AFINAL, O QUE É DIREITO?

Conta-se que certo professor de direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), hoje ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal, ministrava aula propedêutica sobre direito. Subitamente, interrompe a empolgante peroração, e dirige-se a um aluno. Pede-lhe o oferecimento de uma definição para o que é direito.

O aluno, em visível desconforto, atrapalha-se, pensa e defende-se com esta pérola de folhetim: “O direito é a auréola dourada sobre a qual se assenta a sociedade”. De imediato, o professor retruca enraivecido: “O senhor acaba de definir o penico, agora, por favor, defina o que é Direito!” 2

Ora, sabe-se, e o mestre ainda mais conhece que a palavra direito se apresenta como paradigma de ambigüidades. Dentre as muitas questões, na esfera dos estudos jurídicos, que hajam provocado amplo e infecundo debate está o de oferecer definição ou conceito à simples pergunta: quid ius? - que coisa é o direito? Diversos significados podem ser colados como resposta à pergunta, pois o termo se aplica a várias realidades distintas, exigindo, por isso, não só uma única definição, mas tantas quantas forem necessárias para descrever as realidades a que se adéqua.

No Curso de Direito, aprende-se desde os semestres iniciais a jamais usar a modéstia do não sei. As frases, em diálogos epiléticos ou não, devem saltar da ponta da língua. Se versado fosse em jus sperniandi3, o aluno da cena, dando ouvido de mercador à recomendação de Nicolau de Cusa em Douta Ignorância de que o reconhecimento de que não se sabe é a mais fundamental forma de sabedoria, decerto acuaria o velho professor com argumentos e perguntas.

Praticando a nobre arte de espernear, o desditoso rapaz deveria, a respeito da questão, dizer: “Mestre, direito é palavra polissêmica e vem sendo utilizada de formas variadas. Exaurir seu campo semântico é tarefa impossível de ser realizada em sala de aula. Mesmo assim, pode especificar o direito para o qual o senhor pede definição?”

“Trata-se do direito natural? Se for, especifique se a resposta deve alcançar o direito natural de origem divina ou o direito natural escolástico? Deseja que discurse acerca do direito canônico, do direito alternativo, do direito achado nas ruas etc.?”

“Será que a pergunta guarda pertinência com o direito positivo? Devo falar sobre o direito público e direito privado? Se for, sobre qual dos ramos devo me pronunciar? Sobre o direito penal, constitucional, administrativo, tributário, processual? Sobre o direito civil, o comercial (este originado do direito civil) e do trabalho?”

Enveredando por outras disciplinas apartadas da ciência jurídica, o perguntado poderia indagar novamente: “O senhor se refere ao conjunto de cursos e disciplinas que constituem a formação dos bacharéis em direito? Ou deseja ouvir sobre a palavra dicionarizada que no Aurélio recebe diversas conotações? Quer que defina o substantivo masculino que significa aquilo que é justo e certo conforme a lei? No caso de advérbio, quer a significação de diretamente, direto? Se a palavra direito cuidar de um adjetivo, devo responder sobre o sentido de o que não é curvo, aprumado, ereto?”

Deixando-se de fora a gramática e o gracejo, percebe-se às claras que o tom professoral exigia definição de Direito na acepção acadêmica e conceitual, comum no meio jurídico. Mas é de se ver que, mesmo situada no meio de único ambiente, dar a definição requerida torna-se tarefa das mais penosas, por encerrar gama variada de elementos e sentidos, dependendo da corrente a que esteja vinculado o doutrinador que conceitua.

Neste artigo, buscar-se-á oferecer algumas expressões que levem ao entendimento do que é direito, utilizando-se de definições suscitadas por Kant, Kelsen e Miguel Reale. Fique claro: não se busca atingir o eidos de direito. O seu conceito não é o objeto pretendido na pesquisa. Em tópico próprio se fará a distinção entre definição e conceito. Quem desejar aprofundar-se no tema deve reportar-se às obras de Maria Helena Diniz e Godofredo Telles Jr, relacionadas nas referências bibliográficas.

Com relação aos nomes, cabe informar que a preferência teve por base o reconhecimento dos autores como responsáveis pela construção da teoria do direito positivo e suas obras estarem mais presentes nas bibliografias dos cursos de direito.

