A CONSTRUÇÃO DO SIGNO POÉTICO: DO SÍMBOLO AO ÍCONE (PUC)

Poesia: A arte como sistema

O que é poesia? De acordo com o estudo das funções da linguagem de Jakobson, poesia é um texto no qual há o predomínio da função poética. Dizer predomínio implica em dizer que a função poética não é, ao contrário do que às vezes se pensa, a única função da poesia e não é também a função exclusiva do texto poético. O próprio Jakobson nos alerta para esse fato quando diz que “Qualquer tentativa de reduzir a esfera da função poética à poesia ou de confinar a poesia à função poética seria uma simplificação excessiva e enganadora. A função poética não é a única função da arte verbal, mas tão somente a função dominante.”1 Para esclarecer melhor o que seja função poética, podemos dizer, com a professora Maria Rosa — em aula —, que “a função poética projeta o princípio da equivalência (similaridade) do eixo de seleção (paradigma) sobre o eixo da combinação (sintagma).”

Décio Pignatari nos fala um pouco sobre a diferença entre poesia e prosa, e com isso explica o fato de a poesia muitas vezes nos parecer um texto que vai contra as leis da gramática que conhecemos. “Um poema cria sua própria gramática e seu próprio dicionário. Um poema transmite a qualidade de um sentimento (...) transmitindo a qualidade do sentimento dessa idéia. Uma idéia pode ser sentida e não apenas entendida, explicada, descascada.”2 A poesia é, portanto, um texto rico de recursos semânticos, sonoros e formais, o que faz desse texto algo diferente da prosa. A professora Maria Rosa – em aula — nos diz que “poesia é a forma de dizer o indizível, traduzir o sentimento intraduzível. A poesia não fala das coisas, ela faz as coisas. O poema é um ícone, uma imagem do que ele fala. Fazer poesia é trabalhar analogia. Até os contrastes trabalham com semelhanças.” E diz-nos também que “verso significa volta, lembra um círculo. A poesia retorna para si mesma como se dissesse: “Eu sou minha própria mensagem, não busque meu significado fora de mim.” E para confirmá-la, vemos em Jakobson a informação de que “a palavra verso tem a mesma raiz de prosa: provorsa, proversa. Além disso versus quer dizer retorno, um discurso que comporta regressos. Na prosa o regresso não conta, na poesia a repetição é a própria base do verso.”3 É ainda Jakobson quem nos diz, citando Hopkins: “A parte artificial da poesia, talvez fosse justo dizer toda forma de artifício, se reduz ao princípio do paralelismo. A estrutura da poesia é a de um contínuo paralelismo.”4

Ninguém discutiria o fato de que um bom poema é um texto harmonioso, e podemos ver porque, “A união indissolúvel do ritmo e da semântica é o que chamamos de harmonia.”5 E, ainda sobre a diferença entre o verso e a prosa e com respeito ao fato de a poesia fazer suas próprias leis, diferentes das leis que regem a prosa, vemos que “A atitude correta seria considerar o verso como um complexo necessariamente lingüístico, mas que repousa sobre leis particulares que não coincidem com as da língua falada.”6 A poesia, como um todo, vimos que é e deve sua característica de ser especial ao fato de ser um complexo sonoro, rítmico, semântico e formal. Jakobson nos esclarece de que “O que dá valor ao poema é a relação entre som e sentido.”7 E Valéry nos diz que “Em cada verso, o significado, longe de destruir a forma musical comunicada, reclama essa forma."88

A rima é um dos componentes desse sistema que é a poesia, e sobre ela os teóricos nos dizem muito: “A rima é capaz de criar inusitadas e impensadas alianças entre as palavras. Está sempre em jogo a relação entre som e sentido: tudo na linguagem é significante.”9 “A rima é o materializador do ritmo através da semelhança fonética. É ocorrência que vai além do sonoro.”10 “Seria uma simplificação abusiva tratar a rima meramente do ponto de vista do som. A rima implica necessariamente uma relação semântica entre unidades rítmicas.”11 “Existem dois elementos na beleza que a rima oferece ao espírito, a semelhança ou igualdade de som e a dessemelhança ou diferença de significado.”12

