A vírgula, segundo Gotardelo

Talvez o leitor encontre por aí – nos maravilhosos sebos que tanta cultura nos ofertam – a pequena obra ‘O emprego da vírgula’, publicada pela Editora Dois Irmãos, nos idos de 1958.

O trabalho é assinado por Augusto Gotardelo, que era formado em Letras Clássicas pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e lecionou com brilhantismo no Instituto Estadual de Educação de Juiz de Fora, aonde este singelo comentador chegou algum tempo depois da aposentadoria daquele humanista, tão dedicado aos estudos linguísticos.

A obra chama atenção – a nós professores da língua e, certamente, àqueles que buscam informações sobre o assunto – pela criteriosa seleção dos casos de vírgula, agrupados em quarenta e duas seções, nas quais não falta a exemplificação segundo os autores consagrados no uso do vernáculo. Valendo-se de notas agregadas ao próprio texto, Gotardelo vai, ainda, esclarecendo, sempre de forma muito didática, os casos que ele julgou merecedores de maiores explicações.

Na introdução, o autor menciona que a vírgula (também chamada de coma) é notação sintática de difícil emprego, diferentemente, por exemplo, de outros sinais como a interrogação e a exclamação. Realmente, diríamos nós, os estudantes que têm o conhecimento básico da sintaxe da língua, terão mais facilidade no processo de virgular. E – grife-se – não se está dizendo com isso que as aulas de português, sobretudo no ensino fundamental, devam ser exclusivamente dedicadas à sintaxe.

Não percamos, todavia, o fio da meada e continuemos saboreando o texto do professor Gotardelo, que é muito atual no que diz respeito aos procedimentos recomentados.

Para dar uma pequena ideia, lembro aqui a vírgula antes da conjunção ‘e’ – para muitos simplesmente não existe vírgula nessa situação. Gotardelo – acredito que mesmo à frente de registros gramaticais modernos – ensina que a vírgula é recomendada 1. quando os sujeitos das orações são diferentes: “Teodomiro voltou-se contra o renegado, e um violento combate travou-se entre ambos” (Herculano), 2. quando se deseja dar ênfase à frase iniciada pela conjunção ‘e’: “Neguei-o eu, e nego” (Rui Barbosa), 3. “quando se pretende salientar um contraste, uma oposição de ideias, principalmente quando após a conjunção ‘e’ vem uma negativa (não, nem): ‘O pregar há de se ser como quem semeia, e não como quem ladrilha ou azuleja’” (Vieira), 4. quando há polissíndeto: “Crescei, e multiplicai-vos, e enchei as águas do mar” (Bíblica Sagrada) e 5. quando a oração é um tanto extensa: ‘O sol descia rapidamente, e já as sombras principiavam do lado do leste a empastar a paisagem ao longe em negrumes confusos’ (Herculano).

Compulsando os compêndios sobre a língua, vemos – até hoje – certa desarmonia quanto ao emprego da vírgula antes da abreviatura ‘etc’. Gotardelo, citando Sá Nunes, defende que a vírgula seja empregada. Na sua leitura, a expressão ‘etc’ – abreviação de ‘et cetera’ – exemplifica um caso de esquecimento etimológico. Já em meados do século passado, não se sentia o ‘et’ como resquício do ‘e’, da sequência ‘et cetera’ (e os mais, e os demais, e os outros, e os restantes). Já àquela época, era corriqueiro ouvir-se ‘e etc’, uma redundância perceptível aos puristas implacáveis, com os quais Gotardelo não comunga, exemplicando com ninguém menos que o nosso Machado de Assis: “preceito religioso ou maçônico, vocação, etc.”.

Escolhi apenas a primeira seção para os comentários aqui presentes. Vale dizer que, nos casos mais simples de emprego, o autor, como faria em lousa escolar, apenas faz a menção à ocorrência, registrando, sempre, um exemplo colhido entre os mestres da literatura, o que faz da obra também um interessante debruçar-se sobre frases de Machado de Assis, José de Alencar, Alexandre Herculano, Vieira e mais alguns.

Sabia o leitor que fiz uma abordagem estigmográfica? Pois é. Estigmografia é, segundo Maximino Maciel (citado na obra), o emprego das notações sintáticas, expressão que reproduzo apenas em homenagem à erudição do professor Gotardelo, algo que não obscurecia sua didática de verdadeiro mestre.