Diário das minhas leituras/54

17/10/2020 – KIM YOUNG-HA

Livro: Flor negra

Autor: Kim Young-Ha

Tradutor: Ana Carolina Mesquita (a partir do inglês)

Editora: Geração

Ano: 2013

Considero esse um grande trabalho de reconstrução de um episódio bastante interessante, mas que já havia caído no esquecimento: a imigração de mil coreanos para o México, o tratamento como escravos que receberam lá e, mais tarde, a improvável criação de uma "Nova Coreia" em plena selva da Guatemala. Não é fácil criar em cima de eventos reais, sobretudo quando não há muitas fontes disponíveis para consulta, mas parece-me que o trabalho de Kim Young-ha alcançou um resultado verossímil e, não menos importante, de leitura agradável. Verdade que, de início, há uma certa confusão até conseguirmos nos ambientar com os personagens apresentados pelo autor, mas a partir do momento em que o navio deixa a Coreia, e nós acompanhamos a sua trajetória até o México, a história passa a ficar bem interessante e nós conseguimos visualizar o drama daquelas famílias, que vinham de todas as classes sociais, mas compartilhavam de um único sofrimento. Também nos primeiros momentos no México, quando todos os coreanos foram repartidos entre várias fazendas de sisal, a história dos personagens é envolvente, na medida em que acompanhamos a sua terrível rotina de exploração, além de certos dramas pessoais. Sinto, contudo, que a história perde um pouco o fôlego a partir do fim do período de contrato de quatro anos dos coreanos, quando então o tema principal passa a ser a situação política no México, mas entendo que tudo isso era importante para chegar até o momento em que um grupo de coreanos decide fundar um nova Coreia na Guatemala. Há também um pouco de realismo mágico, mas muito bem dosado, sem o exagero de algumas produções asiáticas. A leitura é ágil e sem problemas, embora se deva ressaltar que a tradução vem do inglês, e não do coreano. De toda forma, é um episódio histórico muito interessante de se conhecer.

17/10/2020 – ARAVIND ADIGA

Livro: O tigre branco

Autor: Aravind Adiga

Tradutor: Alice Rocha

Editora: Editorial Presença (Portugal)

Ano: 2009

É uma espécie de "Crime e Castigo" da Índia, transposto para a realidade de desigualdade daquele país (que não é tão diferente da realidade brasileira, afinal). Aqui, o crime não encontra a sua justificativa em alguma inquietude metafísica e existencial, mas na necessidade prática do personagem em sobreviver, negando com isso a posição animalesca a que estava destinado pelo seu próprio nascimento em uma casta baixa. O personagem usa a poderosa metáfora do "galinheiro" para expressar a realidade de exploração da sua classe. A realidade do galinheiro estava tão entranhada na sociedade que as suas próprias vítimas se comportavam como se essa fosse a única realidade possível. É muito interessante a constatação de que a perpetuação do galinheiro era um fenômeno que acontecia também pelo lado de dentro. Pois o personagem decidiu sair do galinheiro! Não conseguiu fazer isso, não conseguiu se tornar um homem sem trazer nas costas uma morte, mas também é bastante interessante a sugestão de que os outros, isto é, as classes mais abastadas, construíram e mantiveram os seus impérios por meio de muitas outras mortes, ainda que mais sutis e silenciosas, mas nem por isso menos cruéis. Ele, no entanto, havia precisado de uma única para conseguir "mudar de lado" e ter uma vida mais decente. Naturalmente, tudo isso demandou também uma série de corrupções. Aqui, mais uma vez, a realidade apresentada lembra a do Brasil, onde o dinheiro é quem dita quem será ou não punido, quem terá direitos e quem estará condenado a uma vida praticamente animalesca. De início, achei que seria um livro essencialmente humorístico, praticamente um besteirol com acento crítico. Houve, de fato, umas sacadas divertidas no início, mas conforme a leitura avançada eu fui percebendo que não era tão engraçado assim, que era inclusive bastante triste, e aí o interessante já era mais a história do que as piadas e os recursos estilísticos. Ainda assim, também esses recursos são originais e bem engendrados. O personagem, que é também o narrador, apresenta-se com aquela certa dose de loucura que muitas vezes é o único meio possível para se dizer as verdades inconvenientes, mas necessárias. Acompanhamos o pobre Balram como motorista de uma família privilegiada e percebemos nas constantes humilhações que ele passa muito daquele espírito de "você sabe com quem está falando" que tão bem caracteriza o comportamento de certa elite também do Brasil.O crime de Balram foi um meio de ajudar a "meritocracia", que por si só seria incapaz de fazer com que ele crescesse na vida. Outros crimes seriam necessários para mantê-la. O Brasil, realmente, tem mais em comum com a Índia do que gostaria de admitir.

