LICENÇA PARA MATAR

Segurança pública é coisa séria e propostas populistas só aumentarão a insegurança.

Artigo certeiro do admirado Leonardo Isaac Yarochewsky

*******************************************

Dentre as propostas do candidato Jair Bolsonaro para segurança pública está previsto: 1) a redução da maioridade penal para 16 anos; 2) a liberação do porte de arma para toda a população e 3) a ampliação das já previstas “excludentes de ilicitude” (art. 23 do Código Penal)[1] para que policiais não sejam processados pela morte de suspeitos durante o trabalho.

Em breves pinceladas - o assunto é merecedor de análise mais elaborada - necessário deixar assentado desde logo que as propostas do candidato Bolsonaro para segurança púbica em nada, absolutamente nada, contribui para prevenção da violência e da criminalidade. Ao contrário, as propostas alimentam a insegurança e a violência, notadamente em relação aos mais vulneráveis da sociedade.

1- Redução da maioridade penal para 16 anos:

O Brasil tem hoje cerca de 750 mil presos – terceira maior população carcerária do planeta – a grande e esmagadora maioria encarcerado em condições desumanas e cruéis. A redução da imputabilidade penal (capacidade penal), chamada de “maioridade penal” para 16 anos como se propõe aumentará ainda mais o déficit carcerário que se aproxima de 400 mil vagas.

É necessário esclarecer que a idade de 18 (dezoito) anos para imputabilidade penal, adotada em mais de 80% dos países do planeta, não foi estabelecida de forma aleatória. Estudos científicos demonstram que até os 18 anos a personalidade do ser humano, bem como a sua capacidade psíquica, ainda, não está completamente formada.

A “Exposição de Motivos” do atual Código Penal (Lei nº. 7.209/84) justifica a manutenção da inimputabilidade penal ao menor de 18 (dezoito) anos, assentando que:

“Trata-se de opção apoiada em critérios de Política Criminal. Os que preconizam a redução do limite, sob a justificativa da criminalidade crescente, que a cada dia recruta maior número de menores, não consideram a circunstância de que o menor, ser ainda incompleto, é naturalmente antissocial na medida em que não é socializado ou instruído. O reajustamento do processo de formação do caráter deve ser cometido à educação, não a pena criminal. De resto, com a legislação de menores recentemente editada, dispõe o Estado dos instrumentos necessários ao afastamento do jovem delinquente, menor de 18 (dezoito) anos, do convívio social, sem sua necessária submissão ao tratamento do delinquente adulto, expondo-o a contaminação carcerária”.

Ao contrário do que muitos propagam, o menor infrator não fica impune. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) prevê a internação do menor pelo período de até três anos, o que no Brasil ocorre em situações extremamente precárias. Ressalta-se, ainda, que a Convenção dos Direitos da Criança das Nações Unidas estabelece que os menores de 18 anos devem ter tratamento diferenciado na lei. Salienta-se que o fato de o adolescente não responder por seus atos infracionais perante a justiça penal não o faz irresponsável, “o clamor social em relação ao jovem infrator – menor de 18 anos – surge da equivocada sensação de que nada lhe acontece quando autor de infração penal”.[2]

Não resta dúvida que a redução da “maioridade penal”, além de ofender direitos fundamentais previstos na Constituição da República, agravará sobremaneira a já desgraçada situação carcerária brasileira, encarcerando jovens, negros e pobres.

2- Liberação do porte de arma para toda a população:

É certo que a falta de segurança constitui um dos problemas que mais aflige a sociedade atual. A todo instante a atenção das pessoas é voltada para crimes que, quando não as atinge diretamente, as atinge por vias oblíquas. Vive-se o que se pode chamar, arremedando Hannah Arendt, “a banalização da violência”. Vários fatores contribuem para seu crescimento em todos os níveis, e, se por um lado, não se pode atribuir este crescimento exclusivamente à miséria em que vive grande parte de nosso povo, por outro lado, não se pode fechar os olhos para as desigualdades sociais e condições subumanas em que vive boa parte dessa população excluída e marginalizada da sociedade.

Nesse diapasão, a pretendida liberação do porte de armas para população só vai aumentar, ainda mais, a violência.

Estatísticas demonstram que a maioria das vítimas de diversos crimes, quando armadas, ao tentarem reagir, acabaram sendo mortas. Inúmeras pessoas, principalmente crianças, são mortas acidentalmente porque tiveram acesso a uma arma de fogo encontradas no próprio lar. Várias discussões no tumultuado trânsito das grandes cidades resultam em agressões e até a morte, por estarem os motoristas armados. Enfim, as situações onde aqueles que pensam estar protegidos por estarem portando uma arma de fogo e que acabam vítimas da própria arma são diversas, crer que estar armado é sinônimo de estar seguro é uma pura e doce ilusão.

