Diário das minhas leituras/53

17/08/2020 – BYUNG-CHUL HAN

Livro: Sociedade do cansaço

Autora: Byung-Chul Han

Tradutor: Enio Paulo Giachini

Editora: Vozes

Ano: 2015

Com grande parte dos livros de filosofia, mesmo contemporânea, também o desse sul-coreano é escrito com uma nota erudita acima da média da população, mas creio que é possível apreender algumas idéias-chaves na leitura da obra. Basicamente, a análise feita pelo autor revela a nossa condição como uma "sociedade do desempenho", que, por meio dos seus excessos e das suas "positividades", será também o que nos conduz à "sociedade do cansaço". A nossa época já não contaria mais com a divisão simplista (e imunológica) entre o eu e o outro, entre o amigo e o inimigo (eu gostaria, porém, de ver o que ele pensa de figuras atuais como o Trump e certos lambe-botas brasileiros que sobrevivem ainda hoje dessa mesma reação imunológica ao que é considerado estranho e diverso). Fato é que muitas barreiras e divisas foram quebradas e hoje o ser humano já pode ser, ao mesmo tempo, vítima e algoz de si mesmo, sendo fruto da pressão (e da consequente frustração) por projetos, iniciativas e motivações. A nossa hiperatividade (típica do período em que éramos "selvagens") nos rouba o tempo do "tédio" e da contemplação, levando-nos, com isso, a outro tipo de barbárie. Sugere-se uma "pedagogia do ver" como forma de reeducação. Há ainda um capítulo voltado só ao notável Bartleby, alvo já de muitos ensaios em diferentes áreas, o que bem revela a genialidade da novela de Melville, aberta a múltiplas interpretações.

27/08/2020 – LOUNG UNG

Livro: Primeiro mataram meu pai

Autora: Loung Ung

Tradutor: Victor Heringer

Editora: Harper Collins

Ano: 2017

Esse é mais um daqueles livros que contam uma história real tão chocante que a própria discussão sobre os méritos literários perde a sua relevância. Entretanto, ressalto que, entre as várias mulheres narradoras de trágicas histórias de guerras e perseguições, Loung Ung figura entre as mais hábeis. Nota-se que ela possui conhecimento de técnicas narrativas, a começar pela acertada estratégia de contar no presente, e não no passado, o drama de sua família durante o genocídio no Camboja. Essa “presentificação” se torna muito interessante porque ela nos coloca sob os olhos de uma garotinha de cinco anos, pois era isso que Loung Ung era quando todo aquele horror começou. Absurda por si só, a guerra vira um despropósito ainda maior quando confrontada pelo olhar de uma criança que, com toda a razão, não vê sentido algum naquilo que se passa ao seu redor. Ao mesmo tempo, essa estratégia contribui para que percebamos, em um grau ainda maior, toda a crueldade envolvida em eventos lastimáveis como esse no Camboja. Tem perseguição, tem fome, tem medo, tem assassinato, tem tortura, tem tentativa de estupro, até ataque de piratas tem durante a história. É admirável que Loung Ung tenha sobrevivido a tudo o que relata no livro e que hoje tenhamos a oportunidade de conhecer mais de perto o que foram aqueles anos de horror. E não se pense que tudo isso se resume a um Oriente distante, sempre envolvido em conflitos, e que não nos diz respeito. Se levarmos às últimas consequências muitos dos sentimentos que cultivamos aqui mesmo, no nosso privilegiado Brasil, será um ambiente de horror como o do Camboja que atrairemos sobre nós.

