Sharp, Gene. Da ditadura à democracia - Trechos. (Leitura em andamento, iniciada em 07/11/21)

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Sharp, Gene. Da ditadura à democracia: conceitos fundamentais para a libertação: tradução de André Gonçalves Fernandes. 1 ed. Campinas, SP: Vide Editorial, 2021. 120p

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Há muitos anos que uma das minhas maiores preocupações tem sido como ajudar as pessoas a evitar e destruir ditaduras. [1]

Essas ditaduras foram impostas em nome da libertação da opressão e da exploração. [2]

Foi de tibetanos que lutaram contra a agressão comunista chinesa, de russos que haviam derrotado o golpe de agosto de 1991, dado pelos defensores da linha dura, e de tailandeses que bloquearam sem violência o retorno ao regime militar que obtive perspectivas preocupantes sobre a natureza insidiosa (traiçoeira) das ditaduras. [3]

Às vezes, eu visitava os locais dos mortos [...], o centro de Ferrara, onde os fascistas enfileiravam opositores para os fuzilar [...]. Toda ditadura deixa morte e destruição em seu rastro. [4]

O foco deste ensaio está no problema genérico de como destruir uma ditadura e impedir o surgimento de uma nova. [5]

Muitas vezes consideradas solidamente entrincheiradas e inexpugnáveis (invencíveis), algumas dessas ditaduras mostram-se incapazes de suportar o desafio político, econômico e social combinado do povo. [6]

Desde 1980, observamos ditaduras ruírem perante a oposição predominantemente não-violenta de pessoas da Estônia, Letônia e Lituânia, Polônia, Alemanha Oriental, Tchecoslováquia e Eslovênia, Madagascar, Mali, Bolívia e Filipinas. E a resistência não-violenta acelerou o movimento de democratização no Nepal, na Zâmbia, na Coreia do Sul, Chile, Argentina, Haiti, Brasil, Uruguai, Malawi, Tailândia, Bulgária, Hungria, Zaire, Nigéria e várias partes da antiga União Soviética (tendo desempenhado um papel significativo na derrota da tentativa de golpe de agosto de 1991 por parte da linha dura. [7]

* Golpe de agosto, Putsch de Moscou. Tentativa de afastar Mikhail Gorbachev.

Houve insubordinação política em massa na China, na Birmânia e no Tibete nos últimos anos. [8]

* Insubordinação política – termo introduzido por Robert Helvey, é uma luta não-violenta aplicada de forma desafiadora e ativa para fins políticos e descreve a ação das populações para recuperar das mãos das ditaduras o controle sobre as instituições governamentais, atacando incansavelmente suas fontes de poder e valendo-se de forma deliberada de planejamento e operações estratégicas. (Nota de rodapé, p.14)

Grupelhos de militares, indivíduos ambiciosos, representantes eleitos e partidos políticos doutrinários procurarão repetidamente impor sua vontade. Golpes de Estado são e permanecerão uma ocorrência comum. Direitos humanos e políticos básicos continuarão a ser negados a um grande número de povos. [9]

Em casos extremos, as instituições sociais, políticas, econômicas e até religiosas da sociedade – fora do controle social – foram propositalmente enfraquecidas, submetidas ou mesmo substituídas por novas instituições regimentadas, usadas pelo Estado ou partido governante, para controlar a sociedade. Muitas vezes, a população também foi atomizada (transformada numa massa de indivíduos isolados), tornando-se incapaz de trabalhar em conjunto para alcançar a liberdade, de demonstrar confiança mútua ou fazer qualquer coisa por iniciativa própria. [10]

O resultado é previsível: a população torna-se fraca, carece de autoconfiança e é incapaz de resistir. As pessoas quase sempre estão assustadas demais para expressar seu ódio à ditadura e sua fome de liberdade, mesmo para familiares e amigos. Às vezes, estão mesmo apavorados demais para chegar a cogitar de verdade a possibilidade de resistir publicamente. Em todo caso, de que lhes adiantaria? Por isso, encaram um sofrimento sem sentido e um futuro sem esperança. [11]

Atos de resistência do passado quase sempre se revelaram insuficientes para superar o medo e o hábito de obediência condicionada das pessoas, um dos pré-requisitos da destruição de uma ditadura. Infelizmente, esses atos podem ter trazido um aumento no sofrimento e na morte, e não vitórias ou mesmo esperança. [12]

