Diário das minhas leituras/52

11/07/2020 – AS MIL E UMA NOITES

Livro: As Mil e uma Noites – Os mais belos contos da maior obra de ficção de todos os tempos

Autor: Vários (anônimos)

Tradutor: Mansour Chalita

Editora: Acigi

Ano: 1999

Saldei um pouco da minha dívida com essa obra que, afinal, merece ser lida, nem que seja em partes, por quem quer que goste um pouco de literatura. A seleção de Mansour Chalita tem o mérito de ser apenas um recorte de todos os enormes quatro volumes da obra, então você é apresentado ao que foi considerado “o melhor das Mil e Uma Noites”, escapando do que estaria em um nível inferior (o que é inevitável ao se tratar de mais de mil histórias). Na apresentação da obra, chega-se praticamente a dispensar o leitor de ler os volumes completos, se tão somente ler essa seleção, mas receio que não seja exatamente assim. Principalmente em função das sete aventuras de Simbad, O Marinheiro. A seleção de Chalita apresenta apenas duas dessas histórias, mas elas são tão incríveis que despertam o desejo de ler todas as outras, o que não é possível só com essa seleção. Algumas das histórias que me agradaram mais nessa leitura são também bastante conhecidas, pois, além do Simbad, há ainda a história de Aladim e a de Ali Babá. Essas fizeram valer a leitura, assim como outras bem menos conhecidas, entre as quais destaco a divertida “O corcunda, o alfaiate, o corretor cristão, o intendente e o médico judeu”, a curiosa “A douta escrava simpatia” (em que também se aprende mais sobre a cultura do Islã), a encantada “Judar, o pescador, e o saco encantado”, a não menos prodigiosa “Abdala Terra e Abdala Mar”, a instigante “Destino ou merecimento” e a engraçada “Um cádi astuto”. Nem todas, no entanto, caíram no meu gosto. Há muitas histórias que se assemelham às novelas do “Decameron”, ou seja, são burlas amorosas em geral, só que de uma forma muito mais crua e mesmo grosseira. Os homens continuamente “montam” em suas mulheres e então as “furam” repetidas vezes, sem falar nas intermináveis alusões ao “zib”, que nada mais é do que o órgão masculino, as quais chegam ao paroxismo da vulgaridade na história “Uma mulher virtuosa” (acho que isso está além do que o Boccaccio escreveu). As mulheres são vistas da pior maneira possível, como em toda a literatura da época. É fato que não se pode julgar os textos de uma época pela mentalidade de hoje, mas é certo que isso também tira um bocado do prazer que uma história poderia nos proporcionar atualmente. No mais, não deixa de ser bem interessante o culto à narrativa que essa obra encerra, brincando e explorando os desejos e as aspirações da humanidade daquela época e lugar.

18/07/2020 – HAN KANG

Livro: A vegetariana

Autor: Han Kang

Tradutor: Jae Hyung Woo

Editora: Todavia

Ano: 2018

Se a primeira parte do livro fosse um texto independente, eu concluiria que era um dos melhores contos já escritos no século 21. A narrativa em primeira pessoa do esposo da vegetariana é bem envolvente, há um ótimo jogo com as tensões da história e creio que o capítulo tem uma boa unidade e funcionaria perfeitamente de maneira isolada, inclusive com o mesmo desfecho usado pela autora. Ocorre que não se trata de um conto e nem a história acaba nessa primeira parte. Nos outros dois capítulos, muda-se a voz narrativa e muda-se o enfoque, o que, para mim, significou também que a história já não era tão boa. Em nenhum momento a história ficou “ruim”, mas eu realmente fiquei lamentando que tudo não tivesse se encerrado naquela maravilhosa primeira parte. No mais, entre as possibilidades que o livro oferece, está a de perceber que o equilíbrio psíquico das pessoas “normais” não é muito superior ao de quem não é.