No Brasil cerca de 63.000 pessoas são vítimas de assassinatos por ano. Proposta de arma a população – ainda que os chamados “homens de bem” - são vistas com temor por especialistas. Para o diretor do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o sociólogo Renato Sérgio de Lima "se esse faroeste, esse bangue-bangue, for instituído, o número de mortes pode mais do que dobrar", prossegue: "Um cidadão armado encontrará uma razão legítima para se defender e matar o outro. Seja ele seu desafeto ou um suposto ladrão".[3]

Na avaliação do sociólogo Lima, algumas das propostas de Bolsonaro seriam inconstitucionais. "Nossa Constituição prevê o direito à vida. É uma cláusula pétrea. Se isso tudo for proposto por ele em caso de eleito, o Supremo terá de se manifestar. As propostas são claramente inconstitucionais". Sobre a redução da maioridade penal, tanto Lima quanto Boudens estão de acordo de que a medida é ineficiente. "Se reduzir para 16, amanhã terá de diminuir para 14, depois para 12 e por aí vai. A discussão tem de ser sobre políticas públicas para evitar que os jovens entrem no crime", opinou Boudens.[4]

3- Ampliação das “excludentes de ilicitude” para que policiais não sejam processados pela morte de “suspeitos” durante o trabalho:

A terceira proposta, aqui analisada - licença para que policiais matem sem que sejam punidos - é algo que Bolsonaro vem pregando desde o início de sua pré-campanha. O capitão declarou: "Nós vamos brigar pela excludente de ilicitude. O policial militar em ação responde, mas não tem punição. Se alguém disser que quero dar carta branca para policial militar matar, eu respondo: quero sim. O policial que não atira em ninguém e atiram nele não é policial”.[5]

É preciso dizer com todas as letras que a abominável proposta de Jair Bolsonaro é oferecer aos policiais “carta branca”, “salvo-conduto” ou “licença para matar”. A polícia brasileira é uma das que mais mata no mundo. A polícia executa, sumariamente e sem direito a julgamento, pessoas, quase sempre jovens, pobres, negras e faveladas. Pessoas invisíveis e que somente são vistas depois de mortas quando se transformaram em cadáveres ou rostos estampados nos jornais. Não resta dúvida de que a sociedade também puxa o gatilho que mata essas pessoas. Somos participes dessas mortes. Não são raras as vezes que boa parte da sociedade ignora ou, até mesmo, aprova atitudes da polícia que procura através dos forjados “autos de resistência”[6] ou da desqualificação completa das vítimas - “bandidos” – justificar suas ações. Outra forma bastante comum de tentar justificar suas ações é a alegação - que não resistiria a uma investigação séria – de que as mortes ocorreram em confrontos com criminosos armados e em tiroteios.

Em pesquisa realizada no ano de 2011 a Anistia Internacional constatou que nos vinte países que ainda mantêm a pena de morte, em todo o mundo, foram executadas 676 pessoas, sem contar as execuções ocorridas na China, que não fornece dados. No mesmo período, informa Orlando Zaccone[7], somente os estados do Rio de Janeiro e São Paulo produziram 961 mortes a partir de ações policiais, totalizando um número 42,16% maior do que de vítimas da pena de morte em todos os países pesquisados. Em 2014, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, foram 3.022 casos, média de um homicídio a cada três horas. Número de vítimas que supera dos atentados de 11 de setembro nos EUA, em que 2.977 pessoas morreram. O número de mortes provocadas pela polícia em 2014 é 37,2% maior que o registrado em 2013. Em 2017, o Brasil teve 5.012 mortes cometidas por policiais na ativa, um aumento de 19% em relação a 2014.

Segundo Samira Bueno e Renato Sérgio de Lima, diretores do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o número de mortos em decorrência de intervenções policiais mostra que o Brasil está flertando com a barbárie. "Geralmente justificadas como sinônimo da eficiência policial, que chega mais rápido ao local da ocorrência, ou como resposta ao aumento da criminalidade, o fato é que o aumento demonstra o completo descontrole do Estado brasileiro."[8]

A situação atual já é de “barbárie” e caso a proposta vil do capitão Bolsonaro prevaleça haverá um genocídio legalizado.

4- Conclusão:

Por tudo, principalmente em nome do respeito a dignidade da pessoa humana – postulado do Estado Democrático de Direito – é que as abjetas, vis e abomináveis proposta apresentadas no programa do candidato Jair Bolsonaro devem ser rejeitadas. Não se pode construir um país fraterno, justo e igual incentivando o ódio e incrementando a violência. Necessário apostar no projeto que privilegia a educação, a justiça social e os direitos e garantias fundamentais insculpidos na Constituição Cidadã.

Leonardo Isaac Yarochewsky é Advogado Criminalista e Doutor em Ciências Penais pela UFMG.

Notas e Referências

[1] Art. 23. Não há crime quando o agente pratica o fato: I- em estado de necessidade; II- em legítima defesa; III- em estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular de direito.

[2] João Batista Costa Saraiva, in: A idade e as razões – não ao rebaixamento da imputabilidade penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, ano 5, n. 18, abr-jun/1997.

[3] Disponível em:< https://brasil.elpais.com/brasil/2018/06/13/politica/1528925858_981167.html Acesso em 17/10/2018

[4] Disponível em:< https://brasil.elpais.com/brasil/2018/06/13/politica/1528925858_981167.html Acesso em 17/10/2018

[5] Disponível em:< https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2017/12/14/bolsonaro-diz-que-quer-dar-carta-branca-para-pm-matar-em-servico.htm Acesso em 17/10/2018

[6] De acordo com Orlando Zaccone “o auto de resistência é um inquérito policial instaurado para verificar a legitimidade ou não de uma ação policial que resultou em morte. Então o inquérito é instaurado e vai ao titular do direito de ação, que é o Ministério Público, que, na sua grande maioria arquivam os casos, com uma manifestação do promotor defendendo que o policial agiu em legítima defesa”.

[7] ZACCONE, Orlando. Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2015.

[8] Disponível em:< https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/cresce-numero-de-pessoas-mortas-pela-policia-no-brasil-assassinatos-de-policiais-caem.ghtml Acesso em 19/10/2018

Leonardo Isaac Yarochewsky
Enviado por Serpente Angel em 21/10/2018
Reeditado em 21/10/2018
Código do texto: T6481923
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2018. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.