A presença de Miguel Reale se justifica por ser o mestre paulista crítico do normativismo kelseniano, e assim ter aberto espaço para uma abordagem dialética, histórica e sociológica da norma jurídica, conhecida como tridimensionalidade do direito. Ressalve-se que muitos outros doutrinadores vinculados a diversas correntes de pensamento jurídico se debruçaram, também, sobre a tarefa difícil de definir o que o direito é, os quais, em face da delimitação do tema, não foram citados na presente monografia.

Antes de iniciar a investigação, cabe breve incursão sobre a história da origem do vocábulo direito, reforçando o que faltou ao insinuado na parte introdutória. Em o fazendo, aponta-se, de certo modo, para a faceta gramatical da definição perquirida.

A palavra direito, para o mestre argentino Abelardo Levaggi, no uso atual, que foi introduzida no vocabulário jurídico pelo direito canônico, não era sequer conhecido pelos gregos e romanos. O direito dos romanos formou-se a partir dos mores que tinha como significação a conduta dos antepassados divinizados pela correção da conduta. A acepção atual deriva da lei mosaica, onde o homem probo e integro se conduzia pelo reto caminho (directum). A palavra com a novel conotação, antes de ser incorporada à linguagem erudita, serviu durante muito tempo para designar direito consuetudinário. 4 O termo evoluiu em português da forma directo a dereyto, até chegar à grafia atual.5

Prossegue-se na investigação dizendo que, à semelhança de tudo o que existe no plano da racionalidade, o direito tem formação a partir de um ponto histórico, embora a régua do tempo tal não registre. Não há precisão com relação ao seu nascimento, mas é cediço que as normas jurídicas provêm da tradição oral, precedendo todas as cogitações filosóficas a respeito do direito.

No principio, a arte do bom e do justo era vista sob o prisma da inspiração divina, ou tinha como fonte a natureza, tendo por objetivo a busca da justiça, através de regras cogentes que divergiam das regras éticas, morais e religiosas, tais como hoje as conhecemos. Os homens em grupo respeitavam códigos de conduta refreadores de práticas atentatórias, principalmente à vida, à segurança do grupo e aos raptos das mulheres. Os bens da vida de então.

As primeiras cogitações filosóficas que tratavam do direito surgiram apenas entre os séculos VI e V a.C., nas cidades grego-romanas, com Aristóteles, Sócrates e Platão. Inspiração para tal pode ter sido a legislação pré-existente, como as leis mosaicas 6, do século XIII a.C. e os códigos de Hammurabi7 e de Manu 8 que datam respectivamente dos séculos XVII e. XIII a.C.

A noção de direito foi se consolidando através dos séculos, mas nas sociedades da Antiguidade, tanto oriental, quanto ocidental, limitava-se a proteger a vida, a integridade física, a honra, a família e a propriedade privada, embora a proteção alcançasse a poucos integrantes do poder e seus protegidos.

O pensamento religioso declinado no antigo testamento e posteriormente no cristianismo contribuiu para a evolução dos fundamentos do direito e, estabeleceu nova visão de mundo ao aliar os fundamentos das coisas sagradas com a prática consuetudinária.

O ápice desse estágio do direito ocorreu no período feudal, constituindo o que o historiador alemão Walter Theimer denominou pitorescamente de uma anarquia organizada. 9 O poder real da época se repartia entre nobres e seus vassalos, escalonados em barões, condes, marqueses e duques, cada um em seu próprio feudo ou território, sendo cada qual, a um tempo só, comandante militar, juiz e chefe de polícia, julgando e condenando segundo a sua vontade. Nesta fase, a concepção teocêntrica provocou mudanças significativas no direito, fazendo surgir o indivíduo com a afirmação de suas liberdades e das práticas do exercício de seus atos em função da lei.

Na idade moderna o estado concentrou todos os poderes da sociedade, passando a criar o direito com exclusividade, por meio da lei ou então pelo reconhecimento e controle das demais fontes do direito. A essa fase Bobbio chamou de processo de monopolização da produção jurídica por parte do Estado. 10

Já na Idade Contemporânea, o direito consolidado nos ditames de liberdade, igualdade e fraternidade, emergentes da Revolução Francesa, deu sustentação ao Estado Liberal, proclamando princípios como o da isonomia, da liberdade, da propriedade, reserva legal e outros que alcançaram os dias atuais.

