O SONETO, ESSE DESCONHECIDO

(Colóquio realizado na Biblioteca Municipal de Lisboa, no Palácio Galveias, para uma assistência de jovens escritores, poetas e professores do ensino secundário)

                                                    por CARLOS DOMINGOS

   Esta comunicação está dividida em duas partes. A primeira é sobre o ambiente poético em que o soneto apareceu. Sem isso será difícil compreender não só o seu aparecimento, mas também a sua implantação, as suas vicissitudes, a sua glorificação e até as tentativas para a sua destruição. A segunda parte é sobre o soneto e os seus cultores.

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   Falar do soneto é falar de poesia. Mas não de poesia em qualquer tempo e em qualquer lugar. O soneto é uma criação da poesia mediterrânica e só posteriormente se difundiu pela Europa. E nem sempre foi pacífica a sua implantação.

  Para compreendermos a existência do soneto teremos de tecer algumas breves considerações sobre a poesia em geral.

  A Poesia é irmã gémea da Música. Nasceu para ser cantada. Na antiga Grécia os poetas, os aedos, cantavam nos templos em louvor dos deuses e dos seus feitos. Posteriormente, alguns aedos, chamados então demiurgos, cantavam para o povo os feitos dos seus heróis. Foi assim que nasceu a Odisseia, geralmente atribuída a Homero, cuja existência há quem ponha em dúvida, inclinando-se para a hipótese de o Poema ser uma colectânea de cantos de diferentes aedos, dispostos numa ordem sequencial num arranjo unificado.

  O certo é que os cânticos exigiam que a Poesia fosse submetida a um ritmo compatível com a Música. Cada verso tinha de possuir uma duração e uma acentuação em concordância com o compasso e a tónica da respectiva música. Os versos, pois, tinham de ser medidos. É a essa medida que chamamos métrica.

  Nas línguas grega e latina, em que existem vogais longas e vogais breves, que, por sua vez, originavam sílabas longas e breves, dois versos com o mesmo número de sílabas podiam ter durações diferentes consoante um tivesse mais sílabas longas do que o outro. Por isso os versos eram medidos por unidades que eram designadas pelo nome de pés. Cada tinha uma determinada duração e era denominado segundo essa duração. Por exemplo, os iambos eram compostos por uma sílaba breve seguida de uma longa; os espondeus (duas sílabas longas); os dáctilos (uma sílaba longa seguida de duas breves); os troqueus (uma longa seguida de uma breve).

  Nos cânticos heróicos sistematizaram-se os versos chamados hexâmetros (cinco dáctilos e um espondeu ou um troqueu). Correspondem, em ritmo e duração, aos nossos decassílabos, assim chamados por ser constituídos por dez sílabas, sendo acentuadas a sexta e a décima sílaba. Ficaram conhecidos estes versos por versos heróicos, os versos que compõem as epopeias, como a Odisseia e a Ilíada, atribuídas a Homero, ou a Eneida, de Vergílio, tal como Os Lusíadas do nosso Camões. O uso deste tipo de versos foi generalizado na poesia erudita, sendo usado em canções, hinos, elegias, éclogas, etc.

    Os versos heróicos coexistiram, entretanto, com versos duma outra medida constituída pelo conjunto de um troqueu, um espondeu, um dáctilo e mais dois troqueus (ou um troqueu e um espondeu), que correspondem também aos decassílabos portugueses, diferenciando-se, no entanto, pela acentuação, que incide na quarta, oitava e décima sílabas. São designados versos sáficos porque a sua criação é atribuída à poetisa grega Safo, natural da ilha de Lesbos no séc. VI A.C.

    Os versos sáficos têm lugar na poesia portuguesa mas não são predominantes, antes ocu-pam uma certa complementaridade em relação aos versos heróicos. Camões usou-os nalgumas passagens de Os Lusíadas, como os dois últimos versos duma estrofe que termina assim:

               - Ó formosura, indigna de aspereza,
               Pois desta vida te concedo a palma;
               Espera um corpo, de quem levas a alma!
                                                                     (Os Lusíadas, Canto IX, LXXVI)

    Muitos outros poetas usaram complementarmente os versos sáficos, tais como Bocage:

               Mas eis sucumbe a Natureza escrava
               ao mal que a vida em sua origem dana
               …………………………………
               Ganhe um momento o que perderam anos,
               Saiba morrer o que viver não soube.
e
               Do coro arguto de febeus cantores
               ……………………………………
               Néctar lhe ferve (que libais, Amores)
               ...........................................................
               Olhos impunes do porvir senhores.
                                                                                 (Sonetos)

   Os exemplos atrás apontam para um uso complementar dos versos sáficos, integrados em poemas compostos de versos heróicos, conferindo-lhes por vezes uma subtil variação de ritmo.

