MÁRIO DE ANDRADE - PARA COMPREENDER O MODERNISMO VI

EVOLUÇÃO TEMÁTICO-ESTILÍSTICA

Importante registrar os seguintes fatores no processo evolutivo de Mário de Andrade:

O Título: tem função constitutiva, isto é, participa da essência da coletânea que ele nomeia.

Poesias de 1920 a 1924: área poética predominantemente do mundo objetivo-circunstancial. Tensão poeta-mundo: elementos diferenciados e autônomos. Poeta observador emocionado, mas não fundido com o Espaço, com a paisagem exterior.

Poesias de 1924 a 1930: atenua-se a tensão entre poeta e mundo com o aprofundamento do espaço real-objetivo através da imersão na História e pela introjeção afetiva naquela realidade objetiva.

Poesias de 1930 a 1945: fase de amadurecimento poético; à tensão poeta-mundo atenuada pelo predomínio do “eu” na linha amorosa/sexual, corresponde gradual desaparecimento da poesia circunstancial; surgimento da fusão ideal: introjeção vivencial do poeta na realidade circundante.

É o que predomina. Pode aparecer o tônus de uma na outra. A evolução é intermitente.

1. PAULICÉIA DESVAIRADA (escrita em 1920/1921, publicada em 1922).

Palavra lembra “teodicéia”; pretende desvendar e arrolar a realidade paulista, com suas virtudes e defeitos. Desvairada: a visão pretendida pelo poeta. A matéria poética é o complexo urbano paulista; visão do cotidiano, “eu” se alternando com o mundo, tendo este primazia. Fixação do Momento.

Estilo básico: Versos curtos e longos, predomínio dos brancos, assonâncias e rimas internas; discurso entre descritivo e narrativo, frases nominais exclamativas e reticentes; enumeração caótica na forma, mas não na idéia; reiteração; linguagem coloquial; natureza concretizadora da linguagem.

2. LOSANGO CÁQUI (escrito em 1922, publicado em 1924)

“Losango”, símbolo da cidade multiforme. “Cáqui”, cor da farda de soldado. Da paisagem arlequinal (da Paulicéia), o poeta focaliza o aspecto militar, em que ele mesmo se viu envolvido. “Eu” enamorado pela cidade, que aparece como pano de fundo difuso; predomina a atmosfera social, introjetada na emoção do poeta através do motivo (militar), ponte entre o ser individual e o ser social. Sentimentalismo lírico travado pela presença da linguagem coloquial prosaica. Tenta ligar o Momento ao Tempo, a Atualidade à História, tentativa suavizada pela conotação satírico-humorística (“Tabatinguera”).

Estilo básico: versos longos e curtos, predomínio dos primeiros; discurso narrativo; maior emprego das orações coordenadas ou justapostas; redução das exclamações e reticências.

Mário tem consciência da precariedade das soluções estéticas experimentadas, nesse momento de complexas transformações, conforme “Advertência” na introdução do livro. Expressa perturbação quanto à poesia de circunstância. Anseia pela universalidade que deve ter a obra de arte. Hesita em chamar estes conteúdos de poesias, antes considera-o “...anotações líricas de momentos de vida e movimentos subconscientes aonde vai com gosto o meu sentimento possivelmente pau-brasil e romântico.

Hoje estou convencido que a poesia não pode ficar nisso. Tem de ir além. Prá aléns não sei e a gente nunca deve querer passar adiante de si mesmo.

Porém peço que este livro seja tomado como pergunta, não como solução ...Minhas obras...São procuras.”.

3. CLÃ DO JABUTI (escrito em 1924/1926, publicado em 1927)

“Clã – idéia de agrupamento familiar forte, tribal. “Jaboti” – idéia de pequenez, insignificância, covardia: animal pequeno que esconde a cabeça na casca ao menor sinal de perigo.

Para o conhecedor do folclore brasileiro, percebe em Mário a valorização por trás da conotação semântica evidente. Clã do Jaboti é um título que valoriza o povo e os costumes brasileiros, apesar do que apresenta de negativo.

A matéria deste livro é a realidade brasileira, maior e mais antiga do que São Paulo, contida no Tempo e Espaço por aquela, mescla de vivência presente com a experiência do passado, feita tradição; Momento presente amalgamado com História , Folclore; dialética Momento-Tempo, com a conotação do aprofundamento do real-imediato pela sua imersão na História. A realidade imediata começa a ter dimensão no Tempo. Ilustra bem esses aspectos o poema “Noturno de Belo Horizonte”.

