Pouco Formalismo e Muita Poesia: Gilette Press e Mimeógrafo Generation

Pouco formalismo e muita poesia

Jornais alternativos da década de 1980 apostavam na informalidade e em poetas então desconhecidos.

Bruno Brasil

2/5/2011

“Oi. Novamente suas mãos seguram este pequeno pedaço de papel com pedaços de mim e de muitas outras pessoas queridas”. Começando com um simples “oi”, o poeta Luiz Fafau lançava a edição de agosto de 1986 de Gilete Press (1985?-1989?) em Goiânia. Modesto, o periódico era um dos folhetos da poesia marginal, gênero nascido da contracultura e da Tropicália, que sacudiram as letras nacionais na década de 1970 com nomes como Torquato Neto, Roberto Piva, Waly Salomão e outros. Alguns desses autores formaram a “Geração Mimeógrafo”, integrada por artistas excluídos do mercado editorial que rodavam seus livros artesanalmente. Impresso em uma folha de papel dobrada, Gilete Press era um apanhado de recortes de ilustrações, poesias datilografadas e textos de outros impressos, montados e fotocopiados. Ali, poemas dividiam espaço com recados politizados que contextualizavam a publicação no recente fim da ditadura militar – “Constituinte sem povo não cria nada de novo”.

Gilete Press trazia tanto poetas consagrados, como Ferreira Gullar, quanto marginais. Naquela edição de agosto de 1986, ele publicava “Bermuda Larga”, do carioca Chacal: “Muitos lutam por uma causa justa/ Eu prefiro uma bermuda larga/ Só quero o que não me encha o saco/ Luto pelas pedras fora do sapato”. Causas justas, no entanto, eram salpicadas ao longo das edições: “Não às armas atômicas”, “Extinção é para sempre” (um pouco óbvio, contra a matança de baleias), “Franquia postal para os alternativos!”, etc. Gilete Press ainda comentava notícias da imprensa, um espetáculo que ia do crítico ao cômico. Na mesma edição de agosto aparecia a matéria “Filme leva mais um a depor na Polícia Federal”, por conta de uma exibição de “JeVousSalue, Marie”, de Jean-Luc Godard, na Universidade Federal de Goiás. Ao lado, em uma frase solta no meio da página, Luiz Fafau ironizava: “Nova República também é cultura”.

Entre poemas engajados, o editor Luiz Fafau deixava claras a informalidade e a cordialidade do periódico, lançando no fim de algumas edições a frase “Um abraço ao pessoal que tem dado sempre um alô”. Era o caso de Jairo Jhade Galahade, editor do Mimeógrafo Generation (1986-1992?), em São Paulo.

O periódico paulista era um pouco diferente de Gilete Press. Com o boom dos textos mimeografados de escritores independentes e o crescimento da arte postal nos anos 1980 – quando poetas e artistas visuais divulgavam suas publicações pelo correio –, um gênero híbrido entre poemas e imagens se desenvolveu, flertando com a cultura pop (nem que fosse para criticá-la), empolgando-se com rock'n'roll, poemas-processo, quadrinhos e o movimento anarcopunk. Na época, muitos jovens editores divulgavam a poesia marginal junto com homenagens a seus ídolos, que iam de Oswald de Andrade a John Lennon. Assim nasciam os fanzines, publicações de “fãs”. O Mimeógrafo Generation não escapava a essa tendência.

Na edição de março de 1986, o Mimeógrafo publicava os poetas Touchê, Luiz Ruffato, Paulo Leminski e Marcelo Dolabela. Na capa da edição de setembro, uma poesia (provavelmente de Galahade) tinha seus versos cuspidos de uma garrafa de Coca-Cola: “Fórmula química secreta/ Gás miraculoso/ Xarope multinacional/ Marca registrada/ Sem valor comercial/ Matéria cultural/ Sem valor comercial/ Matéria sem valor”. Na seção “Let me Traduceslation”, no entanto, o lado “fã” do periódico aflorava. Ali, a canção “With a little help from my friends”, dos Beatles, virava “Com uma mãozinha de meus amigos” – versão assinada “Galahade/Lennon/McCartney”. O quinto beatle era então exposto. Jim Morrison ainda apareceria num número de 1992, apontando para o leitor e ordenando: “Mude hoje a fantasia”.

Como o Gilete Press, o Mimeógrafo Generation mandava recados para poetas: “Ruffato veio mesmo para Sampa! (...) ainda vamos encher a cara por aqui!”, “Márcio Almeida manda-me poema inédito (diz ele!) que é um chtz-chute no saco da poesia pra turista!” (o que quer que isso seja), ou ainda “Aricy Curvello aconselha os poetas da marginália a doarem um exemplar de suas obras (...) à Biblioteca Nacional (...). Pensando bem é uma boa!”. A maioria dos periódicos de poesia marginal na BN foi doada por Aricy. Foi mesmo uma boa.

Nem sempre os periódicos de poesia marginal ficavam “entre amigos”. Antecipando o Creative Commons, organização que atualmente visa ao compartilhamento de obras criativas com menos restrições de direitos autorais, parte deles simplesmente transcrevia autores de seu gosto, sem pedir autorização. Uma vez, consultado pelo Setor de Periódicos da Biblioteca Nacional sobre textos seus no mimeografado O Berração, sem registro de local, o escritor curitibano Cristóvão Tezza se surpreendeu: “Confesso que não tenho a menor lembrança do que seja.Você pode me dizer que texto meu está no pacote?" Naquele tempo, ninguém era de ninguém.

(originalmente publicado na Revista de História:

http://www.revistadehistoria.com.br/secao/por-dentro-da-biblioteca/pouco-formalismo-e-muita-poesia)