12/11/2020 – MUHSIN AL-RAMLI

Livro: Los jardines del presidente

Autor: Muhsin Al-Ramli

Edição espanhola

Ano: 2013

O lindo livro desse iraquiano foi a primeira obra que li integralmente em espanhol. Estava muito difícil achar o livro de algum escritor iraquiano em português, então decidi arriscar-me com esse em espanhol. Não apenas me saí bem na leitura como inclusive gostei pra caramba do livro. O livro acompanha a trajetória de três amigos iraquianos. O niilista Abdula "Kafka", o ingênuo Ibrahim e o religioso Talek. Cada um com as suas personalidades e seus dramas. Em comum, no entanto, o fato de não serem senhores do seu destino. De fato, uma das lições mais marcantes do livro é o quanto a nossa vida é decidida por circunstâncias que escapam à nossa vontade, algumas delas surgidas antes mesmo do nosso nascimento. Não é fácil ao ser humano se assenhorar do seu próprio destino. E menos ainda em um ambiente como o do Iraque no tempo de Saddam Hussein. Sim, é ele o "presidente" que dá nome ao livro, mas, coisa interessante, o seu nome não é mencionado uma única vez. De todo modo, é ele que encabeça os conflitos com o Irã, o Kuwait e os Estados Unidos que irão influenciar decisivamente a vida daqueles três amigos, cada um ao seu modo. Sob o regime de Saddam, há o esplendor dos palácios e dos jardins, mas há - principalmente - a crueldade com os opositores do regime. O livro não poderia, portanto, deixar de citar muitos desses momentos horrendos, mas é ainda um livro bonito, pois há uma nota terna a permear toda a história, a luta de cada um para manter a sua porção de humanidade. Os dramas familiares, os segredos revelados, as incompreensões entre as gerações, a simplicidade de Ibrahim, a desesperança de Abdula, o voluntarismo de Talek, tudo isso rende momentos comoventes, reflexivos e bem engedrados na trama elaborada pelo autor. Principalmente Ibrahim e Abdula são dois fortes personagens, bem construídos e de atuação marcante – Ibrahim, o homem responsável por enterrar com dignidade as pessoas vitimadas violentamente pelo regime, Abdula, o órfão cuja perversa trama familiar das suas origens é subitamente revelada, o que contribui para explicar a sua posição cínica diante da vida. Um livro, enfim, que faz falta em português brasileiro (eu vi que já há uma versão em Portugal, certamente porque o autor vive na vizinha Espanha). Um autor que faz falta no Brasil.

