O IMPÉRIO DA LEI

PARTE 01: PREÂMBULO NECESSÁRIO.

"Já dizia o Juiz Holmes: ‘Uma palavra não é um cristal transparente e imutável; ela é a pele de um pensamento vivo e pode variar intensamente em cor e conteúdo de acordo com as circunstâncias e o tempo em que são usadas’ (Towne V. Eisner, 245 US, p. 425)". (SCHNAID, David. A Interpretação Jurídica Constitucional (e Legal), in RT. 733:35).

Como bem sabemos a ideia de lei é fruto do convívio social, uma vez que, a fim de evitar-se o caos, vem o Estado e busca regular as relações humanas com o fito de assegurar a paz social. E na esteira desse pressuposto, temos que, dada a diversidade das relações humanas e a velocidade e aprimoramento com que evoluem, também a lei e o conjunto normativo precisam atualizar-se para acompanhar o ritmo com que a sociedade progride, gerando novas relações.

De modo mais abrangente, a lei, ou melhor, o conjunto normativo (ou ainda, o ordenamento jurídico), visa regrar a conduta humana, pois, caso contrário, estaríamos mergulhados no mais absoluto caos. Em nosso país, esse conjunto normativo tem como nascedouro, o Direito Romano, e também as Ordenações do Reino Português, cuja égide tem como epicentro as relações humanas e meio para que elas se tornem mais equânimes e justas.

Aliás, a medida da justiça é o fiel da balança, no qual se estabelece tudo aquilo que é bom para o indivíduo, assim como, bom também para a sociedade, de tal maneira que, ao regular uma relação contratual, como a compra e venda, assegura-se que, ambas as partes envolvidas vejam seus direitos respeitados, assim como observem os deveres que decorrem do contrato. E essa regulamentação, inicialmente, absorve seus paradigmas do assim chamado Direito Natural, aquele que não possui critérios adequados sobre o tempo e modo como as obrigações devem ser cumpridas, deixando os contratantes sem meios para o fiel cumprimento contratual.

Nesse cenário, nasce o Direito Positivo, fruto da vontade soberana da sociedade, que deve impor aos cidadãos normas que assegurem relações interpessoais estáveis, com efetivação da justiça, sem colidir com o Direito Natural, que é fonte de sua legitimidade. E essa positividade não se escora apenas e tão somente no conjunto normativo, pois, o que torna positiva uma norma não ser fruto de atividade legislativa imposta pela autoridade política, mas sim nascer e frutificar de usos, costumes e contratos que são formas de criação histórico-sociais.

Insta salientar que, o Direito Positivo, tal como monopólio do Estado na edição de leis, precisa ser distinguido daquele que é fruto da forma consuetudinária, muito embora haja uma prevalência subordinada à fonte legislativa, atribuindo, portanto, ao Estado a função de determinar critérios de juridicidade. Isso nos permite afirmar, categoricamente, que o Direito Positivo contemporâneo é composto pelo conjunto de leis, ou ordenamento jurídico que traz ainda em seu bojo, costumes e contratos que por ele são reconhecidos e revestidos de validade.

Quanto ao Direito Natural, fonte criativa que permite a devida adequação do ordenamento jurídico ao contexto histórico no qual se encontra inserido, cabe a tarefa de viabiliza que princípios naturais permaneçam incólumes, porém que sua efetivação seja constantemente adaptada aos valores sociais predominantes, restando ao Direito Positivo o encargo de coordenar as modificações de acordo com a gradual modificação/adaptação dos costumes, ou ainda sua inovação, e, quem sabe, sua renovação.

Conclui-se, pois, que a identidade entre Direito Natural e justiça é uma compatibilização necessária entre Direito Positivo e justiça, de modo que não se admita norma injusta, que é arbitrária, exigindo uma eterna harmonização do Direito Positivo ao Direito Natural, garantido a regulação justa das relações sociais.

