CAMÓES AMOROSO

Como ele via um único e grande amor, se amou todas?

Fiel à tradição medieval, glosou motes, vilancetes e cantigas, usando redondilha maior, 7 sílabas poéticas, e menor, 5 - e também o ‘stil nuovo’, recente importado decassílabo italiano, sonetos, canções, elegias, odes, éclogas etc. // Escola vicentina no teatro, três autos em redondilha maior: “Enfatriões”, “El-rei Seleuco” e “Auto de Filodemo”, rara utilização de pés quebrados (3 ou 4 sílabas), como seu ‘mestre’. // “El-rei Seleuco”, uma burla (logro, fraude) - como inovação camoniana trechos em prosa nas partes inicial e final, e falas intensas no “Filodemo” - tema central em ambos, o sentimento do amor: fantasioso, ousado e desatinado como nas cantigas de amor, a mulher também enamorada. Amores impossíveis - adulterino em “Enfatriões” (de Júpiter por Alcmena), adulterino e incestuoso em “El-rei Seleuco” (do príncipe Antíoco pela madrasta Estratônica) e dois pares de amantes por diferença social em “Filodemo” (ele-Dionisa, Venadoro-Florimena). Solução possível para finais felizes, quem sabe? Para os dois primeiros, os modelos de Plutarco em “Auto de El-rei Seleuco” e de Platão em “Enfatriões” - talvez “Filodemo” intriga original do poeta ou em Gil Vicente “D. Duardos”? No lirismo, medida velha, autor mais coloquial e familiar, amor menos levado a sério, lado por vezes picante (“Jurou-me aquela cadela / De vir, pela alma que tinha........”) ou maliciosa na última copla do mote (“... a doença em que vos vejo, / Vos confesso que desejo / De cair convosco em cama.”) X impossibilidade da realização amorosa X no teatro, ‘Deus ex machina’, ou seja, intervenção divina. // A pluralidade de personagens, sujeitos da enunciação, possibilita muitos enfoques de amor, mesmo com diferenças de classes sociais,até que fossem amos e criados. / Os primeiros em “amor platônico”, diz Filodemo; os segundo misturando declarações de amor e pragas, pretendendo algo mais palpável, ðous abraços”, pede Vilardo a Solina; e Mercúrio disfarçado em Sósia conta a Brómia que sonhou com ela, “Soñaba que te tênia... / No me atrevo a decir más”. // No grupo dos amos, o amador Júpiter em “Enfatriões”, príncipe Antíoco em “El-rei Seleuco” e Venadoro em “Filodemo”. // A mania dos menos cultos fazerem versos e cantá-los, processo em várias obras, foi ridicularizada por Gil Vicente, Camões e outros autores da época, mais tarde por Antônio Chiado e Molière. // Em “Anfitriões”, a par do caso amoroso, uma série de qüiproquós pela duplicidade reais & sósias, o lado cômico do auto. // No “Filodemo”, só se fala de amor, age por amor, reconhecendo-lhe a força (“Oh! Potência tão profana!”) e a incompatibilidade com a razão; em “El-rei Seleuco”, Antíoco sofre as penas de amor e se contenta em silenciar e ser da mulher amada “o menor mal de (seu) tormento”. // Filodemo é quem dá mais conta da extensão e da qualidade de seu sentimento, ousadia que dá asas à fantasia, à imaginação (no lirismo camoniano, o único caminho para o alto...) - nos solilóquio de Filodemo, “Triste do que vive amando / Sem ter outro mantimento, / Com que este fantasiando.” - o ousar e imaginar nunca além dos limites platônicos, ousadia de amar sem ofensa. O amor platônico não quer fim, verdadeira atitude literária de influência petrarquiana - no Cancioneiro Geral, jogo de palavras e antíteses,continuação no meneirismo de Camões. // Linguagem de Venadoro, menos atuante na peça, embora réplica reduzida do primo Filodemo, jogo cuidadoso de substantivo e verbo: “Amor (...) Tem por ventura ordenado / Que mereça o meu cuidado, / Só por ter cuidado nele?” --- com ‘criado’ e ‘cativo’, em sentidos próprio e figurado, “Creríeis que foi ousado / Em este vosso criado / Tornar-se vosso cativo?” --- com antônimos, “Assi que me dais a vida / Somente por me matar.” // Venadoro abusa de antônimos, no seu primeiro diálogo com Florimena: opõe perder a achar e ganhar, após o que ela diz: “Se andais por dita perdido, / Eu vos encaminharei.” Ele: “...que o caminho que eu queria, / Se o eu agora o achasse, / Mais perdido me acharia. (...) Porque, quando me perdi, / Não cuidei de ganhar tanto...” // Este é o amor nos homens socialmente elevados e também nas mulheres. Certa de que Antíoco a ama, Estratônica (papel pequeno no menor dos autos) quer que “A morte que o levar, Me leve também a mim” para que “Sejamos na morte / Pois o não somos na vida”. // Na primeira fala, o solilóquio de Alcmena, confronto entre o renovar da natureza e a imobilidade de sua vida, “Tudo quanto a vista alcança / Tão alegre está tornado (...) de flores se veste o belo; / Reverdece o arvoredo. / Somente em minha tristeza / Está sempre o tempo quedo”. Vemos casar Venadoro e Alcmena e não Filodemo e Dionisa, esta confusa e apaixonada, para a confidente Solina: “Amor me manda que diga, / Vergonha me diz que não. / Que farei? Como me descobrirei?” // Esta Solina é na verdade personagem inteligente e pouco escrupulosa (tal como Celestina, recebeu dinheiro de Filodemo e Dionisa) e por outro lado se mostra virtuosa com o ataque de Duriano: “Que é isso? Tirai lá a mão!” - chegando mesmo a bater-lhe. Doriano, longe de ser um amoroso na linha de Venadoro ou Filodemo, função nítida na peça de anti-platônico e zombeteiro contra a tristeza, fingindo amor a Solina a pedido de Filodemo, pondo em dúvida a passividade alheia: “...os meus amores hão de ser pela ativa, e que ela há de ser a paciente e eu o agente, porque esta é a verdade” - nele, o atrevimento excede tudo e todos no teatro da época, pedindo beijos e abraços e agarrando a moça, ainda ousando dizer: “Bem parecerá entre nós, / Pois vós andais dentro de mim, / Que ande eu também dentro em vós”. // (Desmitificação das aventuras amorosas nas novelas de cavalaria: amor cortês e vassalagem?) Tal realismo de linguagem ele retoma ao resumir a estória dos amores que gerou os gêmeos Filodemo e Florimena: “El-rei da Dinamarca meteu-se de amores com a filha mais moça, bom justador, manso, discreto; desejou ela de ver geração dele; começou-lhe a encurtar o vestido em nove meses, detalhe trivial, necessário acolher-se ele com ela,(novo trocadilho), porque não colhessem a ela com ele. Sofreram um naufrágio do qual só ela escapou e, depois de perder as esperanças, parto junto de uma fonte, duas crianças, macho e fêmea, como visagras.” // Camões não preso a ideologias e as questionou através de seus versos e, no teatro. “Como sabê-lo se não lê-lo”, como diria Drummond. E como disse Doriano: “Esses são outros quinhentos”.........

FONTE:

“O enfoque do amor no teatro camoniano”, artigo de Cleonice Berardinelli, que lecionou durante décadas na UFRJ - Rio, revista DYONISOS, ano XXII, n.19-20-21, set./1972.

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