Tensão “eu-mundo” perto da fusão ideal: o poeta aproxima-se da realidade exterior, embora permanecendo na área afetiva, impulso de solidariedade que o leva a abarcar tudo num comovido amor. Apreensão sensorial da realidade: gozo visual, tátil, auditivo provocado pela paisagem; o urbano é escasso.

Estilo básico: predomínio de versos longos; versos curtos só nos ritmos populares como redondilhas; frase discursiva, fala brasileira, modismos, frases feitas, linguagem espontânea, popular; discurso narrativo, servido pelas descrições; reiteração.

4. REMATE DE MALES (escrito em 1924/1930, publicado em 1930)

“Remate” – a palavra provavelmente ter sido tomada no sentido de conclusão e embelezamento. O poeta transforma seus males em poesia, em beleza. Fase intermediária entre o heroísmo modernista inicial e a maturidade poética que marcou a poesia brasileira a partir de 30. A matéria é a vivencia do poeta que chega à comunhão com a terra, pela fusão lírico-sensual produzida entre terra e mulher, como ilustra a série dos Poemas da Negra e Poemas da Amiga. O poeta fala abertamente de si e de suas emoções: “Eu Sou Trezentos”. Deixa de ser o observador emocionado ou revoltado dos livros anteriores. Há agora uma identidade tranqüila e natural entre ele e o mundo, que se realiza, basicamente, através da “mulher” (Poemas da Negra e Poemas da Amiga).

Persistem os poemas de circunstancia (Mário guardava poemas antigos e os publicava depois).

A dialética eu x mundo em Remate de Males já tende ao equilíbrio, porém longe da fusão ideal, que só será alcançada plenamente em Lira Paulistana.

5. CARRO DA MISÉRIA (Escrito em 1930/32/43, publicado em 1946)

“Carro da Miséria” – no poema é um carro alegórico carnavalesco que satiriza a máquina política. A política vista como uma pantomima insensata. Poesia do imediato, do momento presente, sátira aos políticos, mesclada da essência paulistana (raças, contrastes); confirma a consciência lógico-ordenadora, revelando a visão caótica nesta coletânea. Interrompe a solução iniciada no livro anterior. Volta à realidade exterior, a despeito a consciência integralizadora do poema inicial, agora focando não só a realidade natural ou urbana mas acrescida da dimensão política da realidade nacional.

Estilo básico: enfoque poético pelo satírico-humorístico; técnica parodística, onde escoa elementos lingüísticos, naturais, urbanos, termos grosseiros, figuras políticas, tipos populares, reminiscências; enumeração ilógica; aproximações desconexas; pensamentos inacabados; frases feitas que alijam a compreensão de hoje, tornando fechados ao entendimento os poemas dominados pelo circunstancialismo; quebra do paralelismo metro-sintaxe e uso da não pontuação como função constitutiva; sonoridade: aliterações e assonâncias.

Poesia circunstancial cujo valor de comunicação ficou restrita ao Momento.

Dimensão inventiva da linguagem.

6. A COSTELA DO GRÃO CÃO (escrito em 1924/1940, incluídas no volume Poesias em 1941)

“Costela” – símbolo da mulher. “Gao Cão” – símbolo que ora remete ao demônio, ora ao homem em sua dimensão demoníaca, enquanto dominado pelos impulsos da paixão.

Poesia radicada na postura judaico-cristã que identifica o impulso sexual às forças demoníacas do Mal.

A matéria é a vivência afetiva do poeta, oscilando entre ternura amorosa e amor erótico.

A mulher, até então ausente, neste livro se impõe. Verifica-se que o tema lírico-amoroso foi tratado pelo poeta em duas fases extremas da sua vida: a adolescência e na maturidade. Em meio à explosão reformista, Mário escamoteia o tema amoroso em Paulicéia; aflora-o em Losango; volta a ele em Remate e em Costela; aborda-o esporadicamente na fase final, na Lira.

Em Costela, amplia-se a linha de predomínio do “eu”, já registrada em Remate, tornando-se mais imperiosa a presença da mulher, tema que muitas vezes fez o poeta adiar a publicação e mesmo não divulgar alguns poemas, só vindo a público depois, através de sua amiga Oneyda Alvarenga, que as publicou, ou de seu amigo Manuel Bandeira. O Bem e o Mal formam a dualidade verificada nessa coletânea, o que talvez explique a ausência da mulher nas suas poesias, paralelamente à presença constante do amor.