O todo da poesia, porém, não está restrito apenas à rima. Rima e metro são apenas dois dos componentes do sistema poético que são aceitos e reconhecidos nas escolas, mas a poesia não é apenas rima e metro, é muito mais do que isso: “Maiakovski disse que o ritmo poético “é a força, a energia básica do verso”. O verso é uma figura de som recorrente, o que vale dizer também que implica em paralelismo contínuo: no ritmo, no metro, na aliteração, na assonância e na rima. A força dessa recorrência é engendrar outro paralelismo correspondente nas palavras e nas idéias (semelhança ou diferença).No todo do poema, o ritmo é o movimento de vai e vem, é o diagramador da sintaxe, que é o coração do poema e de qualquer outro discurso. Cada parte já contém em si o todo e não há sequer um elemento que não esteja funcionalmente vinculado a qualquer outro por algum tipo de correspondência. Tal é a definição de sistema (poema é um sistema). O eco que a alternância rítmica parece criar leva-nos para dentro do próprio poema, confirmando as origens da palavra “verso” como “aquele que retorna sobre seu próprio corpo, em circunvoluções que aproximam o discurso poético da dança, da música e da esfera.”13

E as leis da poesia, diferentes das da prosa, são na verdade liberdades de criação. Tudo vale para que se possa atingir o objetivo, inclusive criar novas leis ou transgredir as já existentes, o que também acaba valendo como criar novas leis. “Osip Brik, costumava dizer que os conspiradores políticos são julgados e condenados somente por tentativas malogradas de golpes de força, visto serem os próprios conspiradores que assumem o papel de juizes e acusadores no caso de o golpe alcançar êxito. Se as violências contra o metro deitarem raízes, tornam-se elas próprias leis métricas.”14

O trabalho do arquiteto

Fazer poesia não é, apesar de todo esse maravilhoso complexo que é o poema, privilégio de seres iluminados e escolhidos pelos deuses, Bakhtin nos esclarece sobre isso: “Não há base científica para expressões como: “Ah, eu tenho idéias mas não consigo expressá-las”. [...]não é a atividade mental que organiza a expressão, mas, ao contrário, é a expressão que organiza a atividade mental.”1 Portanto o poeta é um homem e, como tal, é capaz de racionalizar o seu trabalho e de fazer auto crítica; o poeta, o verdadeiro poeta, é também um lógico. “Se um poeta nunca fosse algo além de poeta, ele não deixaria atrás de si qualquer traço poético.”2

O que diferencia o poeta dos homens comuns é apenas sua capacidade de observação. “Observar é olhar com mais cuidado, é ver como nunca se viu; é o estranhamento, semelhante à epifania”. (Maria Rosa – em aula). Sobre o estranhamento, Peirce nos diz que é o estranhamento que leva a mente humana às descobertas, ao conhecimento. “Como ocorre a ação da experiência? Através de uma série de surpresas. É através de surpresas que a experiência nos ensina tudo aquilo que condescende a ensinar-nos.”3

Mas não basta olhar o mundo e vê-lo com olhos de observador ávido de conhecimento para ser um poeta, o poeta é, além de tudo isso e antes de tudo isso, um trabalhador, e já de muito longe no tempo vem o conhecimento de tal verdade. “Vocês, descendentes de Pompílio, retenham o poema que não tenha sido apurado em longos dias de muita rasura, polido dez vezes até que uma unha bem aparada não sinta asperezas.”4

