A percepção do estético

     A questão estética é vasta, controversa e multifacetada, caso contrário não haveria tantos debates em torno dela.  A forma de pensar e de agir sofre mudanças diacrônicas na sociedade, que é dinâmica, ainda mais porque as mentes que pensam e refletem hoje não são as mesmas de outrora e o novo é capaz de lançar novos olhares, ainda que sejam sobre velhos paradigmas.
     Em relação à experiência realizada pela Folha de S. Paulo, na qual a obra machadiana, “Casa Velha” foi remetida anonimamente a diversas editoras, muitas considerações podem ser tecidas. O intuito de averiguar o apreço e o aceite que atualmente podem ter as obras literárias “de qualidade” demonstrou que quem escreve pode gerar mais apreço que o que é escrito, ou seja, o valor da palavra centra-se mais em quem a profere do que em seu conteúdo. É válido mencionar que na matéria apresentada não se cogitou a hipótese do livro não ter sido lido. As editoras, por receberem muitas remessas de material, podem não ter tido condições de analisar a obra, o que é possível, já que três delas não responderam nem acusaram recebimento. As que responderam, podem ter feito uma leitura muito superficial e inacabada, o que poderia comprometer a captação da essência, da totalidade da obra. A interpretação do contexto social relaciona-se com a interpretação da arte, ainda que esta, para alguns, se mostre desvinculada da conjuntura social, tendo força em si mesma.  
     O conceito de bom e de belo tem variado muito desde que temos conhecimento deles. O belo para nós não significa o mesmo que significava para os gregos no tempo de Platão ou de Aristóteles. O crescente consumismo atual, a velocidade com que as novidades ficam “velhas” devido à quantidade de outras novidades que despontam, e a superficialidade inerente a essa Era da rapidez e da objetividade nos diferenciam no tempo e tornam compreensível o não reconhecimento de grandes obras de artes. Os valores são outros e muitos cânones são cultuados atualmente mais pelo peso da tradição histórica que carregam que pelo apreço ao seu conteúdo artístico literário, que tem ficado em segundo plano. A maior parte do público que lê tais obras não é mais tão apta a fruição estética como outrora fora o público leitor. A conjuntura mudou, a arte se popularizou e a população é cada vez mais heterogênea. Porém, no séc. XIX o público leitor era bem mais restrito e com um perfil bem mais delineado. Uma editora que tivesse um texto sabidamente machadiano, talvez não perdesse a chance de publicá-lo hoje em dia, porque saberia que poderia “ter mercado”, pois temos muito mais pessoas que se debruçam na leitura estudo deste autor do que outrora, quando a leitura poderia ser desvinculada de obrigatoriedades, descompromissada e apenas ligada a fruição.
     Já na música, o atual público tem buscado a espontaneidade e o prazer sonoro mais que qualquer outro elemento musical. Ainda que um músico como Joshua Bell fosse reconhecido, só deter-se-iam a apreciá-lo os que certamente se identificassem de algum modo com sua arte, com sua musicalidade. Arte também abarca reconhecimento e identificação. É visto no vídeo do experimento do Washington Post, de manter um violonista consagrado tocando numa estação de metrô, que há quem pare ali para ouvi-lo por alguns instantes, apesar de apenas uma pessoa notadamente vir a apreciá-lo e reconhecê-lo.  O local certamente influiu na falta de valoração da apresentação, pois voltando ao quesito identidade, quase ninguém se imagina ouvindo um concerto numa estação de metrô. Geralmente, as pessoas idealizam alguma casa de shows ou qualquer espaço constituído sócio-historicamente para essa finalidade. Contudo, se tal prática passasse a ser rotineiramente difundida, com o tempo esse estranhamento e dissociação deixariam de existir.
     A efemeridade da prática social do mercado de estereótipos também modificou a forma de recepcionar a música, pois uma música cantada por alguém reconhecidamente famoso não é a mesma coisa que uma cantada por um ilustre desconhecido, ainda que este venha a superar o famoso no quesito qualidade.
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A seguir, a referida matéria ao qual faço menção neste ensaio.