18/09/2020 – EKA KURNIAWAN

Livro: A beleza é uma ferida

Autor: Eka Kurniawan

Tradutor: Clóvis Marques

Editora: José Olympio

Ano: 2017

Antes de começar a fazer esse meu "ano de literatura asiática", eu não fazia ideia de que o García Márquez tivesse tantos discípulos assim no outro lado do mundo. De fato, não é o primeiro livro de realismo mágico feito no oriente que me pego lendo. E Eka Kurniawan capta bem vários dos trejeitos, sejam de estilos ou temáticos, do velho Gabo. Trata-se de um daqueles romances transgeracionais que flagram o desenvolvimento de uma cidade específica, seus personagens típicos, suas lideranças, seus conflitos, seus amores e suas guerras (para nós aqui deste lado do globo, é interessante aprender mais sobre o impacto da Segunda Guerra sobre a Indonésia, país do qual pouco ou nada sabemos). Soma-se a isso o elemento sobrenatural que geralmente associamos à parte mágica do realismo e tem-se um material que, bem conjugado, pode até dar caldo, ainda que não represente nada de essencialmente novo. E, de fato, no primeiro quarto do livro o autor se saiu tão bem que, por um momento, eu cheguei a pensar que ele iria roubar o posto da Isabel Allende, autora de "A casa dos espíritos", o melhor livro do García Márquez escrito por outra pessoa. Essa expectativa, contudo, não se cumpriu, pois, a partir de certa altura, eu achei que ou a estratégia começou a cansar ou a mistura dos elementos não foi exatamente tão boa como poderia ser. Até entendemos que, a exemplo do que o Gabo faz, seja necessário abrir várias "abas" para contar a história particular de cada personagem que aparece na história, mas acho que no livro de Kurniawan isso tirou um pouco do foco da narrativa. A realidade é, de fato, composta por várias trajetórias particulares que, por não sei quais acasos, se cruzam entre si e dessa interação nasce a nossa experiência de vida, mas talvez não fosse necessário que tanta gente tivesse a sua história esmiuçada. Se aparecia um coveiro na história, eu já suspeitava: "Pronto, agora ele vai abrir um capítulo só para contar a história desse coveiro" - e, de fato, algum tempo depois, lá estava o capítulo voltado ao coveiro. Também me incomodou um certo cacoete de estilo, no qual os personagens estavam sempre dizendo ou fazendo coisas propositalmente originais, como que para causar um efeito calculado no leitor. O fato de os personagens serem frequentemente os mais bonitos, os mais feios, os mais valentes, os mais conhecidos, também não me pareceu tão verossímil (mas aí eu preciso me lembrar que se trata de realismo mágico, não de realismo realista). Enfim, há uma unidade no livro, explicada já bem no final, mas ela não chegou a me convencer de que os recursos do escritor tenham sido dispostos da melhor maneira - apesar do incrível primeiro quarto do livro. O livro da Isabel Allende, portanto, permanece em seu posto.

27/09/2020 – MOSAB HASSAN YOUSEF

Livro: Filho do Hamas

Autor: Mosab Hassan Yousef

Tradutor: Marcello Lino

Editora: Sextante

Ano: 2010

Leitura interessante para compreender melhor a origem e a razão dos conflitos entre Palestina e Israel, tanto mais por ser algo escrito por quem esteve exatamente no meio do conflito, seja como palestino e filho de fundador de grupo terrorista ou como colaborador do serviço secreto israelense. A história em si, contudo, não me chamou tanto a atenção quanto outras histórias envolvendo violências pelo mundo. O mais curioso, para mim, era ver de que maneira o autor conseguiu conciliar a realidade que vivia com a do cristianismo que passou a abraçar. Ao fazer a leitura de passagens do Evangelho, ele podia perceber a grande diferença entre aquela mensagem e a realidade que vivia, inclusive tendo identificado supostas incongruências na mensagem do Alcorão. Isso o levou a notáveis mudanças de comportamento, como a de não matar ou consentir com a morte (isso num cenário marcado por terroristas suicidas) e não mentir, muito embora toda a sua atuação como espião israelense constituísse uma grande farsa, ainda que bem intencionada. Imaginei se em algum momento ele citaria o versículo do “não resistais ao mal”, de longe o mais ignorado e desacreditado pelos cristãos, mas ele não chegou a fazê-lo. Não sei então até que ponto a sua interpretação do cristianismo abraça a questão da não violência, embora, é claro, já seja notável o fato de que o terrorismo deixou de ser uma opção válida para ele. O autor também tem o mérito de não se colocar como alguém que se tornou subitamente iluminado e passou a discorrer acertadamente sobre os assuntos em matéria de fé, mas alguém que ainda tem muitos obstáculos na sua caminhada, inclusive estando sujeito a erros variados. Ao verificar a constatação dele sobre as incongruências que identificou entre o texto do Alcorão e a prática cotidiana, não deixo de pensar que, em algum momento, ele deverá perceber também a grande diferença entre a mensagem de Jesus e o que a maioria dos cristãos vive.

