Bagg'Ave: Contracultura, Rock e Poesia Marginal

Bagg’Ave: Contracultura, Rock e Poesia Marginal

Levi de Loyola

Publicado em 1985 o livro Bagg’Ave de J.J. Gallahade e Jayro Luna pode ser considerado um dos mais significativos livros da poesia marginal dos anos 80, principalmente pelas suas características gráficas – visualmente marginais – pelo seu conteúdo – mistura de contracultura, poesia marginal, rock e vanguardas poéticas.

O livro Bagg’Ave é um pequeno volume no tamanho de 10,5 cm x 15 cm, resultado de um quarto de folha A4 dobrada em quatro. Contém 50 páginas, foi impresso em off-set na pequena gráfica do centro acadêmico da faculdade de medicina da USP, numa tiragem de 500 exemplares. Totalmente em preto e branco, contém desenhos ilustrativos para alguns dos poemas, feitos no original com caneta esferográfica.

O livro pode ser lido na Internet, na sua versão original – com os desenhos – num site português Sapo (http://jayrus.com.sapo.pt/baggave.html), ou numa versão de 2006, sem os desenhos e com alguns acréscimos de novos poemas, nos sites Recanto das Letras e Calaméo.

1. A Questão da Autoria

Mas antes de mais nada, convém falar da questão da autoria do livro. A edição de 1986 traz somente o nome de Jairo Jhade Gallahade, também conhecido como J.J. Gallahade. Durante algum tempo Gallahade foi confundido com Jayro Luna. O fato, já explicado pelo próprio Jayro Luna é que a confusão entre a identidade de ambos foi provocada pelos mesmos autores. Ocorre que Gallahade era “cantor” (muito desafinado, sem ritmo e que não conseguia decorar as letras) da esquecida banda de rock, The Lee Bats. Com amizade fundada nos tempos da graduação em Letras na PUC-SP, ambos tinham os mesmos interesses musicais, poéticos e artísticos. Começaram a escrever e distribuir o folhetim alternativo de poesia Mimeógrafo Generation ainda em 1985 Logo veio a idéia de também produzir um livro de poemas.

Como era definido no projeto musical dos Lee Bats, que todos os integrantes do grupo deveriam utilizar pseudônimos e deveriam se apresentar mascarados e fantasiados e que suas verdadeiras identidades nunca seriam reveladas, Gallahade foi um pseudônimo criado por J.J., que não era Jairo, nem provavelmente Jade, mas a partir de suas iniciais reais compôs o pseudônimo que começou a gerar a confusão “Jairo Jhade”.

Quando ao final de 1986, J.J. Gallahade abandonou a faculdade, e os Lee Bats haviam se dissolvido, cada um seguindo um caminho diferente, o cantor do grupo seguiu sua vontade de pôr de verdade o pé na estrada e viver como hippie andarilho (ao que se sabe chegou até São Francisco na base da carona, atualmente seu paradeiro é desconhecido), Jayro Luna continuou a produção do folhetim e resolveu imprimir o livro que já estava completo, mas assumiu a personalidade do pseudônimo do amigo.

O livro de Eliana Nagamini Nas Trilhas Poéticas de J.J. Gallahade: Leitura Crítica da Poética de Jayro Luna, não esclarece sobre a confusão da autoria, embora faça um trabalho rico de pesquisa bibliográfica, juntando documentos diversos (cartas, artigos de periódicos, bilhetes) que comentam ou analisam a referida produção poética.

O próprio Jayro Luna – que me explicou após uma troca de mensagens por e-mail – me diz que nem mesmo ele consegue hoje definir, em relação ao conjunto total de poemas (32 poemas) qual poema de Bagg’Ave é totalmente composto por ele, qual foi feito pelo amigo hippie e, ainda, qual foi composto por ambos, embora consiga fazer isto parcialmente. O mesmo aconteceu com o livro seguinte, Ópium, publicado no ano seguinte, que contém poemas que estavam em cadernos que ambos os amigos usavam conjuntamente para anotar os manuscritos poéticos. No caso de Ópium, a responsabilidade pela seleção é toda de Jayro Luna.

2. Contracultura e Rock

Fruto das vivências de J.J. Gallahade e de Jayro Luna, vários dos poemas tratam de temas ligados à contracultura e ao rock.

Douglas de Almeida na edição número 1 da Revista Sem Perfil, de Salvador (BA), publica um interessante artigo intitulado “Bagg’Ave: Sonetos e Rock’n’Roll”, em que afirma, sem saber da questão da dupla autoria:

“Jairo nos fala das gerações roqueiras e dos seus valores, desde o tênis e a calça Lee aos discos dos grandes astros e os seus conflitos existenciais. Pelos textos bagg’avianos, percebe-se que o autor percebeu que a sociedade capitalista-computadorizada está aí, firme e forte, com suas redes / rédeas e infinitas relações, e sacou (como muitos) que o Rock como tudo, é transformado em consumo e as vitrines são milhões. Que o rock é a mi(s)tificação, o Zen, a Ioga e o Oriente.” (ALMEIDA, p. 23)

O escrito Luiz Fernando Rufato, então jovem jornalista, escreveu um breve artigo num periódico de Cataguases (MG) sobre o “Bagg’Ave – Rock and Roll em Grande Estilo” - em que comenta com argúcia que lhe é peculiar:

“E Jairo consegue fazer que sua poesia, em momento algum, seja pedante, mas mantém um grande estilo o tempo todo. Drogas, movimento hippie, rock, expressões americanizadas, jeans, heróis de histórias em quadrinhos, enfim, tudo o que compõe o universo jovem, a quem, na tentativa de se marginalizar, cunha-se de alienante, Jairo capta, com a precisão antropofágica do Modernismo de primeira hora.” (RUFATO).