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Folha de São Paulo - 21 de abril de 1999

Texto de Machado é recusado por editoras
IVAN FINOTTI da Reportagem Local
Folha de S. Paulo 21/04/1999
 
     Na semana passada, o escritor argentino Ricardo Piglia disse à Folha que, se Jorge Luis Borges fosse um desconhecido e apresentasse seu maior livro a uma editora hoje, não conseguiria publicá-lo. "Diriam que contos não vendem", afirmou Piglia.
     Não é uma hipótese absurda. Há seis meses, a reportagem enviou, sem identificar, um pequeno romance de Machado de Assis a seis das maiores editoras de literatura brasileira, segundo o Sindicato Nacional dos Editores de Livros. O texto, chamado "Casa Velha", foi mandado pelo correio, sem título. Impresso por computador, encadernado com espirais por uma papelaria comum, o livro era semelhante às dezenas que chegam semanalmente às editoras. O nome que constava na assinatura era o de um desconhecido. Foi triplamente recusado.
     Das seis editoras que receberam esses originais, três não responderam nem acusaram recebimento (Record, L&PM e Ediouro). Já as editoras Companhia das Letras, Objetiva e Rocco responderam (as duas primeiras em novembro; a última, no mês passado). As respostas - enviadas por um correio eletrônico (Hotmail), criado especificamente para esta reportagem - foram basicamente a mesma: obrigado, não (veja quadro abaixo).
     Nenhuma das editoras que respondeu reconheceu que se tratava de um livro de Machado de Assis, o maior autor nacional. É claro que "Casa Velha" não é um "Dom Casmurro". É difícil de achar nas livrarias e muito fácil encontrar pessoas que jamais ouviram falar dele. Também é claro que um autor escrevendo na entrada do ano 2000 como se estivesse um século atrasado pode muito bem não ser interessante comercialmente. "Acho normal que uma editora recuse", afirma o professor de literatura brasileira da USP Valentim Facioli, 57, estudioso de Machado de Assis "há 35 anos ou 40 anos". "Uma coisa é um texto ser reconhecido como de Machado. Outra é um desconhecido escrevendo como realista do século passado. O fato é que esse texto é bem dezenovenovista", diz Facioli.
     “Casa Velha" foi publicado pela primeira vez em 1885 e 86, dividido em 25 episódios na revista para senhoras "A Estação". O romance é ambientado no Rio de Janeiro, em 1839. A dona de uma casa oligárquica quer impedir que seu filho se case com uma de suas protegidas. Para ajudá-la, chama um padre, que mais tarde narrará esses eventos ao leitor.
     As três editoras que recusaram Machado de Assis garantem que o texto foi lido e avaliado (leia texto à esquerda). Na editora Objetiva, por exemplo, chegaram 547 originais em 1998. De 1º de janeiro deste ano até sexta-feira passada, já são 232. "Lemos, no mínimo, 20 páginas de cada livro", diz Isa Pessoa, diretora editorial da Objetiva. "Temos duas pessoas para isso e também usamos colaboradores de fora." A editora Rocco recebe cerca de 40 originais por mês. "Há períodos em que o número chega a 80", diz a gerente editorial Vivian Wyler. Três funcionários são encarregados da primeira leitura e, quando interessa, o texto é passado para uma segunda e uma terceira opinião. "No mínimo, são pessoas com mestrado em literatura." Já na Companhia das Letras, que recebe cem originais em português por mês, o trabalho de avaliação é feito por sete pessoas. "Fora isso, temos pareceristas especializados", afirma Ruth Lanna, que gerencia a seleção de manuscritos. As três editoras já descobriram autores por esse método: Antenor Pimenta, Maurício Luz (Rocco), Cristina Moutella, Fernanda Young (da Objetiva), Sílvia Zatz e Elvira Vigna (Cia. das Letras).
     Polêmica - Situar "Casa Velha" na obra de Machado de Assis é problemático. Para o inglês John Gledson, um dos mais respeitados especialistas no autor, o romance foi escrito em 1885, ou seja, entre "Memórias Póstumas de Brás Cubas" (1880) e "Quincas Borba" (1886-91). "Foi depois da crise dos 40", diz Gledson. É a chamada fase realista - a melhor de Machado. Lúcia Miguel Pereira, uma das mais importantes estudiosas de Machado, morta há 40 anos, não concordaria. Para ela, que foi a responsável pela publicação de "Casa Velha" pela primeira vez em livro, em 1944, o romance sempre foi da primeira fase, escrito nos anos 70. "Não gosto de comparar, mas é um livro de primeira importância", resume Gledson. "É possível que o próprio Machado não pensasse assim, pois ele não reuniu os episódios para publicação em livro, como fez com outras obras. Isso coube à Lúcia Miguel Pereira." Mesmo assim, Gledson encontra elementos que considera suficientes para situar "Casa Velha" na fase realista. "Tem certas coisas, como o fato de o narrador não ser confiável. Ele não é observador, faz parte da história, age", explica. E por que Lúcia Miguel Pereira pensava diferente? "Falta aquela ironia típica machadiana. Não há os capítulos curtos, as brincadeiras de agredir o leitor. A falta dessas coisas estranhas, que questionam a própria narração, faz o livro não se parecer com um Machado da segunda fase", diz Gledson. Para quem se interessar, há três edições, todas elas dificílimas de ser encontradas em livrarias (não confundir com "Relíquias de Casa Velha", reunião de contos). Uma versão está no segundo volume - intitulado "Contos" - das obras completas de Machado de Assis da editora Nova Aguilar. As outras duas são da Garnier e da Paz e Terra. Essa última está esgotada há cinco anos. Mais certo é encontrar "Casa Velha" na Internet. O livro completo pode ser lido no site da Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro: www.futuro.usp.br/bibvirt.