   Há, porém, na história da poesia portuguesa um poema escrito, do princípio ao fim, ex-clusivamente em versos sáficos. Trata-se do célebre O Noivado do Sepulcro, do poeta ultra-romântico Soares de Passos, o qual começa assim:

               Vai alta a lua! Na mansão da morte
               já meia-noite com vagar soou.
               Que paz tranquila! Dos vai-vens da sorte
               só tem descanso quem ali baixou.
                                                                                   (Poesias)

    Dissemos atrás que a métrica na poesia se impôs pela necessidade de a coordenar com a música, de que inicialmente era inseparável. Houve, no entanto, poesia em que isso não se dava. Refiro-me aos cânticos entoados nas festas gregas dedicadas a Dionisos, o deus do vinho. Eram os ditirambos, que se caracterizavam pela desordem e pela irregularidade das estrofes, pela variedade constante das métricas ou até por não obedecerem a qualquer métrica. Supõe-se que, muitas vezes, os poemas eram quase improvisados e ditos sobre uma música de fundo.

   Os ditirambos vieram a popularizar-se em Corinto, Tebas, Atenas e outras cidades. Tomaram forma literária no séc. VIII A.C. e passaram a constituir o coro do altar de Dionisos.

   Há quem considere o ditirambo o percursor da tragédia grega. Muitos coros eram consti-tuídos por ditirambos.

   Inicialmente o Teatro processava-se nos templos. Na sua forma incipiente, um membro do coro destacava-se e dialogava com o coro. Com a evolução da tragédia e da comédia gregas foram construídos grandes anfiteatros ao ar livre para as mesmas serem representadas perante o povo. Passou a haver a necessidade de declamar, isto é, de gritar para que as palavras fossem entendidas por todos.

   A poesia erudita passou também a ser declamada, tornando-se independente da música. Não obstante, essa independência era só aparente, tal como um filho que, quando sai de casa, nunca perde a ligação aos pais. O Poeta, mesmo declamando, ou apenas escrevendo, continua a dizer que canta:

               Eu canto o peito ilustre lusitano
ou:
               Cantando espalharei por toda a parte
               se a tanto me ajudar o engenho e a arte.

ou, ainda com Camões invocando as Tágides:

               Dai-me uma fúria grande e sonorosa,
               e não de agreste avena ou flauta ruda;
               mas de tuba canora e belicosa
               que o peito acende e a cor ao gesto muda;

   Também os poemas épicos, tal como Os Lusíadas, se dividem em cantos, o que é sinto-mático. E a poesia lírica seria para ser cantada ao som da lira. O Poeta canta, mesmo sem música, mesmo sem voz, mesmo no remanso do seu gabinete de trabalho. Daí a necessidade de manter na poesia um ritmo de tipo musical. Daí que se considerasse a necessidade da métrica.

   Durante a Idade Média, com a decadência da poesia heróica, surgiram nas cortes os poetas palacianos, os trovadores, geralmente de origem cavalheiresca, cuja poesia exprimia a admi-ração pela mulher. Na lírica galaico-portuguesa predominavam as cantigas de amor e as cantigas de amigo, além de outras trovas. Entretanto, os poetas de rua, os menestréis, histriões, jograis ou segréis, cantavam e recitavam para o povo, nos adros das igrejas e outros lugares, cantigas mordazes, de escárnio e mal-dizer e também brejeiras e amorosas. Refiro isto para dizer que, nesse período, a métrica foi um pouco abandonada, modulando-se os versos ao ritmo aproximado da música, que era pouco exigente.

   No período final da Idade Média, os serões das cortes foram-se refinando, os poetas pas-saram a declamar a sua poesia, a métrica voltou a ter um papel importante.