Valéry, falando como poeta que é, mostra-nos a realidade do trabalho do poeta. “Se me interrogam acerca do que eu quis dizer em um tal poema, respondo que eu não quis dizer, mas quis fazer, e que foi a intenção de fazer que quis o que eu disse.”5 A professora Maria Rosa comenta a respeito desse assunto: “Valéry compara o trabalho do poeta ao do homem quando descobre e trabalha as pedras e metais preciosos escondidas na terra. A palavra do cotidiano, comum e corriqueira, é a matéria-prima do poeta que a trabalha de tal forma a torná-la em palavra preciosa. Para isso a inspiração não basta, há que trabalhar, sentimento e pensamento trabalham unidos. “Quem em mim sente, está pensando” (Fernando Pessoa).”6 E a professora nos fala um pouco mais sobre isso. “Figurar pelo trabalho de seleção – combinação das partículas poéticas – é muito diferente de simplesmente fazer uso de figuras de linguagem, rimas ou divisão das frases em versos. Figurar é operação intelectual que consiste em traçar diagramas correlacionais nos quais os termos se vinculam por similaridade, esse é o modo dominante de raciocínio da função poética. Figurar palavras ou termos é torná-los “coisas”, organismos vivos, é destacar o lado palpável da mensagem.”7

E Maria Rosa arremata ao defender o trabalho com a criação poética como uma rica opção para o ensino da língua nas escolas. “Imaginar ou simular correlações hipotéticas entre elementos nunca antes aproximados é o modo como opera a descoberta, no campo da arte ou da ciência. É assim também que o raciocínio poético se configura não apenas na poesia mas na linguagem cotidiana, que é por onde as preparações poéticas deveriam começar.”8

Valéry nos alerta que: “Há uma diferença profunda entre a nossa sensibilidade e o fazer poético, este é trabalho. No fazer poético há algo mais do que idéias.” E acrescenta: “O universo poético tem que tomar emprestada a linguagem de uso comum em que cada palavra é uma montagem instantânea de um som e de um sentido, sem qualquer relação entre eles.”9

A respeito do modo como o leitor por vezes vê o trabalho do poeta, Valéry tem a dizer que: “Algumas pessoas, vendo na poesia apenas a perfeição, considerá-las-ão como resultado de uma espécie de prodígio denominado inspiração. Fazem assim do poeta uma espécie de médium momentâneo. Se assim fosse não haveria necessidade de conhecimento e o poeta poderia escrever em qualquer língua que não conheça.” E acrescenta: “O trabalho do poeta exige uma quantidade de reflexões, decisões, escolhas e combinações sem as quais todos os dons possíveis da musa ou do acaso continuariam sendo materiais preciosos em um canteiro de obras sem arquiteto.”10 E mais ainda nos esclarece: “A duração de composição de um poema, mesmo bem curto, pode absorver anos, enquanto a ação do poema no leitor será realizada em alguns minutos.”11 Décio Pignatari mostra concordar com ele: “Para o poeta, mergulhar na vida e mergulhar na linguagem é (quase) a mesma coisa. Sabe que a palavra “amor” não é o amor e não se conforma.”12 E Maiakovski fala-nos um pouco sobre o que se sabe quase como conhecimento geral e assumido da humanidade: A distração e alheamento dos poetas. “Uma rima que se está caçando, mas ainda não se conseguiu agarrar pelo rabo, nos envenena a existência: Você conversa sem compreender, come sem distinguir, e perde o sono, quase vendo a rima que voa diante de seus olhos.”13

Do símbolo ao ícone

Sob o ponto de vista da semiótica poesia é signo, por isso é preciso, antes de qualquer coisa, definir signo. Mas como definir signo? Lúcia Santaella nos alerta de que, se percorrermos os oito volumes do Collected papars (1931-58), de Charles Sanders Peirce, poderemos encontrar, no mínimo, entre vinte e trinta formulações distintas da sua definição de signo. Podemos então, para começarmos nosso assunto, aceitar uma das menores e mais reproduzidas definições que nos dá Peirce: “Signo é alguma coisa que representa algo para alguém.” Ou, para aqueles que não ficarem satisfeitos com tão simples e resumida definição, podemos apresentar esta outra, mais completa e, portanto, um pouco mais complicada: “Um signo intenta representar, em parte pelo menos, um objeto que é, portanto, num certo sentido, a causa ou determinante do signo, mesmo se o signo representar seu objeto falsamente. Mas dizer que ele representa seu objeto implica que ele afete uma mente, de tal modo que, de certa maneira, determine naquela mente algo que é mediatamente devido ao objeto. Essa determinação da qual a causa imediata ou determinante é o signo, e da qual a causa mediata é o objeto, pode ser chamada o interpretante.”1