O poeta se libera tanto de imposições tradicionais (tabu-sexo), quanto de certas imposições modernistas que acabaram por se transformarem em novos preconceitos, como a recusa ao lirismo. A reação de Mário contra essa resistência modernista mostra-se sobretudo nos dois sonetos Quarenta Anos e Soneto.

7. LIVRO AZUL (escrito em 1930/40, publicado em 1941)

8. LIRA PAULISTANA (escrito em 1945, publicado em 1946)

LIVRO AZUL - maior plenitude poética. Adesão ao lirismo. Rompem-se as amarras do racionalismo e o mundo introjetado em seu ser é cantado pelo poeta. Este momento de maturidade existencial leva a uma opção estética que revela a verdadeira natureza do seu potencial poético.

Seu amadurecimento poético coincide com o de seus companheiros de jornada modernista - “transformação dos modernistas de ontem em poetas de sempre” (J. G. Merquior, Razão do Poema).

Em “Rito do Irmão Pequeno”, que abre o Livro Azul, Mário define sua opção, aceitando sua dimensão de poeta: ser estranho que, produzindo aparentemente gratuidades, de maneira oculta, desvenda, pela palavra criadora, aos homens, as essencialidades da vida.

Irmão pequeno é o próprio poeta, sua qualidade essencial é a beleza. Opção pela poesia- emoção, com o objetivo da beleza estética, emocional (beleza como fonte de emoção), em lugar da funcionalidade utilitária da poesia-crítica, da poesia pragmática.

A dialética eu-mundo está no limiar da sua solução, pelo domínio da verdade do “eu”. Atingindo a fusão homem-poeta, pela aceitação da superioridade da essência sobre a existência, Mário não cai no isolamento egocentrista dessa conquista. A dialética eu-mundo vai ser solucionada, não pela exclusão do mundo, mas pela comunhão espontânea do poeta com a realidade circundante. Despojada do circunstancial (febril engrenagem da vida moderna) e apresenta-se através de uma força natural envolvente.

A linguagem coloquial poetizada se mescla à paisagem natural brasileira; limites entre objetivo e subjetivo se atenuam; linguagem poética não mais representa o exterior, mas flui dele. Em “A Meditação sobre o Tietê” este fenômeno atinge o mais alto nível; forma estilística mais constante, aliada a uma visão de mundo mais sincera, livres das deformações de sua essência, ditadas pelas necessidades estético-ideológicas (cantar o circunstancial, o epidérmico mundo dos fatos); aproxima-se da solução buscada por sua poesia desde o início.

Continua a recusa às interdições tradicionais, cantando o amor sensual (v. Girassol da Madrugaga, no Livro Azul). Poemas escritos e publicados em épocas diferentes, como aconteceu com os Poemas da Amiga e Poemas da Negra, de Remate, onde já aparecia a fusão poeta-mundo, via amada.

A violenta libertação que marca A Costela do Grão Cão, não se repete. No Livro Azul, a mulher aparece envolta em paz e serenidade, elemento de pureza vital, embora fundamente sensual. Vislumbra-se a solução final para o impasse, através da Amada, quando se dará a harmonia com o Todo, num diálogo completo: espiritual e físico.

Homem, Mulher e Natureza fundem-se numa mesma essência vital.

LIRA PAULISTANA nos traz São Paulo como a grande presença, como no início, em Paulicéia. Diferentemente, introjetada no “eu” do poeta, fundida com sua vivência mais íntima.

Agora a linguagem é concentrada, com versos curtos e nítidos. Coerente com a mudança de matéria poética, muda a linguagem. Desaparece a frase nominal, surge o relacionamento verbal, complexa estrutura lógico-formal. O universo a que o poeta está imerso é cheio de contrastes, porém ordenado e o relacionamento das coisas e dos seres é complexo, portanto existe sintonia entre a visão de mundo e a linguagem que o expressa; fórmulas tradicionais do canto brasileiro são lembradas (modinha, quadrinha, cantiga...) exercendo papel decisivo na composição dos poemas desta última fase; a reiteração (anaforismo ou paralelismo); inversão e o refrão final; linguagem poética próxima da simplicidade do povo.

Entre os “poemas paulistanos” Mário insere a “triste história de Pedro”, denúncia do lado escuro, doloroso, injusto do relacionamento humano. Integra assim, à cidade, a vida sem horizontes, o gesto amputado ao nascer, mas dá-se o distanciamento da visão política, há o equilíbrio das forças dialéticas do ser individual x ser social. Existe o distanciamento da visão política enquanto libertação da injunção participante-ideológica, mas não o alheamento do poeta ao processo social, nem a indiferença ao seu lugar entre os homens.