POLÊMICA
"Escritor não cativa em 99"
da Reportagem Local


        "Estilos também envelhecem. Foi uma decisão comercial-editorial que eu assino embaixo." Essa é a avaliação da diretora editorial da Objetiva sobre o original de "Casa Velha", enviado pela Folha sem o nome de seu verdadeiro autor, Machado de Assis. "Uma coisa é um autor dentro de seu contexto literário e político. Outra é ele hoje. Ele não cativa. Fiquei surpresa por não termos identificado. Mas, sendo rigorosos como somos, ele não está dentro do que estamos buscando. Não tem empatia com o leitor brasileiro de 1999."
        Para a gerente editorial da Rocco, Vivian Wyler, "o problema é de mercado mesmo. A pessoa que avaliou o livro disse que, de cara, pesou o fato de parecer uma novela histórica. É um gênero que teve um 'boom' há alguns anos e, só para 99, já contratamos três livros assim. Sendo que dois são exatamente desse período". "Então, pela 'consideração tema', eu já tinha outros. Pela 'consideração estilo', julgou-se que o autor imitava um estilo antigo, o que é complicado para o leitor de hoje, às vezes, um empecilho. A linguagem é um pouco rebuscada." Wyler afirma que sua avaliadora não foi até o fim do texto. "Porque esses elementos já estavam todos no início. Além disso, o original não tinha título, endereço para devolução, apenas um e-mail. Não tinha o que a gente costuma exigir das pessoas", afirma.
        A responsável pela seleção da Companhia das Letras, Ruth Lanna, não soube explicar as razões editoriais da recusa de "Casa Velha". "Fui procurar os registros e encontrei a entrada desse original e também a saída, mas não a avaliação", afirma. "Não sei dizer os motivos. Mas afirmo que o texto enviado foi analisado. Se você recebeu uma carta de recusa, é por que ele passou nas mãos de um leitor aqui dentro."