Porém o signo é, por sua própria natureza, um ser incompleto já que intenta representar um objeto sem nunca conseguir pois não é igual ao objeto, não é o objeto e não pode prescindir do objeto. “O signo estará, nessa medida, sempre em falta com o objeto. Daí sua incompletude e conseqüente impotência. Daí sua tendência a se desenvolver num interpretante onde busca se completar. Contudo, sendo o interpretante de natureza sígnica, ele se manterá também em dívida para com o objeto, que será, em razão disso, aquilo que, por resistir na sua alteridade, determina a causação lógica do desenrolar dos interpretantes.”2

Não apenas a poesia é signo, tudo é ou pode ser signo, inclusive o próprio homem. Quem pode nos ajudar nessa afirmação é Lúcia Santaella quando diz que “para conhecer e se conhecer o homem se faz signo e só interpreta esses signos traduzindo-os em outros signos. O significado de um pensamento ou signo é um outro pensamento.” E mais adiante afirma: “Eis aí, num mesmo nó, aquilo que funda a miséria e a grandeza de nossa condição como seres simbólicos. Somos no mundo, estamos no mundo, mas nosso acesso sensível ao mundo é sempre como que vedado por uma crosta sígnica que, embora nos forneça os meios de compreender, transformar, programar o mundo, ao mesmo tempo usurpa de nós uma existência direta, imediata, palpável, corpo a corpo e sensual com o sensível.”3 E encontramos aí a explicação que nos faz entender nossa própria imperfeição.

O signo, de acordo com a relação que mantém com o objeto que representa, pode ser ícone, índice ou símbolo. É ícone quando sua relação com o objeto é uma relação de semelhança, um desenho ou uma fotografia por exemplo. É índice quando sua relação com o objeto, embora não seja de semelhança, existe por alguma indicação desse objeto, a planta de uma casa, uma marca de pés na areia. E é símbolo quando não existe relação de semelhança mas sim de convenção, de uma lei que torna algo símbolo de um determinado objeto, as palavras são o exemplo mais claro de símbolo que podemos citar.

Para que essa definição de ícone, índice e símbolo fique clara e objetiva, vamos solicitar a ajuda de Peirce, ele nos diz que “O ícone não tem conexão dinâmica alguma com o objeto que representa, simplesmente acontece que suas qualidades se assemelham às do objeto e excitam sensações análogas na mente para a qual é uma semelhança. Mas na verdade não mantém conexão com elas. O índice está fisicamente conectado com seu objeto; formam ambos, um par orgânico, porém a mente interpretante nada tem a ver com esta conexão, exceto o fato de registrá-la depois de ser estabelecida. O símbolo está conectado a seu objeto por força da idéia da mente-que-usa-o-símbolo sem a qual essa conexão não existiria.” Em outras palavras, Peirce nos diz mais adiante que “Ícone é um signo que possuiria o caráter que o torna significante, mesmo que seu objeto não existisse. Índice é um signo que de repente perderia seu caráter que o torna um signo se seu objeto fosse removido, mas que não perderia esse caráter se não houvesse interpretante. Um símbolo é um signo que perderia o caráter que o torna um signo se não houvesse interpretante.”4