O escritor e professor Uílcon Pereira escreveu uma carta que está publicada no site Usina de Letras (“Os Evangelhos do Rock”) em que escreve saudando o recebimento pelo correio dos pequenos livros, Bagg’Ave e Ópium:

“Jairo, parabéns pela sua luta na poesia. O seu Bagg’Ave e o seu Ópium são dois evangelhos do rock materializados em poesia. Aqui em Marília estou dando aos alunos alguns de seus poemas e solicitando que eles façam interpretações. O tema da contracultura e do rock é um grande atrativo para que os jovens discutam a poesia, uma vez que você não faz só a poesia do rock, o que você faz é mais, é a poesia no rock.”

Entre os poemas, que me parecem mais contraculturais, cito os intitulados “Calça velha, azul e desbotada”, “Pedra Rolante”, “Poema Drix”, “Woodstock”, “Um Rock Barroco”, “Asa de Vinil”, “Meus Discos de Rock”, “Rock’n’Roll” (poema visual) e “Sem Destino”. Transcrevo um trecho deste último, os dois tercetos do poema que é um soneto:

“E se eu solto a voz nas estradas,

Se ando à gente jovem reunida,

Carona, a pé ou em disparada,

Trezentos por hora – corrida!

Veloz em busca a outra pintura,

É que eu vou em ritmo de aventura!”

E o que chama a atenção é o fato de vários dos poemas serem escritos na forma fixa do Soneto, teoricamente a forma menos possível para se pensar num poema da contracultura, dada sua história literária, sua significação clássica e seu rigor de composição. Esta situação antagônica entre forma e conteúdo se resolve em Bagg’Ave numa surpreendente e interessante solução poética. O rigor da forma do soneto parece ser o reflexo técnico da capacidade musical dos artistas que reverência, com seus rifis de guitarra passeando por várias escalas, como é o caso do soneto dedicado a Jimi Hendrix, “Poema Drix”:

“Briluz tilintar de rubi e ônix,

Dedilha razante em vôo físsil,

Renascente como uma fênix,

Estrondoso como a um míssil.”

Ao que sei, o livro Bagg’Ave antecede em praticamente uma década à produção de sonetos de Glauco Mattoso em que temas contraculturais se apresentam como habilidade e poeticidades peculiares e significativas.

3. A Questão do Vocabulário de Bagg’Ave

Uma coisa que me chama a atenção no Bagg’Ave é a riqueza do vocabulário com uma sonoridade específica e trabalhada. Além de expressões correntes de uso no âmbito da contracultura, no livro encontramos um série de vocábulos vindos diretamente do lugar mais escuro dos dicionários de Língua Portuguesa, são palavras raras, mas que parecem ter sido renascidas pela sonoridade que carregam, pela ambigüidade que criam, como se os autores quisessem buscar uma melodia nas palavras no português que a aproximasse do Inglês. Ou ainda, criações vocabulares ou retiradas do vocabulário de algum poeta que a inventou (reconheci o uso de iriar como vindo de Pedro Kilkerry, O Cetáceo). Observemos como estas palavras criam estas ambigüidades e sonoridades a que me refiro. Faço um parágrafo com uma lista delas:

Desaire (português) – mas lembra desire - inglês, enleia (do verbo enleiar, sig.: extasiar, encantar), deslizes, reprises, lis, florchameja, iriando (do verbo iriar), tremeluz, cornucópias, luze (do verbo luzir) – mas lembra loose – inglês, éreo (feito de bronze), panspermia, carrocéu (no lugar de carrossel), lóki (vide Mutantes), alcáçar, caranguejoulas (Mário de Sá-Carneiro?), heliófuga....

A leitura dos poemas assim vai ganhando uma riqueza sonora singular, e as palavras são inseridas com graça e ritmo dentro dos versos de modo que o que poderia causar um estranhamento ou uma erudição desarticulada das propostas temáticas, na verdade se ajustam harmonicamente, melodicamente, de modo que se cria um vocabulário próprio que eu chamaria de bagg’aviano e que representa uma imagem sonora de uma poesia original.

E a questão do vocabulário já se apresenta no título mesmo do livro. Como escrevera Rufato: “Se o título do livro,“Bagg’Ave” é um mistério, não o são os seus poemas que o compõe, que dão a melhor prova da poesia ainda subterrânea que é feita aqui”. Num recado encontrado na coluna poética do Zanoto, no Jornal Correio do Sul, de Varginha (MG), se lê: “Jairo Jhade Gallahade explica que o nome Bagg’Ave busca sonoramente recuperar o som de Baghavida Gita e ao mesmo tempo tem Ave, para o vôo, e faz a paráfrase do som de baggage do inglês” (13/09/1986).

A considerar este recado, temos o sentido musical místico dos poemas, já que o nome do livro hindu significa “Canção de Deus”, ao passo que o vôo da Ave é a viagem musical dos solos de guitarra do rock e seu psicodelismo e a bagagem é o conjunto temático e de vivências que os poemas apresentam.

Referências

ALMEIDA, Douglas de. “Bagg’Ave: Sonetos e Rock’n’Roll” em: Sem Perfil, n.° 1, Salvador (BA), Setembro, 1985.

PEREIRA, Uílcon. “Os Evangelhos do Rock” em: NAGAMINI, Eliana. Nas Trilhas de J.J. Gallahade: Leitura Crítica da Poética de Jayro Luna. São Paulo, Vila Rica, 2006. p. 23-24.

RUFATO, L.F. “Rock and Roll em Grande Estilo” Jornal de Cataguases, dez./1986

ZANOTO. Jornal Correio do Sul, Varginha, 13/09/1986