No pequeno século XX, no dizer de Eric Hobsbawm, 11 por força dessa longa evolução histórica, o direito centrou-se na lei. Dá-se início à doutrina do positivismo jurídico que identifica o direito com a lei, em oposição à doutrina do direito natural, inspirada na revelação divina ou nos ditames da reta razão.

Definidos a origem da palavra e o desenvolvimento do termo no âmbito da história, passa-se a comentar alguns equívocos inerentes à definição de direito. Esclareça-se: para bem se definir um objeto é preciso se eliminar as interferências que possam causar confusão ao entendimento.

Pois bem. Ainda hoje algumas pessoas por crença religiosa podem ser levadas a pensar que os dogmas católicos impõem vinculação ao direito. A união entre a Igreja e o Estado é tese escrita na bula Unam Sanctam de Bonifácio XIII, mas o que está dito lá, que estado deve se subordinar à Igreja, foi revogada em muitos países, há longo tempo. 12

No Brasil, a separação entre a Igreja e o Estado foi efetivada em 7 de janeiro de 1890, pelo Decreto nº 119-A, e constitucionalmente consagrada desde a Constituição de 1891. Até os fins do século XIX, o catolicismo foi a religião oficial do Estado e as demais religiões proibidas, em decorrência da norma do art. 5º da Constituição de 1824. O catolicismo era subvencionado pelo Estado e gozava de enormes privilégios.

A atual Constituição brasileira de 1988 proíbe, em seu art. 19, à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, de "estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento, ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público". 13 Assim, a primeira coisa que o direito não é: uma série de proibições ligadas a contextos dos credos e das religiões.

A segunda coisa que o direito não é: um composto de regras a serem cumpridas naturalmente, espontaneamente com ou sem imposição do meio social. Isto é moral, não direito. E a ideia de que tudo que é direito é moral nem sempre prevalece, pois o direito pode tutelar o que for amoral.14 Como exemplo, cite-se que alterações na legislação de trânsito, não afetam a moralidade. E pode o direito tutelar ainda é imoral. A divisão do lucro em valores idênticos em uma sociedade em que um dos sócios seja mais diligente do que o outro, exemplifica a situação.

Por maior que seja o desejo para que o direito tutele só aquilo que é moral, sempre no direito restarão resíduos alheios à moralidade. Desta forma direito, moral e ética são parâmetros distintos a determinarem condutas socialmente corretas, porém, com características e formas de imposição diferentes.

É imperioso também não confundir direito com lei, palavra que às vezes é erroneamente utilizada para designá-lo. Nesta concepção lei é usada referindo-se apenas a uma das fontes de direito, ou seja, os atos de regulação emitidos por entidades como Legislativo e Executivo. Por este prisma, lei é apenas a positivação do direito, ou seja, sua disposição em compêndios, muitas vezes conhecidos como Códigos, sendo que, o maior deles em magnitude, é a Constituição Federal. Para Roberto Lyra Filho “o autêntico Direito não pode ser isolado em campos de concentração legislativa, pois indica os princípios e normas libertadores, considerando a lei um simples acidente no processo jurídico, e que pode, ou não, transportar as melhores conquistas”.’15 A terceira coisa, então, que o direito não é: lei.

É relevante, ainda, alertar que, na busca de uma definição, deve-se ter presente que direito muito menos significa norma jurídica. Nas palavras de Norberto Bobbio, "...pode-se falar em direito somente onde haja um complexo de normas formando um ordenamento, e, portanto, o direito não é norma, mas um conjunto coordenado de normas, sendo evidente que uma norma jurídica não se encontra jamais só, mas está ligada a outras normas com as quais forma um sistema normativo". 16 Tais palavras reforçam a afirmação de que direito e norma jurídica se dispartem.

Há flagrante equivoco quando se toma direito por justiça. A imbricação entre os dois conceitos aparece sob os mais variados contextos e, pelo menos, desde a Antiguidade greco-latina. Em A luta pelo direito, Ihering, analisa o direito como sendo estado de sanidade do sentimento de justiça,17o que poderia levar à simplificação de confundir direito com justiça. A ideia não foi de restrição, talvez até ampliação, pois quis o autor aludir ao direito como justo. Ademais, a mesma obra contempla diversos outros pontos conceituais envolvendo a ideia de direito.