04/10/2020 – BANDI

Livro: A acusação

Autor: Bandi

Tradutor: Rogério Galindo

Editora: Biblioteca Azul

Ano: 2018

Eu achava que, além de alguns poucos contos escritos antes da divisão das Coreias, provavelmente eu nunca leria ficção de qualidade feita na Coreia do Norte. Então aparece esse misterioso Bandi, contista norte-coreano que continua vivendo na Coreia do Norte, ou seja, não é um desertor do país, mas alguém que fez com que os seus manuscritos atravessassem a fronteira e ganhassem o mundo. Como seria de se esperar de uma literatura que precisa ser escondida do regime, a de Bandi é essencialmente crítica ao sistema vigente, sem os louvaminhas que, provavelmente, constituem a literatura oficial do país. O autor foca, principalmente, nos dramas familiares, destacando como vidas e sonhos se desmancham ou são mesmo aniquilados pela força e opressão de um governo que não tolera o menor deslize (muitas vezes, o deslize não precisa sequer ser seu, mas o de um parente: isso já é suficiente para manchar o seu próprio histórico e destruir todos os seus projetos de vida). O conto “No palco”, um dos que mais me agradou, é o que apresenta uma poderosa metáfora para explicar o comportamento da sociedade norte-coreana sob o jugo de seus ditadores: todos lá são atores. Desde criança, todo norte-coreano aprende a representar. É vital que assim seja, pois disso depende a própria sobrevivência. Em algum lugar, ainda que escondido o bastante, depois de décadas de assimilação da propaganda do governo, o norte-coreano sabe que algo não está certo no jeito que as coisas são. Muitas vezes, porém, trazer essas coisas à consciência, em um ambiente tão opressor como aquele, pode levar a trágicos desfechos, como o apresentado no conto, pois o próprio indivíduo já introjetou a propaganda e não consegue lidar com as suas próprias contradições. Em outro conto marcante, “Pandemônio”, o próprio ditador norte-coreano faz uma aparição que, a olhos mais inocentes, poderia demonstrar a sua humildade e generosidade, mas sabemos – e o autor mostra isso muito bem – que também ele é um ator e está interessado em provocar um efeito específico e muito bem programado, o qual, uma vez conseguido, será explorado a exaustão pela propaganda do governo. Há um conto sobre o estigma que as crianças herdam pela “subversão” de seus familiares (“Relato de uma deserção”, poderosa narrativa em primeira pessoa), outro em que o próprio bem-estar de um bebê é oposto às exigências do Partido, e nada vale apelar à razão (“Cidade de espectros”), um ainda em que um olmo representa a inútil esperança pelos dias de prosperidade que não virão (“A vida de um Corcel veloz”), outro em que um filho não consegue autorização para viajar e ver a mãe à beira da morte (“Tão perto, tão longe”) e mais um em que nem a inquestionável dedicação de um homem é suficiente quando o Partido precisa arrumar um bode expiatório (“O cogumelo vermelho”). Em meio a todos esses contos, é apresentada toda uma realidade de opressão e constante vigília, com restrições tão severas à liberdade que nós chegamos a nos admirar por viver no mesmo mundo em que tais coisas ainda acontecessem. Agora falando em termos especificamente literários, Bandi gosta de dar vários saltos narrativos, indo e vindo na trama e abrindo novas abas na história. Embora isso possa ter rendido alguns bons resultados, eu confesso que gostaria de ter lido pelo menos alguns contos escritos de maneira tradicional, ou seja, em uma narrativa linear, porque tenho a impressão de que algumas histórias ganhariam força assim. Já em relação ao desafio de fazer uma literatura que é abertamente “intencional”, com os mesmos riscos de uma que é panfletária, parece-me que Bandi se saiu bem, conseguindo aliar habilmente a sua motivação para escrever com os recursos que o seu talento literário lhe sugeria. Além do mais, convenhamos, seria difícil achar motivo mais válido para uma literatura intencional do que o que se vive na Coreia do Norte. Vale, portanto, a leitura, e vale estar com a “questão da Coreia do Norte” sempre em mente, porque o que se vive lá é, também, problema nosso, pois é a humanidade como um todo que sofre naquele regime.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 31/12/2020
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