Poeta: Signo a produzir signos

E o que é um poeta? É um homem que sabe que não existe na natureza nada em estado puro, que aquilo que poderíamos chamar de símbolo, pode muitas vezes ter algo de ícone, e aquilo que poderíamos chamar de ícone, tem algo de símbolo, e ainda que o que tendemos a chamar de índice pode ter algo dos outros dois. Ele percebe que não há um signo puramente icônico, puramente indicial ou puramente simbólico. Portanto, a palavra, que seria o exemplo mais completo de símbolo, acaba por revelar-se como um signo icônico. A professora Maria Rosa nos dá o exemplo de Borges, que confirma isso: “Borges, pensando a palavra lua (moon) vê nela o ritmo pousado que obriga a voz a uma lentidão e a quase circularidade da palavra, que começa e termina com sons semelhantes que sugerem a própria lua, e daí conclui que “cada palavra é uma obra poética” mais eficaz do que a própria metáfora, que é uma obra de segundo grau já que, geralmente, compõe-se de mais de uma unidade enquanto a palavra talvez revele mais eficazmente o conceito que representa.”1 Valéry nos faz ver a verdade de tal afirmação ao dizer que “Uma palavra de uso cotidiano torna-se, ao ser isolada, magicamente problemática.”2

Daí podemos concluir que o poema, que por ser composto de palavras, seria um símbolo, torna-se, nas mãos do poeta, um ícone. “Os signos que se organizam por similaridade, por analogia, são ícones, são figuras. Os signos que se organizam por contiguidade são símbolos. Logo, o que basicamente caracteriza o fenômeno poético é a transformação de símbolos em ícones.”3

Mas Décio Pignatari diz que “um conceito jamais poderá substituir uma forma, portanto, um símbolo jamais poderá substituir um ícone”, e afirma que “esse é o drama e a fascinação da análise literária.”4 Como fica difícil ler essa afirmação de Pignatari sem concluir que o que vale para a análise literária vale também para a produção literária e, consequentemente, para a produção poética, já que Valéry nos deu essa liberdade ao afirmar que “todos os poetas verdadeiros são necessariamente críticos de primeira ordem.”5, confirmamos que a angústia do poeta é a mesma angústia do homem, ser sígnico, porque o poeta é um homem e o poeta é mais ainda exposto a esse paradoxo porque ele faz-se signo e faz signos. A incompletude está nele e em sua própria criação.

Porém, a imperfeição leva à busca e a busca é vida. A vida é algo que está sempre aberto ao novo. Pode-se nunca atingir um ponto desejado, mas a busca desse ponto é o que faz com que tudo valha a pena. E o poeta sabe disso, por isso é poeta, por isso faz poesia, essa “caixa de ressonância” no dizer da professora Maria Rosa – em aula —. Jakobson nos informa que a palavra poesia é de origem grega e significa “criar”, e afirma que a poesia é “o domínio mais criador da linguagem.”6 A poesia é, portanto, criação, arte. Paul Valéry define poesia como “uma arte da linguagem.”7 Como arte, poesia é algo capaz de nos tocar, prende; é capaz de aproximar-nos de nós mesmos e pode revelar à nossa visão aspectos do mundo e de nossa própria essência que, de outra forma, não perceberíamos.

Para conseguir todo esse efeito, a poesia usa de recursos que a compõe e fazem dela o que ela é: a rima, o verso, o ritmo, a métrica, a harmonia. Usa as palavras arranjando-as da forma mais favorável para que elas possam nos mostrar sua capacidade de projetar uma imagem visual sobre nossa mente (fanopéia), sugerir uma propriedade sonora (melopéia) ou trazer-nos à mente uma idéia (logopéia), “A dança do intelecto entre as palavras.”8 O poema é uma caixa de ressonância; por isso, cada vez que se lê um bom poema, lê-se um novo poema. A professora Maria Rosa – em aula — afirma que “a poesia é um texto saturado de significados. Tem o lado conceitual, visual, sonoro; é dissertativo, narrativo e descritivo ao mesmo tempo.” Como leitores, vemos que tudo isso nos aparece em combinações diferentes, de formas diferentes e com intensidades diferentes cada vez que lemos o poema. Um bom poema é como um rio que não se atravessa duas vezes: cada vez é um novo rio e uma nova pessoa, cada vez é um novo poema e um novo leitor.

