A dualidade do tempo em Ana Cristina Cesar

Alguns poemas de Ana Cristina Cesar chamam a atenção pela dualidade de tempo entre o passado e o presente, como também entre o presente e o futuro. A análise de alguns poemas jogam luz sobre este aspecto ainda pouco abordado na obra da poeta carioca de olhos azuis, voz veludosa e gestos bruscos com as mãos. Três poemas (sem título) escritos em seu caderno terapêutico, nos meses finais de sua vida, formam o que denomino de “O Ato em 3 Poemas”.

Tenho arrumado os livros.

Tiro de uma prateleira sem ordem e coloco em outra

com ordem. Ficam espaços vazios.

Hora em hora.

Não tenho te dito nada.

Ligo para os outros.

O que eu poderia dizer é perigoso: certeza (assim como

eu disse: daqui dez anos estarei de volta) de que nos

reencontramos, cedo ou tarde.

Mas não sei mais quando

Cedo ou tarde reencontro – o ponto

de partida

Ana C. fala de seus livros arrumados de uma prateleira sem ordem para outra com ordem, mas ficando espaços vazios. Seria uma menção às consequências da volta para o apartamento dos pais, após a fracassada tentativa de morar sozinha, numa vila da Gávea. Em A Teus Pés, no poema Mocidade Independente, ela havia escrito: “Pela primeira vez infringi a regra de ouro e voei pra cima sem medir as consequências.” Questão amplamente analisada por Ítalo Moriconi (Ana Cristina Cesar – o sangue de uma poeta, pp. 126/127).

Ao refugiar-se de volta em seu quarto no apartamento dos pais (na Rua Toneleros, em Copacabana), não são apenas os livros que ela tenta arrumar, mas também pensamentos e sentimentos. Estão sem ordem e ela tenta colocar em ordem, mas segue um vazio, o sentimento interno da alma. “Hora em hora”, como diz o verso. Quer revelar a angústia, mas não diz nada para quem ela dirige o poema (provavelmente Armando Freitas Filho). Liga para os outros, mas não confessa, não diz que é perigoso, se o reencontro é cedo (vida) ou tarde (morte) no futuro. Volta ao presente para afirmar que cedo ou tarde reencontra o ponto de partida. Utiliza o enjambement para destacar que reencontra “o ponto”, metáfora de ponto (final?), e que está “de partida” no último verso.

A ponto de

partir, já sei

que nossos olhos

sorriam para sempre

na distância.

Parece pouco?

Chão de sal grosso e ouro que se racha.

A ponto de partir, já sei que

nossos olhos sorriem na distância.

Lentes escuríssimas sob os pilotis.

A ideia de estar “A ponto de partir” abre o poema seguinte com nova menção a Armando de Freitas Filho. Ana C. volta ao passado para rememorar que “nossos olhos sorriam para sempre na distância.” O uso do verso “Chão de sal grosso e ouro que se racha” trabalha a ideia de que a energia positiva, que há no uso do sal grosso, e do “ouro” do modernismo está se rachando dentro dela. Após a publicação do livro A Teus Pés, ela está sem energia e com um vazio interior. Repete que está “A ponto de partir”, mas volta ao presente com “nossos olhos sorriem na distância.” Lembra-se ainda das lentes escuras dos óculos, sob as colunas da PUC do Rio de Janeiro, quando cursava Letras: “Lentes escuríssimas sob os pilotis.”

Volto para você.

Sempre estive aqui,

nunca me afastei do ouro de Itabira.

A mulher barbada me espia com olhos de lúcifer.

Fala em Kardec, e eu me reviro em agonia:

Já não, agora não,

a água ainda não está no ponto.

Me espere.