As barreiras constitucionais e legais, as decisões judiciais e a opinião pública são normalmente ignoradas pelos ditadores. É compreensível que, perante brutalidades, torturas, desaparecimentos e assassinatos, muitos concluam que apenas a violência é capaz de acabar com uma ditadura. Algumas vezes, vítimas zangadas chegaram a organizar-se para combater ditadores brutais com quaisquer meios violentos e qualquer capacidade militar de que conseguissem dispor, apesar de terem todas as chances contra si. Essas pessoas costumavam lutar bravamente, com grande custo em sofrimento e vidas. Seus feitos às vezes foram notáveis, mas raramente conquistaram a liberdade. Rebeliões violentas podem desencadear uma repressão brutal que com frequência deixa a população mais desamparada do que antes. [...] Quem deposita sua confiança em meios violentos opta pelo tipo de luta em que os opressores quase sempre lhe são superiores. Os ditadores estão prontos para aplicar a violência de forma esmagadora. Não importa se a luta dos democratas dura mais ou menos tempo, as duras realidades militares acabam por tornar-se inevitáveis. Os ditadores quase sempre levam vantagem em termos de equipamento, munição, transporte e contingente. Apesar da coragem, os democratas (quase sempre) não são páreo para tudo isso. [13]

Caso as guerrilhas saiam-se vencedoras, o novo regime é muitas vezes mais ditatorial do que o anterior devido ao impacto centralizador das forças militares ampliadas e ao enfraquecimento ou destruição dos grupos e instituições independentes da sociedade durante a luta – órgãos vitais para o estabelecimento e manutenção da sociedade democrática. [14]

Sob uma ditadura, as eleições, é claro, não são um instrumento de mudança política significativa. Alguns regimes ditatoriais, como os do antigo Bloco Oriental dominado pelos soviéticos, realizam processos para parecerem democráticos. Suas eleições, no entanto, não passavam de plebiscitos rigidamente controlados a fim de fazer o povo endossar candidatos já escolhidos a dedo pelos ditadores. Ditadores sob pressão podem, às vezes, autorizar novas eleições, que depois fraudam para colocar marionetes civis em cargos de governo. Caso os candidatos de oposição recebam permissão para concorrer e cheguem até a ser eleitos, como ocorreu na Birmânia em 1990 e na Nigéria em 1993, o resultado pode ser simplesmente ignorado, e os “vencedores” estarão sujeitos a intimidação, prisão ou mesmo execução. Os ditadores não se interessam em eleições que possam removê-los de seus tronos. [15]

É perfeitamente compreensível que alguns ponham sua esperança de libertação nos outros. essa força externa pode ser a “opinião pública”, as Nações Unidas, um país em particular ou mesmo sanções econômicas e políticas internacionais. [...] No geral, não há salvadores externos que esperar. E se um país intervém, é provável que não seja confiável. [16]

Os Estados estrangeiros só podem participar ativamente para fins positivos somente se e quando o movimento interno de resistência já começar a sacudir a ditadura, concentrando assim a atenção internacional na natureza brutal do regime. [17]

As ditaduras geralmente existem principalmente por causa da má distribuição de poder político e econômico no país. A população e a sociedade são fracas para causar sérios problemas à ditadura. Riqueza e poder estão concentrados em algumas mãos. Embora as ditaduras possam se beneficiar um pouco das ações internacionais, sua continuação depende principalmente de fatores internos. [18]

Quando se quer derrubar uma ditadura da maneira mais eficaz e com o menor custo, há quatro tarefas imediatas: fortalecer a determinação, a autoconfiança e a capacidade de resistência da própria população oprimida; fortalecer os grupos sociais e as instituições independentes de que o povo oprimido dispõe; criar uma poderosa força de resistência interna; e desenvolver um grande e inteligente plano estratégico para a libertação e implementá-lo com maestria. [19]

Não adianta buscar apoio no governo. Vocês devem apoiar-se apenas na própria determinação. Ajudem-se permanecendo unidos. Fortaleçam os fracos dentre vocês. Juntem-se, organizem-se e vencerão. Quando vocês tornarem a questão madura para receber uma solução, então e só então ela será solucionada. [20]

A libertação das ditaduras depende, em última análise, da capacidade das pessoas de libertarem-se a si próprias. [21]

Algumas pessoas podem querer voltar à submissão passiva. Outras, sem perspectiva de alcançar a democracia, podem concluir que devem chegar a um acordo com a ditadura aparentemente permanente, na esperança de conseguir, por meio de “conciliação”, “meios-termos” e “negociações”, resgatar alguns elementos positivos e dar fim à brutalidade. [22]

É possível argumentar que os ditadores poderiam ceder a uma solução do tipo win-win, em que todo mundo ganha alguma coisa. [23]

