Precisamos falar sobre o Kevin (We need to talk about Kevin - 2003 - Lionel Shriver)

Precisamos falar sobre o Kevin

Não sou muito chegado a ler jornal aos domingos, mas sempre que almoço na casa da minha avó pego aquela Revista que vem junto ao O Globo para dar uma olhada. Geralmente perco tempo vendo as novas tendências da moda e me divirto com o Xexéo. Mas dia desses bati o olho na coluna da Martha Medeiros e ela estava recomendando esse livro, não o comprei pela recomendação, mas o comprei por como a recomendação foi feita.

O livro trata principalmente da jornada de uma mãe, novaiorquina e bem sucedida, que teve o desprazer de ser a mãe de um garoto fora dos padrões e iria protagonizar mais uma daquelas matanças em escolas que viraram mania alguns anos atrás, quando o ápice de casos teve realidade. Ainda hoje temos incidentes ocasionais desse tipo.

A facilidade com que lemos o livro é contraposta exatamente pela dificuldade de que temos em ler as memórias, escritas em formas de carta, da mãe, que para variar um pouco não é nenhuma iletrada, cheia de preconceitos ou, ainda, uma daquelas pessoas que sai culpando deus e o mundo pelo que acontece a si mesma. Pelo fato de não ser uma pessoa religiosa a pieguice de entrar em uma discussão sobre o bem e mal também não cai na mesmice, e assim a cada carta escrita, endereçada a seu marido, vamos conhecendo em retrospecto a vida daquela mulher.

Descendendo de armênios ela é a criadora de um guia de viagens para pessoas aventureiras que visam viajar e gastar pouco dinheiro, e para isso ela tem que viajar pelos mais remotos lugares do planeta e verificar in loco as locações que pode recomendar. Com isso passava temporadas inteiras viajando. O que deixa duas conseqüências mais palpáveis. Sua visão pouco apegada aos Estados Unidos e uma presença ausente no relacionamento que tem com seu marido.

Tudo muda de figura quando eles resolvem ter um filho. Essa geração de outrem que é base constituinte de todas as famílias acaba por determinar ferrenhamente o rumo da vida da narradora. Ela, como todas as outras pessoas, não se vê preparada para essa ingrata tarefa que é cuidar e educar outra pessoa. Dedicar-se em tempo integral à penosa tarefa de dar condições mínimas aquele ser pequeno de se tornar um ser humano é o assunto principal do livro.

Ainda mais quando o pequeno ser que se cuida já tem pronto dentro de si determinações cujas são impossíveis de se mudar. Kevin, o filho desnaturado, viria a ser o karma central da sua existência, desde o nascimento até o dia em que comete a atrocidade. Vê-se como as pessoas são incapazes de se entenderem, de entrarem profundamente na cabeça das outras, e se por uns breves momentos essa distância diminui, durante a maioria do tempo ela permanece tão longa que somente o fato de viver já é uma tarefa ingrata.

Tecendo seus comentário através de sua análise do mundo que a rodeia, a moral meio torta, a vontade inenarrável de culpar alguém, a vontade de ser diferente, nem que isso signifique ser diferente em níveis profundamente deturpados, a ânsia de se destacar e outras deformidades de nossos tempos, Eva vai desconstruindo o mundo a sua volta e a si mesma em busca de uma pergunta, que como ela mesma diz todos tem a curiosidade suprema, porquê?

Nunca desistindo de visitar seu filho na prisão, já que foi condenado a somente alguns anos de prisão, pois era menor de idade na época em que comandou a carnificina, ela busca incansavelmente olhar atrás da sua mascara, e sabe-se que por trás daquele garoto de semblante indiferente, inteligentíssimo, sempre irritado, sempre insosso, há alguém que busca desesperadamente por alguma coisa que ainda não sabe.

Se a busca da mãe, depois que se torna uma pária, é por alguma luz do porque daquilo tudo, ela nunca deixa de se colocar como cerne de tudo, nunca se eximindo de nenhuma culpa, colocando os fatos de forma crua e demonstrando toda sua incapacidade para lidar com eles, como se sempre estivesse um passo atrás dos acontecimentos.

Devido à alta qualidade do texto, já que é uma pessoa de certa erudição, Eva sabe colocar muito bem seus argumentos, suas observações e divagações. Deixando sempre o leitor com certa apreensão pela incapacidade e incompreensão alheia mostrada. Principalmente por seu marido, que compreensivo ao extremo, acredita sempre que seu papel como pai é, principalmente, dar a seu filho tudo o que ele precisa para ser alguém feliz e sucedido na vida. Ignorando, de forma cabal, a vida interna daquela pessoa que ele conhece tão pouco e ignora esse fato em mesma medida.

Reconstruindo, e com isso desconstruindo, toda a sua jornada desde o nascimento de Kevin, Eva vai nos brindar com sua luta diária e cansativa para se encaixar nos moldes de uma mãe. Já que como ela mesma diz, não sente naturalmente nenhum amor e nenhum afeto por aquela criança que deu à luz. Ela simplesmente não estava preparada ou não tinha essas ânsias maternais que todas as mulheres parecem ter. Seria o ideal a fazer simplesmente assumir a atitude de quem realmente não nutre nenhum amor pelo filho? Seria isso aceitável pela sociedade? Por seu marido? Fingir é melhor?

No fim, vemos que a hipocrisia se veste de todos os moldes, seja ela forçada pela mãe que finge amar seu filho, seja no pai que realmente acha que ama seu filho, seja na professora que nutre um interesse descomunal naquele estudante meio estranho, na afetação amável da pequena irmã. Rodeados por pessoas que fingem viver enquanto a vida os solapa, as vezes se percebe em uma situação sem voltas, ainda mais quando envolve mortes, a única coisa sem volta que é definitiva, marcante, dolorosa e fria, pois sem sentido, aliás sem sentido intrínseco, pois para Kevin todo o sentido há naquela matança, mesmo que ele ache que saiba, e no fundo é isso, não existe sentido no que vivemos, no que fazemos, nós fazemos nosso sentido e de vez em quando, nosso sentido é totalmente banal, totalmente esdrúxulo, nosso sentido é só nosso, e isso dói, mais que tudo.

leandroDiniz
Enviado por leandroDiniz em 08/01/2008
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