Esta breve descrição tem o intuito de evidenciar que lei, direito e justiça são valores que precisam estar em absoluta consonância harmônica, assegurando que as relações sociais, fruto de relações humanas revestidas de imperfeição, possam tornar-se os mais perfeita possível, garantindo que o indivíduo sinta-se confortável e seguro de si próprio e com seus semelhantes, posto que, qualquer evento destoante seja suprimido antes que venha a causar preocupação e, consequentemente, desequilíbrio na convivência social.

Nos dias atuais, o que se observa é uma relativização do Direito Positivo, com o fito de evitar que sua análise torne-se um pressuposto absoluto e imutável nas mãos daqueles que detém o poder estatal, normatizando de modo que se impossibilite mudanças em benefício da minoria e não em favor da maioria, ou o interesse geral social. E é nessa inserção que o papel do judiciário tornar-se crucial para que se evitem excessos ou abusos.

O Império da Lei somente pode – e deve – servir ao interesse geral, ao bem-estar social, eliminando desigualdades e desfavorecendo igualdades cujo parâmetro seja o mais elevado, o mais beneficiado, ou o mais poderoso. A tarefa do judiciário não se resume à criação de jurisprudência uniforme apenas quanto à forma, mas também, e principalmente, quanto ao conteúdo, que deve abranger a sociedade como um todo que carece da melhor e mais justa decisão no tocante ao seu anseio, seja na esfera do direito público, seja na esfera do direito privado.

Ao longo deste trabalho que agora iniciamos, vamos procurar compreender como a incumbência do judiciário não deve ser vista como um fardo pesado demais para ser suportado, mas, como a mais nobre e digna tarefa de dar a cada um o que é seu por direito de acordo com uma medida justa, equânime, consciente, coerente e consistente, deixando para trás as nuvens da incerteza e da dúvida.

Por fim, tenhamos em mente que o objetivo da lei não está na sua própria essência; o princípio da lei reside em tornar estável o tecido social, evitando rupturas e desarranjos eventuais, ou contínuos, sendo que esse trabalho deságua, quando da lesão ou ameaça de lesão, no território do Poder Judiciário ao qual caberá não apenas a palavra final sobre a dúvida que paira sobre a sociedade, mas também o discernimento sobre o tempo e o modo como a resolução do impasse aconteça, reestabelecendo o equilíbrio que faça a sociedade e, com ela, as relações humanas, assentarem-se sobre os pilares da justiça, da dignidade e honradez que engrandeça o ser humano, valorizando-o individual e coletivamente, sem qualquer prejuízo que possa conspurcar a consciência e ferir de morte o senso de justiça que clama dentro de cada um de nós.

Em caso recentíssimo, amplamente noticiado pelos jornais, vimos a vida do recém-nascido Artur permanecer por um fio de esperança. Vítima de mais uma bala perdida na cidade do Rio de Janeiro, a criança permanece internada e inspira cuidados. E essa notícia, infeliz pelo seu conteúdo, traz para nós uma reflexão impositiva: mesmo que eventuais culpados por esse crime sejam presos e condenados, uma vida pende por um fio; sob o âmbito do Direito Natural, o que temos é a irresignação e a revolta popular, que pode explodir em um clamor próximo do uso das próprias mãos para que se faça justiça.

Todavia, como veremos ao longo de nossa explanação, o Império da Lei apresenta-se no sentido de evitar-se abusos ou excessos, com os olhos vendados para a vida do pequeno Artur, pois, o Direito não pode ajoelhar-se ante o clamor popular, permitindo que se legisle no afã de granjear possíveis “ganhos” em favor do interesse de poucos (políticos, empresários, mídia sensacionalista, e outros), deixando ao alvedrio o interesse da coletividade. Então, caso surjam indícios que conduzam ao criminoso (ou criminosos) que deixaram uma família destroçada, caberá ao Judiciário, através do Direito Positivado penalizar os culpados, mostrando à sociedade o cumprimento de seu papel como dela se espera.