As negociações são uma ferramenta muito útil para resolver certos tipos de problemas em conflitos e não se deve negligenciá-las ou rejeitá-las quando convierem. Em algumas situações – quando não há questões fundamentais em jogo e, portanto, o meio-termo é aceitável –, as negociações podem ser uma maneira importante de resolver um conflito. Uma greve por salários mais altos é um bom exemplo do papel adequado das negociações em um conflito: um acordo negociado pode proporcionar um aumento entre os valores originalmente propostos por cada um dos lados adversários. Os conflitos trabalhistas com sindicatos legais, são, no entanto, bem diferentes dos conflitos em que a existência contínua de uma ditadura cruel ou o estabelecimento de liberdade política está em jogo. [24]

Quando as questões em jogo são fundamentais, afetando princípios religiosos, questões de liberdade humana ou todo o desenvolvimento futuro da sociedade, as negociações não constituem uma maneira de alcançar uma solução mutuamente satisfatória. [...] O ponto é que as negociações não são uma maneira realista de derrubar uma ditadura forte na ausência de uma oposição democrática poderosa. [25]

Quando uma ditadura propõe à oposição democrática uma “paz” negociada, está, é claro, agindo de maneira bastante enganosa. [26]

As negociações só aparecem de maneira adequada ao final de uma luta decisiva, quando o poder dos ditadores foi efetivamente destruído e eles desejam apenas chegar em segurança a algum aeroporto internacional. [27]

“Negociação” não significa que dois lados se sentam juntos e em pé de igualdade para discutir e resolver as diferenças que causaram os conflitos entre eles. É preciso recordar dois fatos. Primeiro: nas negociações, não é a justiça relativa das visões e objetivos conflitantes que determina o conteúdo de um acordo negociado. Segundo: o conteúdo de um acordo negociado é amplamente determinado pela força de cada lado. [...] Se houver acordo, é mais provável que ele seja resultado da comparação de forças que cada um dos lados faz para depois tentar estimar como uma luta aberta entre ambos terminaria. [28]

O tirano só tem o poder de nos infligir (obrigar a suportar) aquilo a que nos falta força para resistir. [29]

É a resistência, e não a negociação, que é essencial para a mudança em conflitos onde questões fundamentais estão em jogo. Em quase todos os casos, a resistência deve ser contínua se quiser retirar os ditadores do poder. Não é a negociação de um acordo que costuma determinar o sucesso, mas o uso inteligente dos meios adequados e poderosos meios de resistência disponíveis. [...] A insubordinação política, ou a luta não-violenta, é o meio mais poderoso disponível para aqueles que lutam pela liberdade. [30]

Nem todos que usam a palavra “paz” querem paz com liberdade e justiça. [...] Hitler costumava fazer apelos à paz, que para ele significava submissão à sua vontade. A paz de um ditador muitas vezes não passa da paz de uma prisão ou de uma sepultura. [31]

As formas de governo menos duradouras entre todas são a oligarquia e a tirania. [...] Em sua maior parte, as tiranias não duram muito. [32]

As negociações não são a única alternativa entre uma guerra destrutiva contínua, por um lado, e a rendição, por outro. [...] Existe outra opção para quem quer paz e liberdade: a insubordinação política. [33]

Alguns homens no mundo governam seu povo por truques e não por princípios justos. [...] Acontece que não têm ciência da própria obtusidade. Assim que seu povo se torna iluminado, seus truques deixam de funcionar. [34]

Os ditadores precisam da ajuda do povo que governam; sem ele, são incapazes de conquistar e manter as fontes do poder político. [35]

O grau de liberdade ou tirania em qualquer governo é, por conseguinte, reflexo da determinação relativa dos governados a serem livres e da sua vontade e capacidade de resistir aos esforços de escravização. [36]

O poder totalitário só é forte quando não precisa ser usado com demasiada frequência. Se é necessário valer-se dele o tempo todo contra a população, é improvável que permaneça forte por muito tempo. Como os regimes totalitários requerem mais poder para lidar com o povo do que outros tipos de governo, precisam muito mais de hábitos de conformidade amplos e previsíveis por parte dos governados; mais do que isso: precisam contar com o apoio ativo de pelo menos partes significativas da população, em caso de necessidade. [37]

Se a maioria da população estiver determinada a destruir o governo e disposta e disposta a suportar a repressão, o poder do governo, incluindo o de seus apoiadores, não poderia preservar o regime odiado, ainda que este contasse com ajuda estrangeira. [...] Um povo insubordinado não podia ser forçado a voltar à obediência e à sujeição permanentes. [38]