   Em França, o poeta provençal do séc. XII Alexandre Bernay compôs o poema Alexandríade, onde, pela primeira vez utilizou versos de 12 sílabas que passaram a ser conhecidos por alexandrinos. O alexandrino é ainda hoje considerado o verso heróico francês.

   Mais tarde vulgarizaram-se versos de outras medidas. A poesia popular, porém, sempre preferiu utilizar versos de medidas mais curtas. Quero aqui referir de forma especial a chamada redondilha que, segundo alguns especialistas, nasceu em Portugal. É a redondilha maior, o verso de sete sílabas que, pela sua grande flexibilidade de acentuação é a medida preferida das nossas canções populares, como são exemplo os cantos alentejanos. Também é digna de registo a redondilha menor, versos de cinco sílabas, que é utilizada em alguns viras do Minho. Os nossos grandes poetas também utilizaram com maestria as redondilhas. No séc. XII, o rei D. Sancho I utilizou-as parcialmente na sua conhecida Cantiga de Amigo e, tempos depois, João Roiz de Castelo Branco escrevia, em redondilha maior, a mais bela cantiga produzida nesse tempo, a célebre Cantiga, partindo-se:

               Senhora, partem tão tristes
               meus olhos por vós, meu bem,
               que nunca tão tristes vistes
               outros nenhuns por ninguém.

   Note-se, de passagem, que o verso popular em França é o verso de oito sílabas:

               L’Habitude est une etrangère
               qui supplante en nous la raison.
               C’est une ancienne ménagère
               qui s’instale dans la maison.

   Menos importante do que a métrica no verso cantado é a rima. Por isso lhe dedico aqui menos espaço. Passando por cima da chamada rima aliterante, que só se emprega em certos efeitos especiais, tomemos os dois tipos principais de rima: a rima toante, que se caracteriza pela repetição apenas das vogais a partir da última vogal tónica de cada verso, e a rima consoante, a que estamos mais habituados, que é a repetição completa da parte da palavra depois da última vogal tónica.

   A rima toante era muito utilizada na poesia trovadoresca, como ainda é hoje eventualmente usada na canção popular. Um exemplo desta rima vamos encontrá-lo em dois versos duma canção de amor do rei D. Dinis:

               Ai flores, ai flores do verde ramo,
               se sabedes novas do meu amado?

   Com a separação da parte musical, fez-se mais sentir, na poesia declamada, a necessidade de utilizar a rima consoante, o que foi feito magistralmente por João Roiz de Castelo-Branco na Cantiga, partindo-se atrás citada.

   Até que... Em pleno período romântico começou a tomar corpo uma tendência para aban-donar a rima, conservando-a, no entanto, na poesia lírica. Assim, Garrett escreve os poemas Camões e D. Branca sem rima, enquanto mantém a rima na Lírica de João Mínimo e em Folhas Caídas. Já Bocage tinha abandonado a rima nos Poemas Didácticos Traduzidos e nalguns outros poemas.

   Mas foi preciso esperar pelos futuristas russos e pelo modernismo para deitar abaixo todos os cânones de séculos de poesia. Tudo foi posto em questão: a métrica, a rima, o ritmo. A seguir vieram os surrealistas e puseram em questão a própria coerência, transportando para a poesia a arte da alucinação.

   Tudo isto tinha a ver com uma sociedade alucinante em nada parecia fazer sentido. Era preciso destruir as velhas formas e concepções. Como diziam os surrealistas, era preciso pôr bigodes na Gioconda.

   Entretanto criaram-se novas formas de ritmo em poesia, que não dependiam da métrica. Pouca influência tiveram os que pretenderam anular os próprios versos, escrevendo a poesia em prosa, como o francês René Char e outros, que tiveram alguns imitadores portugueses, mas sem consequências. O ritmo é essencial em poesia e, mesmo esses que o negavam, apenas deixavam ao leitor a tarefa de imprimir aos poemas o seu próprio ritmo.

