O terceiro elemento

Na aula inaugural de Linguagem Jurídica, expomos aos alunos sobre a necessidade de o profissional do Direito falar e escrever bem. A palavra e a escrita estão, para esse tipo de profissional, e em particular o advogado, como o cinzel está para o escultor. No tocante ao advogado, são formas pelas quais tenta alcançar um resultado, o qual, evidentemente, deverá ser o melhor para o seu cliente. São, sob outro prisma, os dois elementos com os quais ele se comunica com o juiz, na defesa de seus constituintes.

Na mesma aula, lembramos aos alunos a advertência feita pelos grandes mestres, quanto ao cuidado que o advogado deve ter em relação ao meio de comunicação do qual se utiliza. Para tanto, citamos a lição de Edmundo Dantès Nascimento, para o qual “a linguagem é um meio de transmissão de idéias. Quanto melhor for o meio, melhor será a transmissão. Em direito a transmissão terá de ser perfeita, a fim de alcançar seus altos objetivos”.1 E a linguagem jurídica, principalmente quando colocada sob a forma da redação forense, “exige correção bem maior que a linguagem oral. Com efeito, enquanto esta tolera a repetição de palavras e um glossário mais modesto, sem grandes preocupações com a gramática, aquele pressupõe um vocabulário mais vasto e maior precisão gramatical”.2

Edmundo D. Nascimento assinala que “O Código de Processo Civil de 1939, em seu art. 159, III, exigia que o autor, ao redigir a petição inicial, a fizesse apontando os ‘fatos e fundamentos expostos com precisão e clareza’. O atual determina que o juiz verifique ‘defeitos e irregularidades capazes de dificultar o mérito’, o que implica a linguagem, evidentemente”.3 E a linguagem, manifestada de forma oral ou por escrito, principalmente na área do Direito, requer a presença de quatro qualidades, a saber: clareza, concisão, pureza e precisão. “A correção é um pressuposto. É inadmissível o advogado escrever com erros ortográficos ou sintáticos. A clareza deve ser adquirida por meio do estudo do sentido das palavras (semântica), de sua colocação e da ordem das orações no período. (...) A concisão é a qualidade principal da linguagem forense, uma vez respeitadas as demais. Consiste na busca da forma breve, incisiva para o pensamento. (...) A pureza, não o purismo, resume-se em escrever a língua sem recorrências a palavras ou construções estranhas. A precisão diz respeito intimamente ao vocabulário e à construção da frase. A escolha de palavras deve ser rigorosa. Veja-se por exemplo: ‘honorários’, ‘mensalidade’, ‘ordenado’, ‘cachê’, ‘salário’, ‘soldo’ e outras que precisam ser empregadas com critério”.4

O profissional do Direito, portanto, para dominar os dois elementos acima citados, tem de manter eterna vigilância, não somente quanto à aquisição de uma cultura geral, mas, principalmente o domínio quanto à denominada seleção vocabular e sentido. E, para atingir esse objetivo, deve fazer-se amigo íntimo de um bom dicionário, pois, como leciona com proficiência Víctor Gabriel de Oliveira Rodrigues, “é o bom e velho dicionário que vem a ditar quais são as palavras do vernáculo e quais os significados que elas assumem na língua, servindo-nos, sempre, como base para o trabalho textual”.5

Seguro quanto ao domínio da palavra e da redação, quando na preparação de uma petição inicial, de uma denúncia ou de uma sentença, ou ainda na defesa perante o Tribunal do Júri, temos o advogado, o promotor ou o juiz, como profissionais preparados para o seu mister. Mas, o domínio desses dois elementos garante o êxito do trabalho do profissional do Direito, pelo menos no que diz respeito à aparência externa de seu verbo ou de seu texto? Entendemos que não, pois a eles deve ser agregado um terceiro elemento, que lhes coroa a excelência do saber: a ética.

Ética é definida como a ciência da moral, ou ainda, a ciência dos costumes. E quando nos referimos à ética profissional, estamos diante de uma disciplina normativa. José Renato Nalini, da Academia Paulista de Magistrados, ao abordar esse aspecto, esclarece que “A ética é uma disciplina normativa, não por criar normas, mas por descobri-las e elucidá-las. Mostrando às pessoas os valores e princípios que devem nortear sua existência, a Ética aprimora e desenvolve seu sentido moral e influencia a conduta”.6

Hoje, provavelmente mais do que em outros tempos, fala-se amiúde sobre ética, como também se fala em justiça, liberdade, igualdade, solidariedade. Nalini observa que “A utilização em excesso de certas expressões compromete o seu sentido, como se o emprego freqüente implicasse em debilidade semântica. (...) A invocação exagerada de tais palavras, em contextos os mais diversos, conseguiu trivializar seu conteúdo. Situam-se em todos os discursos, ensaios e manifestações. Não há mais fronteiras ideológicas entre elas: todos se valem do prestígio de seu conteúdo. Ante seu pronunciamento, os ouvidos se amparam em certa insensibilidade, pois acredita-se não mais haver necessidade dessa reiteração. Além de cansativa, seria desnecessária. Os conceitos já teriam sido adequadamente assimilados. (...) Entretanto, nunca foi tão necessário, como hoje se mostra, reabilitar a ÉTICA. A crise da humanidade é uma crise moral. Os descaminhos da criatura humana, refletidos na violência, na exclusão, no egoísmo e na indiferença pela sorte do semelhante, assentam-se na perda de valores morais. O paradoxo reside na proclamação dos direitos humanos e na intensificação de atos de desrespeito a todos eles. De nada vale reconhecer a dignidade da pessoa, se a conduta pessoal não pautar por ela”.7

As anotações e advertências deste grande magistrado, se deveriam estar presentes no dia-a-dia de todo cidadão, mas nem sempre o estão, obrigatoriamente deverão estar no labor diário daqueles que escolheram a ciência do Direito como, mais do que um meio de auferir ganhos financeiros, um meio pelo qual se possa mitigar a violência, a exclusão, o egoísmo e a indiferença pela sorte do semelhante.

Mais uma vez afirma Nalini que, “A violência, a exclusão, o desalento, o féretro dos valores, tudo isso pode ser amenizado se houver uma reflexão ética, seguida do propósito de viver mais eticamente. Essa nova concepção do tema ético é um alento a quem se dedica a trabalhar para que o mundo novo encontre uma humanidade renovada. Só assim, ao pesadelo hobbesiano – o homem é lobo do homem - poderá sobrevir a perspectiva do sonho de uma solidariedade planetária”.8

O profissional do Direito, pois, haverá de se ater sempre ao compromisso íntimo de burilar, ao mesmo tempo, a palavra, a escrita e a moral. Se, de acordo com a inspiração de Lord Byron, “As palavras são idéias, e uma gota de tinta, como orvalho que tomba sobre a mente, faz pensar milhares e até milhões de pessoas”, mais do que (belas) palavras, há de transparecer o profissional ético, o profissional justo, para que, desta forma, como verdadeiro estandarte do Direito, possa continuar ecoando o magnífico pensamento de Horácio, o inesquecível poeta lírico latino: “Quando um homem é justo e resoluto, o mundo inteiro pode desabar sobre ele e o encontrará de pé nas ruínas, sem desânimo”.

(Texto publicado no “Cruzeiro do Sul”, de Sorocaba, edição de 30.04.2004, p. A-2)