Três dos fatores mais importantes para determinar em que grau o poder de um governo estará ou não sob controle são: (1) o desejo relativo da população de impor limites ao poder do governo; (2) a força relativa das organizações e instituições populares independentes para bloquear coletivamente o acesso da ditadura às fontes de poder; e (3) a capacidade relativa da população para sonegar consentimento e assistência. [39]

Uma das características de uma sociedade democrática é a existência, de maneira independente do Estado, de uma miríade (grande número) de grupos e instituições não-governamentais. [...] Indivíduos isolados, que não são membros de tais grupos, geralmente são incapazes de causar um impacto significativo no resto da sociedade, muito menos num governo e, certamente, não numa ditadura. Consequentemente, se os promotores do regime ditatorial conseguirem retirar a autonomia e a liberdade desses órgãos, a população ficará relativamente indefesa. Além disso, se essas instituições vierem a ser ditatorialmente controladas pelo regime central – ou substituídas por novas sob o controle estatal –, poderão ser usadas para dominar cada um de seus membros e as áreas da sociedade a que estão voltadas. Contudo, se a autonomia e a liberdade dessas instituições civis independentes (fora do controle do governo) forem preservadas ou recuperadas, elas serão extremamente importantes para a prática da insubordinação política. [40]

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[1] Sharp, Gene. Da ditadura à democracia: conceitos fundamentais para a libertação: tradução de André Gonçalves Fernandes. 1 ed. Campinas, SP: Vide Editorial, 2021. p. 9

[2] Cf. Sharp, Gene, Op. cit., p. 10.

[3] Cf. Sharp, Gene, Op. cit., p. 10.

[4] Cf. Sharp, Gene, Op. cit., p. 10.

[5] Cf. Sharp, Gene, Op. cit., p. 11.

[6] Cf. Sharp, Gene, Op. cit., p. 13.

[7] Cf. Sharp, Gene, Op. cit., p. 13.

[8] Cf. Sharp, Gene, Op. cit., p. 14.

[9] Cf. Sharp, Gene, Op. cit., p. 15.

[10] Cf. Sharp, Gene, Op. cit., p. 16.

[11] Cf. Sharp, Gene, Op. cit., p. 16.

[12] Cf. Sharp, Gene, Op. cit., pp. 16-17.

[13] Cf. Sharp, Gene, Op. cit., p. 17.

[14] Cf. Sharp, Gene, Op. cit., p. 18.

[15] Cf. Sharp, Gene, Op. cit., p. 19.

[16] Cf. Sharp, Gene, Op. cit., p. 20.

[17] Cf. Sharp, Gene, Op. cit., p. 20.

[18] Cf. Sharp, Gene, Op. cit., p. 21.

[19] Cf. Sharp, Gene, Op. cit., p. 21.

[20] CHARLES STEWART PARNELL apud Sharp, Gene, Op. cit., p. 22.

[21] Cf. Sharp, Gene, Op. cit., p. 22.

[22] Cf. Sharp, Gene, Op. cit., p. 23.

[23] Cf. Sharp, Gene, Op. cit., p. 24.

[24] Cf. Sharp, Gene, Op. cit., p. 24.

[25] Cf. Sharp, Gene, Op. cit., p. 25.

[26] Cf. Sharp, Gene, Op. cit., p. 26.

[27] Cf. Sharp, Gene, Op. cit., p. 26.

[28] Cf. Sharp, Gene, Op. cit., p. 27.

[29] KRISHNALAL SHRIDHARANI apud Sharp, Gene, Op. cit., pp. 28-29.

[30] Cf. Sharp, Gene, Op. cit., p. 29.

[31] Cf. Sharp, Gene, Op. cit., p. 29.

[32] ARISTÓTELES apud Sharp, Gene, Op. cit., p. 30.

[33] Cf. Sharp, Gene, Op. cit., p. 31.

[34] YU-LI-ZI apud Sharp, Gene, Op. cit., p. 34.

[35] Cf. Sharp, Gene, Op. cit., p. 34.

[36] Cf. Sharp, Gene, Op. cit., p. 36.

[37] KARL W. DEUTSCH apud Sharp, Gene, Op. cit., p. 36.

[38] JOHN AUSTIN apud Sharp, Gene, Op. cit., p. 37.

[39] Cf. Sharp, Gene, Op. cit., pp. 37-38.

[40] Cf. Sharp, Gene, Op. cit., pp. 38-39.

Gene Sharp
Enviado por Nijair Araújo Pinto em 07/11/2021
Reeditado em 15/11/2021
Código do texto: T7380433
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