Para os fins deste estudo, justiça é, apenas, um dos elementos internos do direito, como os são a ordem, a segurança e certeza jurídica. Alguns doutrinadores vêm a justiça como a finalidade ou uma das finalidades do direito e para os normativistas não existe necessariamente uma relação entre direito e justiça. De qualquer modo, fique claro: embora haja aproximação e ou contraposição direito e justiça são coisas distintas. Esta é a quarta afirmação.

A quinta formulação sobre o que o direito não é se refere a um princípio universal, ou seja, o direito, ao menos o direito positivo, não tem uma fonte única que serve de fundamento para todos os povos e que é imutável em todas as épocas e lugares. Direito é fenômeno cultural com tantas características quanto são as nuances culturais de uma determinada sociedade.

É verdade que a ideia da existência de um direito de caráter universal, revelado ao homem pela razão, imbuído de um sentimento natural do justo e do injusto, eticamente superior ao direito positivo, vem desde Sócrates e de Aristóteles, compondo a base do que se conhece por direito natural.

Cada Estado vale-se de um direito próprio ao seu país. Fala-se de direito brasileiro, direito português, direito chinês e outros. O leque dos direitos nacionais, no Ocidente, se agrupa em dois principais sistemas jurídicos: common law 18 no qual o costume prevalece sobre o direito escrito e os casos de direito (case law) são as principais fontes do direito e o sistema jurídico de civil law, adotado no Brasil. Neste sistema a legislação representa a principal fonte do direito e os tribunais fundamentam as sentenças nas disposições de códigos e leis, a partir dos quais se originam as soluções de cada caso.

A última afirmação do que o direito não é, diz respeito à lógica. Direito não é lógica, embora o equilíbrio interativo entre lógica e direito esteja fortemente presente em Kelsen. As idéias kelsesianas, por serem bastante precisas sobre a estrutura proposicional dos enunciados jurídicos, aproximaram o direito da lógica. O próprio Kelsen, porém, mais tarde afirmou que a norma, possuindo referências de conteúdo ligadas às condutas humanas, o que implica em juízos de ordem onto-axiológica, não somente lógica. 19

Perelman foi outro estudioso que se debruçou sobre o tema, ao tratar da existência ou inexistência de uma lógica jurídica. Como Kelsen, todavia, afirmou posteriormente que “(...) O curioso (...) é que os autores, cujas obras se intitulam lógica jurídica, negam expressamente a especificidade de semelhante disciplina, enquanto Levi e Engisch não hesitam em frisar a especificidade do raciocínio jurídico e a existência de uma lógica particular, a lógica jurídica”.20

Sobre o assunto, o jurista e filosofo Oliver Wendell Holmes Jr, fundamentando as concepções seminais para o realismo jurídico americano, propugna que o direito não se guia pela lógica, mas pela experiência. Obviamente, que sendo este autor norte-americano ele examina o direito à luz do sistema jurídico de seu povo (common law). Porém, sua posição sobre o que é o direito aplica-se, aos povos de quaisquer outros sistemas jurídicos. In verbis:

“A vida do direito não tem sido lógica: tem sido experiência. As necessidades sentidas em todas as épocas, as teorias morais e políticas que prevalecem, as intuições das políticas públicas, claras ou inconscientes, e até mesmo os preconceitos com os quais os juízes julgam, têm importância muito maior do que silogismos na determinação das regras pelas quais os homens devem ser governados. O direito incorpora a história do desenvolvimento de uma nação através dos séculos e não pode ser tratado como se compreendesse tão somente axiomas e corolários de livros de matemática. De modo a se saber o que é o direito, deve se saber o que ele tem sido e qual a tendência que há de se transformar. Deve se consultar alternativamente a história e as teorias jurídicas existentes” 21

Antes das tentativas de definir o que seja direito faz-se oportuno lembrar a distinção havida entre conceito e definição. Entenda-se por conceito a essência de algo ou de uma coisa. Isto é o que ensina Immanuel Kant, para quem “no conceito puro do entendimento a realidade é aquilo que corresponde a uma sensação em geral; é, portanto, aquilo cujo conceito indica em si mesmo um ser (no tempo).22O professor Godofredo Telles Jr, sobre definição diz que