25/07/2020 – YEONMI PARK

Livro: Para poder viver: A jornada de uma garota norte-coreana para a liberdade

Autora: Yeonmi Park (com Maryanne Vollers)

Tradutor: Paulo Geiger

Editora: Companhia das Letras

Ano: 2016

Qualquer apreciação literária que se faça como um livro sobre esse é descabida. Não se trata de um livro de literatura, mas de um livro sobre a vida e sobre a humanidade – um livro que expõe coisas que nós já achávamos que havíamos superado e que fariam parte apenas de um passado remoto. E, no entanto, os episódios de fome, de violação de direitos básicos, de tráfico humano, de estupros, de perseguições e de diferentes formas de violência aconteceram há alguns poucos anos. Somos contemporâneos de todas as horríveis coisas relatadas por essa moça que hoje ainda tem apenas 26 anos. Há o processo de lavagem cerebral na Coreia do Norte, mesmo em um cenário onde a fome se alastrava por todo o país. Há a fuga para a China, na esperança de que ali se encontraria a liberdade, mas o que havia era uma terrível cadeia de atravessadores, todos, todos, todos interessados em estuprar qualquer fugitiva – mesmo uma garota de 13 anos. Há a perda da inocência, há a descoberta de que também ali naquele país não seria possível encontrar a liberdade, há a tentativa de fugir para outro país, há o risco de ser descoberta e de ser obrigada a voltar para a Coreia do Norte – antes a morte, antes a morte, e ela esteve preparada para se matar em várias oportunidades. Há um pai que morre precocemente e é sepultado em uma montanha isolada, há uma mãe que se sacrifica pela filha, a mesma mãe que é espancada pelo novo namorado, há uma irmã que passa intermináveis anos desaparecida. E em algum lugar há o vigor de Yeonmi, que teve medo, que teve vergonha, que foi julgada, que foi desacreditada, que foi caluniada, que sofreu xenofobia, que teve que aprender todo o ensino básico de novo, mas que, contra as expectativas, se sobressaiu, e foi aprendendo, e foi lendo, ah, como gostava de ler, lia mais de 100 livros por ano, e descobria então que o mundo em que acreditara até então era uma ilusão e que havia outro, mais livre. Seu destaque fez com que se tornasse porta-voz de outras pessoas, de outras famílias que passam pelas mesmas agruras, e é nisso que ela ainda trabalha, sendo que, ao se olhar para qualquer foto dela postada em redes sociais, vem o pensamento: “Meu Deus, não acredito que ela sobreviveu!”. Como avaliar, como dar estrelas para uma história de vida como essa? O livro de Yeonmi não é algo que possa ser avaliado por critérios como gosto pessoal: é algo a ser assimilado e incorporado às nossas posições no mundo contemporâneo.

15/08/2020 – ARUNDHATI ROY

Livro: O Deus das pequenas coisas

Autora: Arundathi Roy

Tradutor: José Rubens Siqueira

Editora: Companhia das Letras

Ano: 1997

O livro dessa indiana me provocou muitas reações diversas e mesmos opostas ao longo da leitura. De início, ele me pareceu interessante. Depois, enfadonho. Depois, belíssimo. Depois, arrastado. Depois, empolgante. E cheguei a alguns momentos realmente brilhantes, embora nem sempre a linguagem mais poética da autora tenha penetrado nas minhas emoções. É a história de dois gêmeos, um menino e uma menina (Estha e Rahel), mas também a história da mãe deles (Ammu), que as cria sozinha, e de Velutha, um “intocável”, vindo de casta tão desprezível na Índia que as pessoas sequer poderiam tocá-lo. Toda a história tem como pano de fundo a vinda de uma prima, Sophie Mol, porque é a partir da sua vinda e dos trágicos acontecimentos que se sucederam que a “História” se manifestou sobre essas vidas e definiu os destinos de todos da família – isso e também a perfídia da tia-avó Baby Kochamma. Em meio à poesia da autora, sobressam-se características como o uso de letras maiúsculas para determinados substantivos, querendo-se com isso, aparentemente, expressar o grau de importância que teriam para crianças como os gêmeos – a autora se sai muitíssimo bem ao expressar o mundo infantil. Também há certos “refrões”, repetidos ao longo da trama e que, igualmente, expressam as ilações que as crianças são capazes de fazer entre as situações que vivenciam. A trama também não é linear, as pessoas estão continuamente indo do passado ao futuro, e mesmo da morte à vida, o que também serve para “presentificar” a realidade e a consistência que eventos antigos ainda tinham para os personagens. Um momento muito marcante é o encontro do menino Estha com o vendedor de refrigerantes no cinema, porque ali, naquele perturbador abuso que se verificou, também foi fechado mais um elo importante da terrível cadeia de acontecimentos que estava para se formar. Entre os momentos que considero brilhantes está o da surra que Velutha leva de policiais, porque ali são feitas considerações psicológicas e sociológicas altamente relevantes, como se a autora tivesse conseguido desnudar as motivações ocultas por trás daquilo que, do lado de fora, nos pareceria apenas uma ocorrência banal da sociedade – e não é preciso viver em uma sociedade marcada por uma divisão tão estreita de castas para perceber o acerto das suas observações, já que também nós lidamos com situações similares. O encontro entre Velutha e Ammu, entre um intocável e uma tocável, mas uma tocável de história pessoal tão sofrida, tem algo de apoteótico, e as descrições que a autora dá são algo de arrebatador. Há ainda alguns dramas perpendiculares, que não chegam a desenvolver em sua totalidade, o do irmão paralítico de Velutha, o do líder comunista do local e mesmo o de Chacko, o tio dos gêmeos, o pai da pobre Sophie Mol, mas isso não é necessariamente algo ruim, antes mostram que a autora tem bastante a oferecer. Dito isso, considero que vale a pena a leitura, pois, embora ela possa, de vez em quando, chegar às duas estrelas de avaliação, com frequência chega a quatro.

