Impressões - Antígona - de Sófocles

Impressões Sobre a peça Antígona - de Sófocles

Subo as escadas do Teatro Dulcina e sou recepcionada por dois jovens belíssimos vestidos de terno escuro, me sorriem sutilmente dando boas vindas. Tenho a impressão de serem dois fantasmas vagando pelo teatro, esses fantasmas de família que vem recontar sua história de um tempo muito pretérito, mas eles eram de verdade, eu mesma vi, depois tirando meus olhos meio tímidos-desconfiados, me estranho perguntando a mim mesma: “o que eles estão fazendo ali? Parecem fantasmas!”, meu olhar vaga pela escadaria de tapete vermelho, subo como uma convidada para algo que talvez eu não saia de lá intacta. Ou seja, talvez não saia do mesmo modo que entrei.

Sento na poltrona em frente ao palco e depois de três vezes tocada a sineta, os atores-personagens entram em cena vindo lá de trás (de um tempo antigo), com suas histórias que também são as nossas, saindo do corredor lateral direito do espaço da plateia (significando que os personagens são tirados do povo, da realidade concreta da vida de todos nós) e caminham subindo até ao palco, eles me situam na cidade do Rio de Janeiro (embora a história tivesse acontecido lá pelas bandas gregas, em Tebas. Num tempo muito antes de Cristo. Os personagens amalgamam o tempo passado ao presente. Me encontro entre o mito e a realidade. Antígona! Antígona com todos os seus antagonismos se apresenta. Clássica e contemporânea sim.

Não há cenário requintado, nem todo aquele arsenal quase que televiso, não há música nem de fundo, não há brilho. Luz e sombra, apenas. Antígona lança os contrastes. Ternos escuros e manto branco. Gravata vermelha no pescoço. O contraste se anuncia visivelmente! Antígona desfere suas analogias no palco através desses jovens atores. Ou seria o contrário?

No chão do palco ainda, vejo fitas de sinalização, aquelas que encontro na rua sinalizando reformas, obras, próprias de chamar a atenção, resistente e durável ao tempo como o é a história de Antígona. Neste caso, traz uma compreensão universal para todas as idades e para qualquer lugar do mundo. Essa fita sinaliza dentro do contexto um piso escorregadio das tramas humanas inserida em sua amplitude social e cultural. Antígona é universal e atemporal. E chama atenção do público para suas características humanas. No teatro cabe o mundo!

O que me chama atenção é a forma como Antígona foi interpretada pelos atores do TEATRO DE RODA. Sendo um ator vários personagens. Valeu aqui o dito “onde menos é mais”. Valido lembrar que cada um de nós também pode viver vários dramas pela vida afora, ocupar lugares, posicionamentos, classe social, escolhas, cumprir papéis variados durante a vida.

Durante a peça não dá tempo de fugir do exposto: estamos entremeados de dramas e somos essa realidade de desesperos. Cada personagem revela seu drama, seu espaço que ocupa nas relações, nos grupos sociais, na família, na cidade, no mundo, na vida, enfim! Antígona mostra seu lado “samurai”, ou seja, ninguém escapa do destino. Ninguém escapa das leis, ninguém escapa de suas escolhas, de suas consequências, de seu povo, das regras, da sua linhagem, da cultura, e de seu estado mais humano de ser. Atenas se espalha no palco e nos permite visualizar o que continua até hoje em dia, vinganças de família, de geração a geração que desemboca em morte e tragédia. Brigas infinitas pelo poder. O que parece de um lado o bem e de outro o mal, dessa vez a peça mostra que estamos todos transitando de um lado e de outro, como a roda da vida que gira no palco, revelando a totalidade do ser humano. Heróis e tiranos. Bons e maus. Vítimas e algozes. Cada um vai escolher o seu destino. E o mais difícil: aprender e assumir a responsabilidade de suas escolhas.

De imediato, tenho a impressão de estarmos vendo, no palco, algo parecido ocorrendo no Brasil, onde os personagens se mostram nossa gente. E tem mais: tudo se repete no palco da “justiça”. O povo, o Estado, a religião, a mídia, a história pretérita de uma cidade, as crenças, as classes, o poder. e a cegueira de cada um que caminha para seus abismos. O caos se estabelece. Todos os que estavam na sombra sendo lançados a luz do palco. Assim como na nossa realidade atual. Esse traje social marcado pelo terno escuro e pelo manto branco traz o contraste das vontades individuais. Cidadãos, seres humanos trazem suas crenças, sentimentos, emoções, posições sociais e relação de poder como sua prática social. E uma legislação que estrangula a todos como a gravata vermelha das paixões humanas cujo poder se torna muitas vezes um desejo insano, tirano e cruel.

Creonte, interpretado por aquele moleque, aquele guri que se agiganta em sua mandíbula voraz, em sua voz de fazer suspiro parar. Em sua fala de quase massacre me tomou de surpresa e pensei: a juventude desse país reclama sua vida antepassada e uma vida futura !

Ilusão acreditar que só Antígona sofre; que só a mãe sofre; que só o povo sofre; que só Hémon - noivo de Antígona e filho de Creonte sofre. Ilusão acreditar que os guardas não sofrem; que Creonte não sofre. Creonte em seu despotismo, em poderio absoluto, em sua tirania impensada sofre igualmente e faz sofrer. Vivencia seu drama existencial. Assim gira a roda desse teatro. Onde os personagens ora um, ora outro em suas razões, crenças, necessidades, e toda trama de falas saem das sombras, explodindo de seu negror aparecem e reaparecem como que levantando da sepultura, a vida exige tributos, ritos, justiça! A peça coloca em questão o que é justo ou injusto, a governabilidade, os limites, o castigo, o sobrenatural, o místico, por exemplo, quando Tirésias entra adaptado ao culto brasileiro meio afro meio grego. O mito evoca a prática social, e a relação estado-religião. Palmas para um espírito que se apresenta a profetizar sobre Tebas. Quando há injustiça, a desgraça é certa!

A peça também emerge a questão dos antepassados, do respeito e reverência à origem ainda que para isso tenha que se desafiar um governo, dos processos humanos, dos ritos, e inclusive do modo como a cultura, uma pátria ainda trata não somente seus mortos, mas seus filhos vivos!

E não deixo de ser surpreendida quando uma atriz pede que subam duas pessoas da plateia para segurar a corda que amarra Antígona e sua irmã num diálogo dramático. As cordas atentam para nossa relação de segurança ou dependência às leis, poder, política, cultura, religião, família como também é tudo isso que nos tensiona e limita na sociedade. A corda que como diz o dito “arrebenta do lado mais fraco” – o povo é quem mais sofre desde a antiguidade. Antígona não é texto antigo! Nada mais significativo que cordas a fim de nos mostrar que estamos todos entrelaçados com a angústia de todos os personagens. Temos uma ligação íntima com este drama, uma conexão humana com essa tragédia que também é nossa. Antígona merece atenção, os olhos não piscam mediante a busca desesperada de solucionar os antagonismos e conflitos humanos desde que o mundo é mundo. Antígona, incansável, representa a humanidade, relembra o imemorial, traz a luz tirando a venda dos olhos e nos re-vemos tanto a repetir os erros como a não desistir da experiência humana!

Um grande abraço,

Alessandra Espínola

Alessandra Espínola
Enviado por Alessandra Espínola em 01/06/2017
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