Esse mágico efeito é dado pelo poema porque todas as suas partes (rima, ritmo, verso, conteúdo, forma, etc.) são interdependentes. Décio Pignatari afirma que “um poema é um todo orgânico — umas partes influenciam nas outras.”9 Paul Valéry diz que “O valor de um poema reside na indissolubilidade do som e do sentido.”10 É por isso que Décio Pignatari nos recomenda ler o poema em voz alta, ele sabe que assim teremos o todo agindo igualmente sobre nossos sentidos.

Conseguir esta correlação só pode ser um trabalho racional. Não pode ser apenas coincidência inspirada. Basta ver o que esse conjunto, forma som e sentido, cria no poema e podemos perceber que isso não é simples obra do acaso, houve aí um trabalho, o trabalho do poeta. Da mesma forma, aquela pincelada que iluminou uma tela dificilmente terá sido causada por um acidente que fez derramar um pouco de tinta sobre o trabalho do artista. O poeta é um homem que vê com os olhos “desarmados”, é aquele ser capaz de olhar para as coisas mais cotidianas como se nunca as tivesse visto antes; é capaz de estranhá-las, de procurar nelas outros sentidos, outras formas, outras utilidades.

POEMINHA SURREALISTA

Gostaria, querida,

De ser inesperado

Como uma madrugada amanhecendo

À noite

E engraçado, também,

Como um pato num trem.

(Millôr Fernandes 1980: 38)

Neste poema Millôr Fernandes fala do inesperado e faz o inesperado; e o inesperado, algo comum como é um pato colocado em um lugar que não lhe pertence em nossa visão cotidiana, torna o poema engraçado como ele queria ser.

Talvez por essa capacidade de olhar parando os olhos e a mente sobre as coisas, o poeta seja aquele que tem algo a dizer. E como sua visão não é comum, o que ele tem a dizer não pode ser dito de forma comum, só pode ser dito através da poesia: “Deve-se pegar da pena somente quando não existe outro meio de dizer o que se quer, a não ser o verso.”11 E o poeta faz, não por inspiração sagrada ou por uma graça que se lhe derrama sobre a cabeça fazendo com que sua mão risque o papel produzindo um texto acabado e perfeito, mas com o trabalho de sua mente, de seu intelecto e de suas mãos que rabiscam, riscam e apagam várias vezes o texto, na busca da palavra exata. Paul Valéry nos conta isso quando diz que “O estado poético não basta para fazer um poeta.” E, mais tarde afirma que “A inspiração é uma atribuição gratuita feita pelo leitor ao seu poeta. O leitor procura encontrar no poeta a causa admirável de sua admiração.”12 E Maiakovski mostra em sua afirmação que também pensava assim “A poesia é uma forma de produção. Dificílima, complexíssima, porém produção.”13 A professora Maria Rosa completa: “Não é à toa que poeta na sua raiz grega = aquele que faz. Faz linguagem fazendo poema. Torna a língua eficiente, limpando-a de todas as palavras que não funcionam e deixando apenas aquelas carregadas de significado. O que é também, condensação: qualidade fundamental da poesia, segundo Paund.”14 Décio Pignatari nos alerta que “O poeta não trabalha com o signo, trabalha o signo verbal.”15

O poeta é, portanto, um homem que, trabalhando o signo, faz, ou tenta fazer de um símbolo um ícone. Sua poesia, então, mais do que dizer, pretende fazer o que diz. Um poema não fala de um objeto ou de um sentimento, um poema tenta ser esse objeto ou esse sentimento. “A poesia sonha com a capacidade, não de dizer, mas de incorporar um objeto.” (Fernando Segolin – em aula). E por que transformar símbolo em ícone é o recurso do poeta em sua arte? Lúcia Santaella nos dá essa resposta quando diz que “por representarem formas e sentimentos os ícones têm um alto poder de sugestão.”16

