Perspectivas constitucionais sobre a necessidade de equilíbrio entre propriedade privada e liberdade individual.

 


              Como dois direitos fundamentais protegidos constitucionalmente, a propriedade e a liberdade individual ensejam profícuas abordagens sobre dicotomias por vezes verificadas entre interesses públicos e privados. A fim de se analisar com cautela a extensão jurídica de tais dicotomias ou colisões entre direitos fundamentais, cumpre primeiramente ressaltar que, segundo ensinamentos de J.J. Gomes Canotilho, todos os membros da sociedade política fundamentam na Constituição os seus direitos e deveres”



           Nesse sentido, os direitos fundamentais e a as garantias que lhes são correlatas ensejam profícuas análises quanto aos seus desdobramentos sociais, políticos e econômicos. Para compreendê-los com certa amplitude, é mister considerar que “ a Constituição funde questões jurídicas e morais, fazendo com que a validade de uma lei dependa da resposta a problemas complexos, como o problema de saber se uma determinada lei respeita a igualdade inerente a todos os homens”[3].



              No contexto brasileiro, de modo mais específico, os direitos de propriedade e de liberdade, respectivamente assegurados pelo inciso XXII e caput do art. 5° da Constituição Federal de 1988, engendram abordagens de grande relevância social. No bojo dessa análise, são profícuas as seguintes considerações de Richard A. Posner, relativamente ao fato de que
um dos maiores interesses do Direito é moldar um determinado sentido à sociedade”[4], de modo que os institutos jurídicos possam ser também utilizados como mecanismos de crescimento sócio-econômico e de aperfeiçoamento da democracia.



               Assim, verifica-se que, no bojo de um Estado Democrático, a liberdade é considerada em dois sentidos intrínsecos: “como garantia de participação no exercício do poder e como garantia de segurança nas fruições privadas”
[5]. Essa liberdade individual, entretanto, não pode extrapolar os limites estatuídos pelo interesse público, em detrimento do Estado ou da organização social. No âmbito de tal perspectiva, “as liberdades de ação subjetiva são admitidas condicionalmente”[6], devendo equilibrar-se ou coadunar-se com outros direitos fundamentais que lhe são correlatos. É certo, por exemplo, que
 “no Brasil vigora a regra da liberdade de iniciativa na ordem econômica”[7], que deve ser exercida sob parâmetros constitucionais e legais. Os direitos subjetivos, portanto, como  são a liberdade e a propriedade privada, não têm caráter absoluto, devendo ser exercidos sob a égide de limitações e responsabilidades estatuídas pelo Estado, em prol da supremacia do interesse público. Nessa perspectiva, o autor Tom Bethel salienta que “[um] regime de propriedade privada faz com que as pessoas sejam responsáveis por suas próprias ações no campo dos bens materiais”. [8]  Em outras palavras, o parâmetro da responsabilidade, seja em sua vertente subjetiva ou objetiva, é imprescindível para a concretização de direitos fundamentais, como a propriedade privada e a liberdade individual.



             Frise-se, ademais, que o estabelecimento de limites aos referidos direitos subjetivos envolve um exercício interpretativo de ponderação entre eles, de tal modo que um não seja totalmente suprimido pelo outro. Esse juízo de ponderação entre direitos subjetivos depende das interpretações constitucionais adotadas quanto às especificidades dos casos concretos, devendo-se sempre observar a advertência feita por Konrad Hesse no sentido de que “a demanda constitucional por um labor de otimização provém do princípio da unidade da Constituição”
[9]. Em tal abordagem, a interpretação conferida ao alcance dos direitos fundamentais inseridos na Carta Política tende a propiciar variáveis modos de entendê-los e aplicá-los em conflitos práticos de interesses; pois, como salienta Hans Gadamer, a aplicação das normas constitucionais é “um momento próprio do compreender”[10], feito pelos intérpretes da Constituição, entre eles “os órgãos estatais, as potências públicas, os cidadãos e grupos”[11], em geral.



           Ademais, o papel da jurisdição constitucional no concernente à aplicação dos direitos fundamentais é de extrema relevância para se estabelecerem limites práticos àqueles direitos subjetivos, sobretudo em federações como o Estado brasileiro, no qual se verificam graves e complexas colisões entre interesses de grupos sociais. Dessa forma, o autor Hans Kelsen salientou:“é certamente no Estado federativo que a jurisdição constitucional adquire a mais considerável importância”
[12], tendo em vista a amplitude das demandas que lhe são propostas. Os direitos fundamentais, como a liberdade e a propriedade privada, portanto, têm seus limites compreendidos mediante um processo de hermenêutica constitucional e legal, sob a égide de limitações estabelecidas, preponderantemente, por princípios como o da supremacia do interesse público.



          É, sobretudo, em prol do aludido interesse público e da finalidade de se evitarem abusos de direito que a liberdade individual de fruição dos bens é delimitada ou tolhida, seja por meio de servidões administrativas, seja por meio de restrições urbanísticas impostas pela Lei do parcelamento do solo (Lei nº 6.766/1976) ou pelo Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001), seja pela função sócio-ambiental da propriedade privada, entre outros fatores preponderantes.


[1] CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1991, p. 208.

[2] LOEWENSTEIN, Karl. Teoria de la constitución. Trad. Alfredo Gallego. Barcelona: Ariel, p. 217.

[3] DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 285.

[4]  POSNER, Richard. Usos y Abusos de la Teoria Económica en el Derecho” In: Derecho y Economía - Una Revisión de la literatura, Andrés Roemer (compilador), Instituto Tecnológico Autônomo de México, p. 74.

[5] SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 115.

[6] HABERMAS, Jürgen. Op. Cit, p. 155.

[7] MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 52.

[8] BETHEL, Tom. The Noblest Triumph. New York: St. Martin’s Press, 1998.

[9] HESSE, Konrad. La interpretación constitucional. In: Escritos de Derecho Constitucional. Madri: Centro de Estudios Constitucionales, 1983, pp. 48-49.

[10] GADAMER, Hans Georg. Verdade e Método. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 20.

[11] HÄBERLE, Peter. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997, p. 13.

[12] KELSEN, Hans. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 182.

[1]. Ademais, “para ser real e efetiva, a Constituição deverá estar integrada à sociedade”[2], com o escopo de tornar-se apta à otimização das atividades do Estado, inclusive em sua missão de garantir e concretizar direitos de seus cidadãos.