens, ou como se o “eu” do narrador se fundisse ao “eu” do personagem “Filhinho”.

A pluralidade dramática está representada por uma série de conflitos, enquanto os personagens têm suas falas em função do conflito núcleo que é o fim da Guerra dos Farrapos, a qual interfere na vida de todos e têm sua história contada pelo interligamento entre os personagens e seus conflitos num estilo despojado sem fantasias, sem mitificação numa visão crítica da historiografia oficial.

O espaço é natural e pragmático, a ação desenrola-se em dois ambientes: a estância Santa Flora, espaço livre, aberto, meio rural, vida típica inserida no período histórico em questão, ou seja período colonial. O segundo ambiente é constituído pelo cenário dos acampamentos e dos combates da Revolução Farroupilha, onde o personagem eixo, Filhinho, passa a inserir-se no segundo momento da obra.

O tempo psicológico opõe-se ao cronológico por representar a experiência e não a natureza, vindo a ser a memória involuntária que se faz presente, já a linguagem é regionalista, popular, apelando às vezes para o vulgar, abrangendo, assim, quase todos os tipos de diálogo, os quais passam a ser os transmissores de dramas e conflitos, demonstrando a intenção de transformar, desnudar e conhecer.

A Revolução Farroupilha, na obra é como qualquer outra revolução, parece a um grande corvo que se alimenta da carne putrefata de seus próprios filhos, os quais foram levados a uma luta fratricida à sombra de um idealismo duvidoso. As revoluções não se contentam com o sangue dos inimigos, pois sempre acabam derrotando seus próprios filhos, a exemplo da eternamente badalada Revolução Francesa, que acabou levando seus líderes à guilhotina.

No caso presente, no romance de Assis Brasil o personagem de nome Cássio, personifica o corvo, pela ausência de sentimentos, princípios e extrema crueldade que o leva a matar o dono de uma casa comercial por motivo fútil e ainda violentar-lhe a mulher em adiantado estado de gravidez.

A obra nos traz uma grande contribuição na medida em que representa a história com personagens mais humanos, sem relatos cansativos, sem o tom discursivo e exaltatório da história oficial, apresentando os personagens sem a capa do misticismo ideológico, quase sobre-humano, fornece ao leitor elementos mais concretos, mais palpáveis do nosso processo histórico contribuindo ainda cultural e artisticamente por representar uma época importante do nosso passado, com tintas mais humanas, inserindo os personagens e seus conflitos menores no centro do conflito maior e mostrando de forma clara as influências daquele conflito bélico na vida cotidiana das pessoas e grupos sociais envolvidos na sua turbulência ou nas suas adjacências.

Comparando a obra A prole do corvo e os dias atuais, sob a ótica das relações de poder, verifica-se que pouco mudou, apenas alguns personagens mudaram o discurso acrescentando à truculência, o verniz de uma intelectualidade superficial própria do bacharelismo livresco e anacrônico que as universidades produzem, divorciadas da sociedade e sem preocupar-se com ela.

Os donos do poder atuais são iguais aos de ontem, porém mais refinados no cometimento de seus crimes, no entanto são exatamente iguais na ambição, nos propósitos de manutenção do “status quo” e na perpetuação do mando.

O “sistema” é o grande “Corvo “ que na falta de inimigos vai devorando seus filhos que vão morrendo, lenta e paulatinamente, abatidos pelas armas poderosas do descaso e do abandono, ante a inércia da sociedade organizada e a inoperância dos detentores do poder.

moises silveira de menezes
Enviado por moises silveira de menezes em 11/11/2005
Código do texto: T69968