   Os poetas neo-realistas aproveitaram as inovações introduzidas pelos movimentos modernistas e passaram a escrever em novos ritmos sem, no entanto, repudiarem as formas anteriores. A influência dos poetas da Presença e do Orfeu, em especial de Fernando Pessoa e de Mário Sá-Carneiro nos poetas neo-realistas portugueses foi muito marcante. Em França Paul Eluard evoluiu de um surrealismo crítico para o neo-realismo e Louis Aragon, também ele herdeiro do surrealismo, passou por um neo-realismo de combate e acabou num neo-classicismo por vezes de formas rebuscadas.

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   Então e o soneto? Bem, o soneto...

   Pelas suas características, o soneto só pode ter aparecido com a implantação da poesia declamada. E isso só foi possível nas cortes palacianas.

   Houve quem pensasse que o soneto fora inventado por Petrarca. Hoje sabe-se que ele já existia na corte siciliana de Frederico II (início do séc. XIII). Daí passou para a Toscânia, sendo adoptado pelos poetas do “Dolce Stil Nuovo” (Cavalcanti e Dante). Foi Petrarca quem lhe deu a sua forma mais acabada e o divulgou por toda a Itália.
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  Mas afinal o que é um soneto? Segundo António Feliciano de Castilho, «Chama-se soneto o conjunto de versos formado por dois períodos; um, de oito versos, divididos em duas qua-dras; outro, de seis versos, divididos em dois tercetos». «Das duas rimas dos quartetos, uma é nos versos 1º, 4º, 5º e 8º e a outra nos versos 2º, 3º, 6º e 7º. Das duas rimas dos tercetos, uma é nos versos 9º, 11º e 13º e a outra, finalmente, nos versos 10º, 12º e 14º». (in Tratado de Metrificação Portuguesa).

  Como vemos, esta definição de Castilho é absolutamente redutora. Primeiro, não especifica qual é a métrica usada no soneto. Independentemente de algumas variantes decorrentes da sua adopção por outras línguas, o soneto é originalmente construído em decassílabos. Segundo, quanto às rimas: em princípio, Castilho aponta de forma correcta as das quadras. Porém também não é incorrecto usar as rimas cruzadas, desde que as da segunda quadra correspondam às da primeira. As rimas dos quartetos, entretanto, são livres, como podemos constatar em Petrarca, Camões ou Bocage.

   Todavia, o soneto não é só isto a que se refere Castilho. O tema tem de se completar dentro dos 14 versos que o compõem e não pode ter quebras de intensidade nem hiatos na sua temática. Quer isto dizer que não podemos subdividir o tema em duas partes, tratando, por exemplo, uma parte nas quadras e outra parte nos tercetos. O tema do soneto deve ser uno e estar sempre em alta. Costuma-se dizer que o soneto deve abrir com chave de prata e fechar com chave de ouro. Só assim é um soneto.

   Inicialmente, o soneto poderia ser acompanhado dum apêndice, uma pequena estrofe no fim, que rematava o tema. Esse acrescento chamava-se cauda, estribilho, cola ou estrambote. Camões chegou a escrever sonetos com estrambote. Eis um exemplo:

               Tanto se foram, Ninfa, costumando
               meus olhos a chorar tua dureza,
               que vão passando já por natureza
               o que por acidente iam passando.

               No que ao sono se deve estou velando
               e venho a velar só minha tristeza;
               o choro não abranda esta aspereza
               e os meus olhos estão sempre chorando.

               Assim, de dor em dor, de mágoa em mágoa,
               consumindo-se vão inutilmente
               e esta vida também vai consumindo.

               Sobre o fogo de amor inútil água!
               Pois eu em choro estou continuamente
               e do que vou chorando te vais rindo.

                    - Assim nova corrente
                   levas de choro em foro;
                   porque, de ver-te rir, de novo choro.

   Os sonetos com estrambote cairam em desuso e com razão. Neste caso concreto, este “acrescento” não acrescenta nada ao tema do soneto. Há até quem duvide da autenticidade deste soneto e, por isso, a obra publicada de Camões não o inclui.

   Pelo exposto, podemos entretanto compreender que o soneto exige um grande trabalho de oficina, tal como um quadro, uma escultura ou uma sonata. No entanto, como afirma Agostinho de Campos no seu livro «Estudos sobre o Soneto», se o soneto é difícil de fazer, ele deve dar-nos a impressão de ser feito com a maior das facilidades.