Um trecho valioso sobre o encanto das histórias:

"O segredo das Grandes Histórias é que elas não têm segredos. As Grandes Histórias são aquelas que você ouviu e quer ouvir de novo. Aquelas em que você pode entrar por qualquer parte e habitar confortavelmente. Elas não enganam você com truques e finais emocionantes. Elas não surpreendem você com o imprevisível. Elas são tão familiares como a casa em que se vive. Ou como o cheiro da pele do amante. Você sabe como elas terminam, mas, mesmo assim, você escuta como se não soubesse. Da mesma forma que apesar de saber que um dia vai morrer, você vive como se não fosse. Nas Grandes Histórias você sabe quem vive, quem morre, quem encontra o amor, quem não encontra. E, mesmo assim, você quer ouvir de novo".

16/08/2020 – HENRIK IBSEN

Algumas reflexões que eu fiz há muito tempo sobre “Um inimigo do povo”, livrinho que li há quase 10 anos, mas que foi muito marcante e eu ainda costumo citá-lo por aí:

De início, pareceu-me que a peça havia sido escrita há umas duas semanas. É claro que uma peça famosa como essa já deve ter rendido um bom punhado de reflexões, e, portanto, eu não corro o risco de falar algo novo. Mas também eu me vi espantado com a hipocrisia dos personagens – todos bastante interessados em servir unicamente a opinião pública. Nada muito diferente de hoje: vivemos criando e descriando unanimidades de acordo com o vento da opinião pública. Infeliz é o indivíduo que tenta remar contra ela. Terá que enfrentar o poder oficial, o poder da imprensa e o poder das redes sociais – entidades que, quando querem, transformam vinho em água, um visionário em um cego. É o tipo de livro que eu recomendaria para alunos de jornalismo - garanto que será muito mais útil do que, por exemplo, o Manual de Redação do Estado de São Paulo. Porque também os jornais lidam o tempo inteiro com a opinião pública - mais do que isso, eles a servem. E todas as artimanhas que usam ao longo do processo jornalístico não têm outro objetivo senão o de agradá-la. Tentam puxá-la para cá, virá-la pra lá, mas, ao menor sinal de sua insatisfação, os jornais recuam - dependem dela, afinal. É um livro curto, rápido, instigante e eu diria até necessário. Se possível, evitem pegar a edição que tem 80 páginas só de um estudo do Otto Maria Carpeaux sobre a obra, a vida do autor, e se duvidar até sobre o teatro escandinavo no tempo dos vikings. Ele pode ser brilhante em sua análise, mas um estudo tão longo e aprofundado funciona muito mal como introdução. A edição da L&PM é mais recomendável.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 06/12/2020
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