Ana C. deixa claro que nunca se afastou do modernismo (“do ouro de Itabira”), representado na figura de Carlos Drummond de Andrade. O conceito de idade do ouro, segundo a mitologia grega, refere-se ao período em que o mundo passava por seu apogeu, com glórias perpétuas. Numa passagem, um pouco cifrada, deixa a entender que há uma vidente à espreita com olhos aterrorizantes. Menciona o espiritismo, ao dizer que está em agonia, pois “a água ainda não está no ponto.” Conclui o poema com “Me espere”, pois ainda não era a hora. Referência à primeira tentativa de suicídio na praia da Barra da Tijuca e a consequente internação numa clínica em Botafogo, quando escreve os textos “dia 16 de outubro de 1983” e “dia 17 de outubro de 1983” no caderno terapêutico. O derradeiro poema (sem título) de Inéditos e Dispersos termina com a luta contra a depressão, ao falar sobre tempo presente e tempo futuro: “Preciso de tempo para desenvolver minhas pesquisas. Talvez ainda haja tempo depois que eu sair deste CTI infame onde sou obrigada a viver.”

Antes mesmo do lançamento do livro A Teus Pés, em dezembro de 1982, Ana Cristina Cesar já vinha apresentando sintomas de depressão, por várias questões já amplamente conhecidas e apresentadas em quatro versos, entre parênteses, no poema (um dos últimos no livro) que se inicia com o verso “Volta e meia vasculho esta sacola preta à cata de um três por quatro.” Ao longo do ano de 1983, instala-se uma forte crise emocional até levá-la à data fatal de 29 de outubro.

Ana C. x Sylvia Plath

O livro Antigos e Soltos abre com Três cartas a Navarro, onde uma voz do presente dirige-se ao futuro, na primeira delas:

Navarro,

Te deixo meus textos póstumos. Só te peço isto: não permitas que digam que são produtos de uma mente doentia! Posso tolerar tudo menos esse obscurantismo biografílico. Ratazanas esses psicólogos da literatura – roem o que encontram com o fio e o ranço de suas analogias baratas.

Já basta o que fizeram ao Pessoa. É preciso mais uma vez uma nova geração que saiba escutar o palrar os signos.

Não há como descontextualizar e desconsiderar as relações entre a poesia e as condições nas quais se produz e vem a público, como afirma Maria Lucia de Barros Camargo em Atrás dos Olhos Pardos. Apesar dos poemas finais serem um claro indicativo da forte crise emocional, não se pode analisar de maneira póstuma toda a obra poética desta forma, como Ana C. deixa claro ao escrever a carta a Navarro.

Ana C. e Sylvia Plath morreram jovens. Muitas vezes, os leitores acabam direcionando-se apenas para o fim trágico, ao fazer a leitura dos poemas, como por exemplo, nos versos 13 a 16 de A Birthday Present (poema com 62 versos livres em 31 dísticos):

I do not want much of a present, anyway, this year.

After all I am alive only by accident.

I would have killed myself gladly that time any possible way.

Now there are these veils, shimmering like curtains,

O título do poema A Birthday Present é irônico, pois numa análise interpretativa é a busca pela liberdade que ela não tinha em sua vida, mesmo após a separação do marido. O poema de Sylvia Plath utiliza duas vezes a palavra “janela” (window) – nos versos 17 e 49 – e que pode ser a chave para interpretar um enigmático poema da juventude de Ana Cristina Cesar.

Ela ficava olhando pela janela

vertendo seu único olho pela janela

com o pé em cima da janela

Ela ficava olhando pela janela

O dia inteiro o olho, o pé, a janela

em cima embaixo pelos lados da janela

Ela ficava olhando pela janela

um dia ela cansou de olhar e fechou a janela

mas era dura e não fechava a janela

Ela ficava olhando pela janela

às vezes tentava mas logo esquecia da janela

que sempre aberta com um olho e um pé a janela

Ela ficava olhando pela janela

até que um dia seus pensamentos dissociaram a janela

que caiu inteiriça, e era uma caída janela

Ela ficava olhando pela janela

que não era, nem existia como janela:

Ela ficava olhando pelo buraco

11.2.69

A jovem Ana Cristina Cesar escolhe o dia 11 de fevereiro para escrever o poema. Isto remete imediatamente à data da morte de Sylvia Plath, ocorrida seis anos antes, em 1963. Intencionalmente escolhe a palavra “janela” para terminar os versos de seu poema, com a exceção do último verso. Escreve 60 dias após o impacto emocional da decretação do AI-5 e a presença do DOPS, no apartamento de seus pais, ocorrida no dia seguinte – o sábado 14 de dezembro. Quando ela levanta a voz contra os agentes à paisana que vasculham o apartamento, na Rua Toneleros, e impede que os documentos dos seus 20 colegas fossem vistoriados, pois eram menores de idade e o encontro era uma festa e não uma reunião política, como relata Ítalo Moriconi (Ana Cristina Cesar – o sangue de uma poeta, pp. 84/85).

Para Sylvia Plath, a janela é para onde ela olha, onde ela vê. A janela para o mundo. Cria uma sensação de armadilha no cenário. Ana Cristina Cesar vai trabalhar a intertextualidade de um olho e um pé, pois no poema A Birthday Present sempre há véus que cobrem a visão como cortinas. Ao se abrir uma cortina, posiciona-se um olho e pé numa visão parcial e não aberta do quadro geral.

Se Sylvia Plath não tinha liberdade e o título era irônico, o mesmo faz Ana Cristina Cesar, pois “janela” pode significar “visão de mundo” ou “liberdade”. Escreve no final do poema: “Ela ficava olhando pela janela/ que não era, nem existia como janela:/ Ela ficava olhando pelo buraco”. Ao terminar o poema com a queda da janela e a perda da inocência, reconhece a existência do buraco: a ausência de luz, de visão e de alternativa do momento político que se iniciava no país. Como diria o filósofo e ensaísta espanhol Ortega y Gasset: “Eu sou eu e minhas circunstâncias”.

Signo

Ana Cristina Cesar nasceu em 2 de junho de 1952: “...disposição ambígua (signo de gêmeos)”, como afirma na Correspondência Completa. Esta dualidade aparece em outros momentos. Marca a distância de si mesmo e do tempo, como no poema (sem título) em Inéditos e Dispersos:

Não sou idêntica a mim mesmo

sou e não sou ao mesmo tempo, no mesmo lugar e sob o mesmo ponto de vista

Não sou divina, não tenho causa

Não tenho razão de ser nem finalidade própria:

Sou a própria lógica circundante

junho/69

Um extenso trabalho analítico interpretativo da dualidade de tempo e intertextualidade foi realizado por Maria Lucia de Barros Camargo (Atrás dos Olhos Pardos, pp. 153/172) ao comparar Le cygne de Baudelaire com Carta de Paris de Ana Cristina Cesar. Isso nos remete ao verso solto que deixa várias e múltiplas interpretações ao leitor, em Inéditos e Dispersos:

sou uma mulher do século XIX

disfarçada em século XX

Escrever cartas e diários que seriam reais, como no século XIX, mas na verdade simulados, disfarçados e, portanto, fictícios no século XX. Outra interpretação seria que Ana Cristina Cesar era leitora do século XIX para transformar-se em escritora no século XX, ao trabalhar a intertextualidade de maneira disfarçada, mas tão presente em seus textos. De qualquer forma, a vida de Ana Cristina Cesar e a morte de Ana C. estarão permanentemente imbricadas em sua enigmática voz e na “tirania do segredo”.

AUTOR

Luiz Roberto da Costa Júnior

Nasceu em 1968, em Campinas (SP). Graduou-se em Comunicação Social (1992) pela Escola de Comunicações e Artes da USP e também em Ciências Sociais (1996) pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, onde fez mestrado em Ciência Política (2002). Autor da trilogia poética drummondiana pela Editora Penalux: Refúgio da Madrugada (2016), Em meio à tempestade (2016) e Neste Tempo de Cólera (2017).