   A sua introdução nas literaturas europeias não se fez de forma pacífica. Em França, por exemplo, foi introduzido por Pierre Ronsard (1524-1585). Ronsard, que aos 10 anos era pagem, viajou pela Escócia, Flandres e Alemanha. Entretanto ficou surdo e então passou a dedicar-se à poesia. Estudou a poesia antiga, tomou contacto com o soneto que introduziu em França. Foi o grande iniciador do movimento Pléiade e reabilitou o verso alexandrino que entretanto tinha caído em desuso. Ronsard foi atacado violentamente por Malherbe e outros, sendo Boileau a dar-lhe o golpe final. Só mais tarde os românticos o reabilitaram, passando, a partir daí a ser considerado um dos grandes poetas franceses.

   Entretanto a França já tinha acolhido o soneto, que mereceu os favores de poetas como Heredia, Leconte de Lisle e Sainte-Beuve. Charles Baudelaire escreveu sonetos em alexandrinos (o seu verso preferido). Entre os modernos, citamos Louis Aragon, que tem até um soneto intitulado Imitação de Camões, composto mesmo em decassílabos. O facto de grande número de poetas franceses ter utilizado o verso alexandrino nos seus sonetos não espanta, tendo em conta o que atrás ficou dito. É o caso de Paul Verlaine que, depois de nos apresentar inúmeros sonetos em alexandrinos e a seguir a um “aberrante” de oito sílabas em que os tercetos aparecem antes das quadras, nos brinda com o belo soneto que a seguir se transcreve:

               Le son du corps s’afflige vers les bois
               D’une douleur on veut croire orpheline
               Qui vient mourir au bas de la colline
               Parmi la bise errant en courts abois.

               L’âme du loup pleure dans cette voix
               Qui monte avec le soleil qui décline
               D’une agonie on veut croire câline
               Et qui ravit et qui navre à la fois.

               Pour faire mieux cette plaine assoupie
               La neige tombe à son traits de charpie
               A travers le couchant sanguinolant,

               Et l’air a l’air d’être un soupir d’automne
               Tant il fait doux par se soir monotone
               Où se dorlote un paysage lent.                  (Sagesse, 1880)

   Na Inglaterra o soneto apareceu pela mão de dois poetas (Wiatt e Surrey) e foi acolhido por Spencer, Shakespeare, Milton, Browning e Wordsworth. Eis um soneto de Shakespeare, em versão portuguesa de Carlos de Oliveira:

                Foi tal e qual o inverno a minha ausência
               de ti, prazer dum ano fugitivo:
               dias nocturnos, gelos, inclemência;
               que nudez de dezembro o frio vivo.

               E esse tempo de exílio era o do verão:
               era a excessiva gravidez do outono
               com a volúpia de maio em cada grão:
               um seio viúvo, sem senhor nem dono.

               Essa posteridade em seu esplendor
               uma esperança de órfãos me parecia:
               contigo ausente o verão teu servidor

               emudeceu as aves todo o dia.
               Ou tanto as deprimiu, que a folha arfava
               e no temor do inverno desmaiava.

   De Wordsworth citemos também um dos seus melhores sonetos, este no idioma original:

                   UPON WESTMINSTER BRIDGE

               Earth has not anything to show mor fair:
               Dull would be of soul who could pass by
               A sight to toutching in its magesty:
               This City now doth like a garment wear

               The beauty of the morning: silent, bare,
               Ships, towers, domes, theatres, and temples lie
               Open unto the fields, and to the sky, -
               All bright and glittering in the smokeless air.

               Never did sun more beautifully steep
               In his first splendour valley, rock or hill;
               Ne’er saw I, never felt, a calm so deep!

               The river glideth as his own sweet will:
               Dear God! the very houses seem asleep;
               And all that mighty heart is lying still!

   Na Alemanha foi também introduzido por dois poetas: Weckerlin e Schede. Foi amplamente divulgado por Opitz, mas foi totalmente banido no séc. XVIII. Ainda aqui foram os românticos Burger e Schlegel que o fizeram ressurgir. Foi, no entanto, violentamente atacado por Voss e Baggensen, mas em sua defesa terçou armas Von Armin. Cultivaram-no Ruckert, Platen, Eichendorf, Hebbel, Geibel, Heyse e Redwitz, que arvoraram o soneto em forma artística nacional, apesar de Shiller nunca o ter adoptado.

