"Os cem menores contos brasileiros do século": organizada por Marcelino Freire, uma boa coletânea de microcontos brasileiros

Livro “Os cem menores contos brasileiros do século” de vários autores, uma coletânea de microcontos organizada por Marcelino Freire.

Microconto é, como o próprio nome sugere, um conto pequeno, geralmente em uma única linha. Quase sempre é uma proposta de ideia, com usual subtexto, que instiga a uma reflexão. Não constitui ainda um gênero literário e acredito que não deveria, realmente, ser considerado como tal. Ao meu ver, o microconto funciona como um exercício, uma brincadeira literária, que tem valor como curiosidade, como entretenimento.

O mais famoso microconto do mundo, com apenas 37 letras, foi escrito pelo guatemalteco Augusto Monterroso e está na apresentação do livro. Aqui está:

“Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá”.

Há uma cena que invoca um realismo fantástico ou ficção científica, com um clima de suspense ou terror subentendido. E só.

Outro microconto muito lembrado é de autoria do estadunidense Ernest Hemingway. Ele escreve:

“Vende-se um par de sapatos de bebê. Nunca usados”.

Aqui o microconto apresenta um subtexto que denota uma tragédia familiar (um possível aborto).

Se pararmos para pensar, um bom texto (romance, novela, conto) pode trazer, dentro de sua estrutura, vários microcontos. Cito, como exemplo, a primeira frase do clássico “A metamorfose” do tcheco Franz Kafka:

“Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregor Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco inseto”.

Provavelmente esse é o melhor início de um livro na história. Kafka, com menos de vinte palavras, coloca o leitor diretamente na trama, mesmo ela sendo absurda e complexa como proposta. Um escritor menos talentoso ou mais prolixo gastaria, talvez, muitas frases para dizer a mesma coisa. Motivo: é desnecessário pois Kafka, ao longo do livro, demonstrará que há coisas mais relevantes/importantes a serem ditas do que buscar explicações para a premissa. É visível, portanto, que as primeiras palavras da obra-prima de Kafka constituem, elas próprias, um exemplo de microconto.

Não quero desmerecer a proposta em questão. Longe disso. O que digo é que a superficialidade destes fragmentos literários não deve ser desconsiderada, mas também não pode ser o único fator a ser avaliado. Há outros fatores que fazem a diferença entre um microconto bom e outro ruim. A criatividade é um bom parâmetro e há muitos microcontos bem criativos no livro. Muitos deles instigam a uma reflexão interessante. Alguns exemplos:

“Uma vida inteira pela frente. O tiro veio por trás”. (Cíntia Moscovich)

“O RESTO É LENDA

Depois de expulsá-los, Deus morreu.” (André Laurentino)

“O ESPELHO DE NARCISO

Agora está claro: quem envelhece sou eu, não o retrato”. (Modesto Carone)

Marcelino Freire, que organiza a coletânea e também participa é um escritor pernambucano. Sua coletânea apresenta cem microcontos inéditos, um desafio que ele propôs para cem escritores brasileiros diferentes. A proposta é interessante pois tenho a impressão que não existem livros sobre esse tipo de expressão literária. Sendo assim, tal livro atenua uma carência de mercado. Como toda coletânea há material de boa e má qualidade, mas no geral o livro se mostra instigante e interessante. É uma leitura rápida que, para mim, serviu também para conhecer outros autores da literatura brasileira contemporânea. Um bom livro, portanto.

NOTA: 3/5 (bom).

FICHA: VÁRIOS: organização de Marcelino Freire. Os cem menores contos brasileiros do século. Cotia: Ateliê Editorial, abril de 2004, (Coleção 5 Minutinhos), 216 páginas.

P.S.: Caso tenha gostado do que escrevi, visite https://mftermineideler.wordpress.com/

Manoel Frederico
Enviado por Manoel Frederico em 24/08/2020
Código do texto: T7045076
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