Graças a esse poder de sugestão, a poesia é sempre multi-interpretativa, está sempre aberta a novas descobertas, desde que essas descobertas se apoiem na própria poesia e não fora dela. “A obra nunca é inteiramente insignificante (misteriosa ou “inspirada”) nem inteiramente clara; ela é, se quiserem, sentido suspenso: oferece-se, com efeito, ao leitor como um sistema significante declarado, mas esquiva-se-lhe como objeto significado.”17

Por essa capacidade de sugestão, exuberância de significado e poder de criação, a poesia é uma arma poderosa para a renovação e o ensino da língua. A professora Maria Rosa afirma que a poesia “alarga os limites de combinatórias possíveis para determinado sistema lingüístico.” Então, segundo ela, “a poesia é a antena da língua, assim como “os artistas são as antenas da raça”, no dizer de Paund.”18

Daí podemos concluir que a poesia é uma riqueza que não deve ser desprezada. Ela pode nos servir como um poderoso material didático, como eficiente forma de renovação da língua e do pensamento humano, como um grande incentivo à criatividade e à capacidade de ver o mundo e os outros seres que o habitam, com suas particularidades e diferenças, e ver a nós mesmos, valorizando nossas imperfeições, retraçando nossos caminhos e direcionando nossas buscas, tanto como educadores quanto como seres humanos.

NOTAS:

As citações aqui apresentadas foram extraídas dos respectivos textos mencionados abaixo, porém, várias delas não constam nesse trabalho exatamente como estavam no texto original, mas sim resumidas ou parafraseadas.

Poesia: A arte como sistema

1 – (Roman Jakobson – Lingüística e comunicação –p.128)

2 – (Décio Pignatari – Comunicação Poética – p.14)

3 – (Roman Jakobson – O que fazem os poetas com as palavras – p.10)

4 – (Roman Jakobson – Lingüística e comunicação –p.146)

5 – (Teoria da literatura – Formalistas russos – p.136)

6 – (Teoria da literatura – Formalistas russos – p.139)

7 – (Roman Jakobson – O que fazem os poetas com as palavras – p.14) 8 – (Paul Valéry – Variedades – p.213)

9 – (Roman Jakobson – O que fazem os poetas com as palavras – p.10)

10 – (Maria Rosa – O que é poesia no primeiro grau? – p.5)

11 – (Roman Jakobson – Lingüística e comunicação –p.144)

12 – (Roman Jakobson – Lingüística e comunicação –p.145)

13 – (Maria Rosa – O que é poesia no primeiro grau? – p.4-5)

14 – (Roman Jakobson – Lingüística e comunicação –p.139)

O trabalho do arquiteto

1 – (Baccega, M. A. – A palavra: da língua ao discurso – p.56-57)

2 – (Paul Valéry – Variedades – p.205)

3 – (Peirce – As categorias universais –p.27)

4 – (Horácio – A Poética Clássica – p.63). Em nota de pé de página: “Reprehendite pode significar “censurai”, como entendeu F. Villeneuve na edição Belles Lettres. O sentido original de reprehendere, contudo, é segurar por trás, reter. Pensamos ser este o desejado pelo A. que, mais adiante (v. 389), recomenda a retenção dos originais por oito anos antes da publicação.”

5 – (Maria Rosa – O que é poesia no primeiro grau? – p.1)

6 – (Maria Rosa – O que é poesia no primeiro grau? – p.1)

7 – (Maria Rosa – O que é poesia no primeiro grau? – p.2)

8 – (Maria Rosa – O que é poesia no primeiro grau? – p.3-4)

9 – (Paul Valéry – Variedades – p.206-210)

10 – (Paul Valéry – Variedades – p.215-216-217)

11 – (Paul Valéry – Variedades – p.217)

12 – (Décio Pignatari – Comunicação Poética – p.5)

13 – (Maiakovski – A poética de Maiakovski através de sua prosa – p.178)