   Na Holanda, teve como cultores Hooft, Bredero e Vondel. Na Rússia foi cultivado por Pushkin, na Polónia por Mickievicz, na Checoslováquia por Keller e também por Rilke.

   Em Espanha o soneto foi acolhido por Boscán e por Garcillaso. Foi cultivado por Herrera, por Gôngora, por Quevedo e Ruben Darío.

   Vou agora apresentar-vos um belíssimo soneto castelhano, da autoria de Federico García Lorca:

               Una viola de luz yerta y helada
               eres ya por las rocas de la altura.
               Una voz sin garganta, voz oscura
               que suena en todo sin sonar en nada.

               Tu pensamiento es nieve resbalada
               en la gloria sin fin de la blancura.
               Tu perfil es perenne quemadura,
               tu corazón paloma desatada.

               Canta ya por el aire sin cadena
               la matinal fragante melodia,
               monte de luz y llaga de azucena.

               Que nosotros aquí de noche y día
               haremos en la esquina de la pena
               una guirnalda de melancolía.
                                                                             (García Lorca – Poemas Sueltos)

   E em Portugal? Foi propositadamente que deixei para o fim Portugal e os países de língua portuguesa.

   O introdutor do soneto em Portugal foi Francisco Sá de Miranda, nascido em Coimbra, filho do cónego Gonçalo Mendes de Sá. Passou a juventude em Coimbra e cursou Direito na Universidade de Lisboa. Quando o pai faleceu, em 1520, desinteressou-se pela carreira jurídica. Aproveitando a herança paterna, visitou a Espanha e esteve em Itália (Roma, Veneza, Nápoles, Milão, Florença e na Sicília). De volta a Portugal, frequentou durante algum tempo a corte de D. João III.

   De novo em Itália, familiarizou-se com a cultura italiana. No regresso, veio por Espanha onde conviveu e trocou experiências com Garcillaso e com Boscán, empenhados em introduzir as novas formas renascentistas usadas em Itália. Estudou o livro de Santillana Sonetos al itálico modo.

   Além de poesia. Sá de Miranda escreveu uma comédia de costumes intitulada Os Estran-geiros numa tentativa de renovação do teatro. Gil Vicente, sentindo-se atingido, tentou ridicularizá-lo no auto O Clérigo da Beira:

               «Filho de cónego és
               nunca bom feito farás.»

     Sá de Miranda tinha escrito no seu teatro:

                Não me temo de Castela
               de onde a guerra inda não soa.
               Mas temo-me de Lisboa
               que ao cheiro desta canela
               o reino nos despovoa.

   Desiludido com a vida palaciana, partiu para o Minho (Quinta da Tapada), onde veio a falecer em 1558, não sem antes ter escrito este desabafo:

               Homem de um só parecer,
               um só rosto, uma só fé,
               de antes quebrar que torcer,
               ele tudo pode ser
               mas de corte homem não é.

   Não podemos entretanto deixar Sá de Miranda sem transcrever um dos seus sonetos (e não é propriamente aquele que estamos habituados a ler):

               Amor que não fará? Fez-me enjeitar
               tão levemente a mim por quem me enjeita;
               castelos de esperanças e suspeita
               faz, e não sei que faz, tudo no ar.

               Fez-me pedras colher, fez-mas lançar;
               aperta-me a alma triste, em si escolheita;
               à força que fará, e lei estreita?
               queira ou não queira, em fim há-de passar.

               Tão cego e tanto era eu, que da vontade
               tudo fiei, que tudo a través guia,
               tão grande imiga minha e da verdade!

               Que al se podia esperar de uma tal guia?
               Caí onde ora jazo, oh! crueldade!
               Não sei quando é de noite, ou quando é dia.

   Castilho afirmou: « O soneto português nasceu em Bocage e com Bocage morreu ». Esta afirmação é incrivelmente absurda e incompreensível vinda de quem vem.