12/11/2020 – RAJAA ALSANEA

Livro: Chicas de Riad

Autor: Rajaa Alsanea

Edição espanhola

Ano da versão original: 2005

Quem diria que de um país tão restritivo como a Arábia Saudita sairia uma jovem mulher cuja escrita iria me remeter a um dos antigos clássicos da literatura inglesa! De fato, o que Rajaa Alsanea faz nesse seu livro de estreia me lembrou de “Tom Jones”, obra essencial de Henry Fielding, escrita nos 1700. De certo modo, ela “atualizou” alguns dos métodos de Fielding, afinal, trata-se de obra do século XXI, no qual a internet desempenha um papel fundamental na comunicação (inclusive na Arábia Saudita!). Assim como na obra do escritor inglês, Rajaa intercala “capítulos metalinguísticos” à história que narra. Essa história é disposta na forma de e-mails, enviados semanalmente a um grupo cada vez maior de sauditas. A cada semana, antes de dar prosseguimento à narrativa, a autora repercute a recepção do e-mail anterior e, a exemplo de Fielding, dialoga com as próprias estratégias usadas para contar a sua história. O que dá um sabor especial e único a essas intervenções da narradora é o fato de permitir que nós tenhamos contato com o pensamento contemporâneo na Arábia Saudita – falemos a verdade: tudo o que sabemos acerca do país, no caso de sabermos alguma coisa, é apenas um punhado de chavões. No diálogo que faz com os leitores e consigo mesma, podemos entender melhor como exatamente vivem os sauditas. Também como no caso de Fielding, a história de Rajaa é, basicamente, sobre o amor. Na história de Tom Jones, o autor descreveu de forma irônica o que poderia ser entendido como o próprio tema daquela obra: “a tolice do amor e a sabedoria da prostituição legal” – querendo dizer, com isso, o casamento por interesses. Na história das garotas de Riad, trata-se de um embate entre a tolice do amor e a sabedoria da tradição e das convenções culturais. São quatro garotas universitárias (vocês sabiam que há garotas universitárias na Arábia Saudita?) que vivem às voltas com os problemas do coração. Como os jovens e as jovens de todas as partes do mundo, também elas buscam um parceiro e um companheiro a quem amar e ao lado de quem viver talvez por toda a vida. Entretanto, ali elas esbarram numa rígida estrutura cultural que faz com que os homens, mesmo aqueles aparentemente mais abertos, sucumbam diante da tradição e, por fim, prefiram atender às disposições familiares do que os seus sentimentos amorosos. Muitos homens da história agem como verdadeiros canalhas, o que, na verdade, aproxima a história do Ocidente. De fato, há muitos comportamentos lamentáveis dos homens ali que nós vemos todos os dias também por aqui. Como Fielding, o que Rajaa faz é uma defesa do amor face aos preconceitos de uma sociedade. Ao fazer isso, damo-nos conta de que há, mesmo na Arábia Saudita, um grupo de mulheres muito inteligentes, estudiosas, capacitadas, articuladas, progressistas, tão sedentas de amor genuíno como nós e bem mais corajosas que a maior parte dos homens que ali vivem. Apesar de, na maior parte das vezes, a estrutura da sociedade prevalecer, o comportamento dessas garotas é motivo de esperança não apenas para o país, mas para a própria humanidade, visto que expõem o quanto somos semelhantes em nossa essência, a despeito do estrago que as culturas possam fazer com as nossas cabeças. Vivam as garotas de Riad! Dito isso, não posso deixar de lamentar o nome escolhido para o livro em português, pois “Vida dupla” faz sugerir um tipo de falsidade não aplicável a essas mulheres, além de não fazer referência ao amor que é o verdadeiro tema do livro. Antes tivessem ficado com o básico “Garotas de Riad”.

30/11/2020 – RAFIK SCHAMI

Livro: Narradores de la noche

Autor: Rafik Schami

Edição espanhola

Ano da versão original: 1989

É uma celebração da arte de contar histórias. A verdade é que o ser humano não pode passar muito tempo sem elas e todos nós contamos várias delas o tempo todo (assim que chegamos em casa, por exemplo, queremos contar o que vimos na rua). Há pessoas que refinam tanto as histórias que se tornam mestres nessa arte, como havia na Damasco retratada por Rafik Schami. Mas eis que um dos melhores contadores de histórias da cidade se torna subitamente mudo. Seus sete amigos tentam de tudo para fazer com que retome a fala, até que chegam a conclusão de que deveria cada um deles contar a sua própria história. Então eles, que até então eram ouvintes, passam a ser contadores improvisados de histórias. O livro apresenta as histórias desses homens, mas também muitas outras que se entrecruzam, e chega até a ser engraçado como uma história dá origem a outra, que dá origem à outra, que dá origem à outra, e se não houver concentração acaba-se perdendo de vista a história original. A nossa ânsia de conhecer histórias parece não ter fim. Há histórias mágicas, há histórias tristes, há histórias divertidas. Chamo a atenção, especialmente, para uma em que o contador se esforça para convencer aqueles homens da Síria da realidade que encontrou nos Estados Unidos e eles não acreditam, acham absurdo demais que os americanos vivam tão selvagemente como ele sugere... Esse conflito cultural é bem interessante. Também é um bom momento quando quem conta a história é uma mulher.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 31/12/2020
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