Do símbolo ao ícone

1 – (Lúcia Santaella – O que é semiótica – p.22-58)

2 – (Lúcia Santaella – A teoria geral dos signos – p.48)

3 – (Lúcia Santaella – O que é semiótica – p.52)

4 – (Peirce – Semiótica – p.73-74)

Poeta: Signo a produzir signos

1 – (Maria Rosa – O que é poesia no primeiro grau? – p.4)

2 – (Paul Valéry – Poesia e pensamento abstrato – p.203)

3 – (Décio Pignatari – Semiótica e literatura – p.21)

4 – (Décio Pignatari – Semiótica e literatura –p.22)

5 – (Paul Valéry – Variedades –p.216)

6 – (Roman Jakobson – O que fazem os poetas com as palavras –p.9-10)

7 – (Paul Valéry – Variedades –p.208)

8 – (Ezra Paund – ABC da literatura –p.11)

9 – (Décio Pignatari – Comunicação Poética – p.5)

10 – (Paul Valéry – Variedades –p.214)

11 – (Maiakovski – A poética de Maiakovski através de sua prosa – p.201)

12 – (Paul Valéry – Variedades – p.206)

13 – (Maiakovski – A poética de Maiakovski através de sua prosa – p.201)

14 – (Maria Rosa - O que é poesia no primeiro grau? – p.3)

15 – (Décio Pignatari – Comunicação Poética – p.4)

16 – (Lúcia Santaella – O que é semiótica –– p.64)

17 – (Roland Barthes – Que é a crítica? – p.364)

18 – (Maria Rosa – O que é poesia no primeiro grau? – p.3)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

1 – ARISTÓTELES, HORÁCIO, LONGINO. (1995). A Poética Clássica. S. Paulo: Cultrix.

2 – BACCEGA, M. A. ((1995). Palavra e Discurso. S. Paulo: Ática.

3 – BARTHES, R. (1964). Que é a crítica? in Essais Critiques, Col. “Tel Quel”, Éditions du Seuil, Paris.

4 – EIKHENBAUM, e outros. (1978). Teoria da literatura – Formalistas russos. P. Alegre: Globo.

5 – FERNANDES, M. (1980). Literatura Comentada. S. Paulo: Abril.

6 – JAKOBSON, R. (1970). Lingüística e Comunicação. Trad. Isidoro Blikstein e José Paulo Paes. S.Paulo: Cultrix

7 – JAKOBSON, R. (1973). “O que fazem os poetas com as palavras” em Cadernos da Colóquio / Letras – Teoria da Literatura e da Crítica – nº 1. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

8 – OLIVEIRA, M.R.D. (1998). O que é poesia no 1º grau? – (Texto apresentado na Bienal do Livro: maio – 1998)

9 – PEIRCE, CH. S. (1977). Semiótica. Trad. J. Teixeira Coelho Neto. S. Paulo: Perspectiva.

10 – _______. (1974). Escritos Coligidos. Col. Os Pensadores. S. Paulo: Abril.

11 – PIGNATARI, D. (1977). Comunicação Poética. S. Paulo: Cortez & Moraes.

12 – _______. (1987). Semiótica & Literatura. S. Paulo: Cultrix.

13 – POUND, E. (1970). ABC da Literatura. Trad. Augusto de Campos e José Paulo Paes. S. Paulo: Cultrix.

14 – SANTAELLA, L. (1995). A Teoria Geral dos Signos – Semiose e Autogeração. S. Paulo: Ática.

15 – _______. (1995). O que é Semiótica. S. Paulo: Brasiliense.

16 – SCHNAIDERMAN, B. (1971). A poética de Maiakóvski através de sua prosa. S Paulo: Perspectiva.

17 – VALÉRY, P. (1991). Variedades. Trad. Maiza M. de Siqueira. S. Paulo: Iluminuras.

Divina de Jesus Scarpim
Enviado por Divina de Jesus Scarpim em 11/11/2020
Reeditado em 30/01/2021
Código do texto: T7109521
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