A iconoclastia eloqüente da participação inicial já não se observa, mas assombra uma consciência histórica bem definida, como forma da certeza de pertencer, via terra, povo, civilização, ao milenar processo evolutivo da humanidade. A história de Pedro é um exemplo da atuação de Mário no metro, na rima e no ritmo, em versos da redondilha maior, 18 estrofes desiguais, como elementos constitutivos do dizer poético, responsáveis pelo sentido global do poema. História do anti-herói, contada na obediência rígida do metro de 7 sílabas, Mário corta grupos sintáticos, desfaz a solidariedade gramatical dos termos, quebrando a significação referencial (Ex: “Não houve acalanto. Apenas/Um guincho fraco no quarto/Alugado”. Presença do enjambement, importante não como recurso da poesia moderna, mas essencial nesta poesia.

A Meditação sobre o Tietê. Neste poema dá-se a unidade eu-mundo; o equilíbrio Razão-Emoção; Mário, inusitadamente, quebra o paralelismo fono-semântico; estabelece conflito metro-sintaxe, evidência de que a tensão racionalizadora foi suplantada pela tensão intuitiva; o verso flui livre do pensamento crítico; o húmus épico alimenta sua poesia, embora presente a impulsão lírica; fusão e distanciamento entre poeta-rio, consciência do indivíduo face ao coletivo.

Poema-síntese do universo poético de Mário, composto pouco antes de sua morte. Atinge o equilíbrio objetivo-subjetivo, buscada desde sempre, através do conflito entre duas posturas básicas: o impulso de participar (atuar) do mundo e o impulso de conhecer (compreender) o mundo, impulsos que são excludentes entre si. Um não pode acontecer quando o outro ocorre. É o fenômeno encontrado na raiz da postura épica, a transformação do acontecer em memória, como diz Staiger, mas com nuances.

Realiza-se a identificação essencial Homem-Espaço; Tempo-Momento; Atualidade-História; Ordem-Desordem...

Mário utilizou nesta “meditação”, versos de todos os seus livros, com predomínio de A costela do Grão Cão e Remate de Males, da sua fase mais madura poeticamente.

Os signos metafóricos são as constantes que em Mário mostram a integração final (eu&mundo). Rio, água, óleo, olhos, luz e sombras são imagens nucleares da poesia marioandradina. O dinamismo desse sistema imagístico é a primeira característica que chama a atenção. Em sua palavra, tudo fui, desliza, se espalha, se expande como água, luz ou sombra; tudo adere e agarra como óleo; tudo é registrado por um intenso olhar, que se funde com as coisas.

Os versos de solidão do poeta são tentativas vãs de isolamento, pela profunda consciência do valor do ser humano, no concerto universal. A outra face de Mário de Andrade, a face poética, entre as várias reveladas pelo escritor, foi sem dúvida a que atuou mais fundo na abertura dos novos caminhos do nosso Modernismo, a face ameaçada agora mais tarde pelo construtor de Macunaíma.

A compreensão profunda das duas faces de Mário nos dará a figura integral do poeta que, “foi figura universal, isto é, capaz de ser para os outros fonte de cultura, ponto de partida, núcleo central de uma consciência cultural brasileira” (Adolfo Casais Monteiro).

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NOTURNO DE BELO HORIZONTE

Maravilha de milhares de brilhos vidrilhos,

Calma do noturno de Belo Horizonte...

O silêncio fresco desfolha das árvores

E orvalha o jardim só.

Larguezas.

Enormes coágulos de sombra.

O polícia entre rosas...

Onde não é preciso, como sempre...

Há uma ausência de crimes

Na jovialidade infantil do friozinho.

Ninguém.

O monstro desapareceu.

Só as árvores do mato virgem

Pendurando a tapeçaria das ramagens

Nos braços cabindas da noite.

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Alegria da noite de Belo Horizonte!

Há uma ausência de males

Na jovialidade infantil do friozinho.

Silêncio brincalhão salta das árvores

Entra nas casas desde as ruas paradas

E se engrossa agressivo na Praça do Mercado.

Vento de longe, das grotas pré-históricas...

Descendo as montanhas

Fugiu dos despenhadeiros assombrados do Rola-Moça...

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Mário de Andrade, in Clã do Jabuti

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Fonte: Mário de Andrade para a Jovem Geração, Nelly Novaes Coelho

Mário de Andrade, Coleção Nossos Clássicos

V. textos de Mário de Andrade bem como outros textos sobre ele no Forum do Recanto das Letras, no Tópico Grandes Escritores Brasileiros - Mário de Andrade