   Se há país em que o soneto teve um lugar de destaque no conjunto da poesia, esse país é Portugal

   Depois de Sá de Miranda, que o trouxe de Itália, e de Camões, cultivaram o soneto Pero Andrade Caminha, Diogo Bernardes, Frei Agostinho da Cruz, Jerónimo Baía, Nicolau Tolentino, Tomás António Gonzaga, Bocage, José Anastácio da Cunha, João de Deus, Antero de Quental, Gonçalves Crespo, Gomes Leal, Cesário Verde, António Nobre, José Duro, Camilo Pessanha, Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Florbela Espanca, Jorge de Sena, Miguel Torga, Carlos de Oliveira, João Maia, João Apolinário, David Mourão-Ferreira, Goulat Nogueira, Alberto de Lacerda, Fernando Echevarria, Manuel Alegre, Ary dos Santos, Ruy Belo e muitos outros que os escreveram esporadicamente. De notar que esta longa lista só inclui poetas que produziram sonetos em conformidade com as suas regras consagradas.

   De notar também que no Brasil o soneto penetrou por influência portuguesa, sendo de considerar como um dos melhores sonetistas brasileiros Olavo Bilac. Não posso deixar, entretanto, de mencionar, pelo seu significado, os sete admiráveis sonetos de Castro Alves, insertos no seu livro Espumas Flutuantes. E é também justo salientar, entre os mais recentes, Vinicius de Morais, do qual vamos citar o seguinte:

                           SONETO DE MAIO

               Suavemente Maio se insinua
               Por entre os véus de Abril, o mês cruel
               E lava o ar de anil, alegra a rua
               Alumbra ao astros e aproxima o céu.

               Até a lua, a casta e branca lua
               Esquecido o pudor, baixa o docel
               E em seu leito de plumas fica nua
               A destilar seu luminoso mel.

               Raia a aurora tão tímida e tão frágil
               Que através do seu corpo transparente
               Dir-se-ia poder-se ver o rosto

               Carregado de inveja e de presságio
               Dos irmãos Junho e Julho, friamente
               Preparando as catástrofes de Agosto.

   Já entre os países africanos de expressão portuguesa só vamos encontrar o soneto em poetas do tempo do colonialismo que fizeram a sua formação em Portugal e cuja poesia é como que um prolongamento da poesia portuguesa aplicada à realidade africana. Em Angola, por exemplo, a partir de Agostinho Neto o soneto deixou de aparecer.

   Porém, apesar da língua portuguesa ser das mais ricas em sonetos, isso não significa que a sua aceitação tenha sido pacífica desde início e ao longo dos tempos. O combate ao soneto tem-se processado de duas formas: primeiro, recusando-o simplesmente. Houve poetas que nunca fizeram um soneto, o que se tornou ainda mais notório com o Modernismo. No entanto, Mário de Sá-Carneiro não só escreveu sonetos na sua juventude, como, pouco tempo antes da sua morte em Paris, produziu alguns belos sonetos que se integram perfeitamente no espírito da sua obra. Também Fernando Pessoa escreveu vários sonetos e até (quem diria?) o seu heterónimo Álvaro de Campos tem incluídos na sua produção dois perfeitos sonetos.

   Outra forma de combate contra o soneto é a deturpação das suas regras. Ser um bom poeta não obriga a fazer sonetos. Fazer um poema com duas quadras e dois tercetos não significa, só por isso, que se fez um soneto. Pior ainda é colocar por cima duma composição assim o título de Soneto.

   Reitero, pois, a afirmação de que Castilho produziu uma frase desastrada e injusta ao afirmar que o soneto português “nasceu em Bocage e em Bocage morreu”.

   No entanto, apesar do grande número de poetas portugueses que escreveram bons sonetos, só quatro dentre eles são considerados os grandes sonetistas da nossa língua: Camões, Bocage, Antero de Quental e Florbela Espanca.. Vamos citar aqui alguns sonetos destes quatro grandes poetas.

   De Camões:
                              Aquela triste e leda madrugada,
                              cheia toda de mágoa e de piedade,
                              enquanto houver no mundo saudade
                              quero que seja sempre celebrada.

                              Ela só, quando, amena e marchetada,
                              saía, dando à terra claridade,
                              viu apartar-se de uma outra vontade
                              que nunca poderá ver-se apartada.

                              Ela só viu as lágrimas em fio,
                              que de uns e de outros olhos derivadas,
                              juntando-se, formaram largo rio.

                              Ela ouviu as palavras magoadas
                              que puderam tornar o fogo frio
                              e dar descanso às almas condenadas.

   De Bocage:
                              Olha, Marília, as flautas dos pastores,
                              que bem que soam, como estão cadentes!
                              Olha o Tejo a sorrir-se! Olha: não sentes
                              os Zéfiros brincar por entre as flores?

                              Vê como ali, beijando-se, os Amores
                              incitam nossos ósculos ardentes!
                              Ei-las de planta em planta as inocentes,
                              as vagas borboletas de mil cores!

                              Naquele arbusto o rouxinol suspira;
                              ora nas folhas a abelhinha pára,
                              ora nos ares, sussurando, gira.

                              Que alegre campo! Que manhã tão clara!
                              Mas ah!, tudo o que vês, se eu não te vira,
                              mais tristeza que a noite me causara.

   De Antero de Quental:

                              Erguendo os braços para o céu distante
                              e apostrofando os deuses invisíveis,
                              os homens clamam: - «Deuses impassíveis,
                              a quem serve o destino triunfante,

                              porque é que nos criastes?! Incessante
                              corre o tempo e só gera, inextinguíveis,
                              dor, pecado, ilusão, lutas horríveis,
                              num turbilhão cruel e delirante...

                              Pois não era melhor na paz clemente
                              do nada e do que ainda não existe
                              ter ficado a dormir eternamente?

                              Porque é que para a dor nos evocastes?»
                              Mas os deuses, com voz inda mais triste,
                              dizem: - «Homens! porque é que nos criastes?»

   De Florbela Espanca:

                              Cheguei a meio da vida já cansada
                              de tanto caminhar! Já me perdi!
                              Dum estranho país que nunca vi
                              sou neste mundo imenso a exilada.

                              Tanto tenho aprendido e não sei nada.
                              E as torres de marfim que construi
                              em trágica loucura as destrui
                              por minhas próprias mãos de malfadada!

                              Se eu sempre fui assim este Mar morto:
                              mar sem marés, sem vagas e sem porto
                              onde velas de sonhos se rasgaram!

                               Caravelas doiradas a bailar...
                              Ai quem me dera as que eu deitei ao Mar!
                              as que eu lancei à vida e não voltaram!...


   Para terminar, vou ainda abusar da vossa paciência ao ler-vos um soneto da minha autoria composto numa altura em que a democracia no nosso país estava a correr um grande perigo. Chama-se

                                O REGRESSO DO MOSTRENGO

                              O mostrengo não está no fim do mar.
                              Ocupa as ruas, bate à nossa porta,
                              vomita chamas na cidade morta,
                              escreve garatujas no luar.

                              Ei-lo que espreita em cada patamar
                              pronto a saltar-nos à garganta. Importa
                              lançar brados de alerta à malta absorta
                              que se deixou nos ventos embalar.

                              De pé! O monstro volta! Unir fileiras!
                              Deixemos as diferenças das bandeiras:
                              É preciso avançar em marcha unida.

                              A nossa força é sermos um só povo
                              e uma só terra a defender de novo.
                              A morte do mostrengo é a nossa vida!

   Caros Amigos,

   Penso ter dado uma panorâmica, ainda que sucinta, da inserção do soneto dentro da nossa poesia ocidental, onde ele pertence, das suas dificuldades, das suas exigências e também das suas potencialidades. Muito mais poderia ser dito, mas nunca poderia ser no contexto em que nos encontramos aqui.

   Resta-me fazer um apelo a quem dentre os presentes escreva poesia. É que não tente es-crever sonetos se não tiver para isso uma forte propensão. Mas se for este o caso, então prepare-se para trabalhar no duro como um operário na sua oficina. E lembrem-se que, se uma das características de toda a produção artística é a economia de meios, no soneto essa é uma exigência incontornável.

   Obrigado pela vossa atenção.
CARLOS DOMINGOS
Enviado por CARLOS DOMINGOS em 08/11/2005
Reeditado em 08/11/2005
Código do texto: T68840