“Definir é revelar o que é o definido é. E quando revelamos o que o definido é, revelamos os elementos necessários. Emprega-se aqui o adjetivo ‘necessário’ no seu sentido rigoroso. Numa definição só se podem mencionar elementos necessário do definido, elementos indefectíveis que não podem faltar. Elementos contingentes, que ora existem, ora não existem, não têm condições para definir. Só os necessários são capazes de revelar a essência daquilo que estamos definindo. 23

No mesmo sentido, explicando o conceito de norma jurídica, Maria Helena Diniz ensina que se chega à essência conceitual através da intuição intelectual pura, depurada de elementos empíricos. Adiante observa a autora que apreendida essa essência é possível a formulação de um conceito universal, que não é o mote do trabalho. Seu fio é a busca de definições, em que pese encerrem diferentes conceitos de direito.24

Clarificando o entendimento, mediante um exemplo simples, se se imaginar o direito como um objeto, a forma externa é sua definição e o que contiver em seu bojo o conceito. Ou seja, aquele aluno encandeado pela pergunta inopinada com o vazio em sua mente, não pode imaginar a estrutura do que na palavra direito se escondia.

Esclarecida esta diferença, outra questão a ser levantada é alertar que as dificuldades encontradas para definir direito advêm da diversidade existente na própria Teoria Geral do Direito. Se forem cruzadas as múltiplas concepções teóricas existentes com as várias escolas do pensamento jurídico, ter-se-á uma gama incomensurável de conceitos e definições, que preenchem diversos tratados e manuais jurídicos.

Definir não é conceito, já se sabe. E para o dicionarista Aurélio Buarque dar definição é enunciar os atributos essenciais e específicos de (uma coisa) de modo que a torne inconfundível com outra25. Nessa linha, à medida que se introduz uma definição se reportará à estrutura da frase para verificar os elementares da definição, e tentar assim descobrir no conteúdo das palavras a verdadeira figura ideada pelos pensadores. Algumas particularidades importantes serão relevadas. Inicie-se com a definição de Kant.

O leitor familiarizado com a obra de Kant percebe, facilmente, que tratados sobre política e direito, especificamente, não fizeram parte das preocupações do considerado maior filósofo da época moderna. Mas se extraem reflexões múltiplas das questões submetidas ao crivo da análise kantiana, iniciada em 1781, com a primeira edição de Crítica da razão pura 26 e finda em 1797, com a Metafísica dos costumes 27.

Grosso modo pode-se dividir seu pensamento entre o conhecimento, suas possibilidades e limites e a ação humana, pois visível é sua preocupação com a moral, os costumes, o direito, o saber e a historia entre vários outros temas. O viés do conhecimento pode ser apreciado na Crítica da razão pura, que diretamente não interessa ao tema em análise. Serão, porém, revistas com brevidade algumas considerações de Metafísica dos costumes para delas se depreender o que é direito.

Pois bem. Em seu universo Kant julgou a moralidade como fenômeno a expressar um dever puro, do qual derivaram os preceitos de imperativo categórico e hipotético. Para ele, a ação praticada pelo individuo sendo boa em si mesma atende ao preceito categórico. Se, contudo, serve como meio para a consecução de determinado fim revela um preceito hipotético. Percebe-se, então, que cumpre uma ação moral quem não a faz comprometido com determinado fim, mas tão-somente por impulso interior. Tratando das leis da liberdade, que são aquelas que regulam a conduta humana e das leis da necessidade, reguladoras dos eventos naturais, Kant efetua a separação do âmbito moral do âmbito do direito.

Nas palavras de Kant, citado por Bobbio:

“A legislação que erige uma ação como dever, e o dever ao mesmo tempo como impulso, é moral. Aquela, pelo contrário, que não compreende esta última condição na lei, e que, conseqüentemente, admite também um impulso diferente da idéia do próprio dever, é jurídica”. (...) “O puro acordo ou desacordo de uma ação com relação à lei, sem respeito algum ao impulso da mesma, chama-se legalidade (conformidade com a lei) quando, ao invés, a idéia do dever derivada da lei é ao mesmo tempo impulso para a ação, temos a moralidade”. 28

É com base nessas ponderações aqui brevemente comentadas que Kant concebe o direito como algo presente nas relações externas entre os homens, encaminhando a meditação filosófica num sentido novo e original. Neste contexto, assevera que direito é:

"O conjunto de condições sob as quais o arbítrio de cada um pode conciliar-se com o arbítrio dos demais segundo uma lei universal da liberdade".29

Da definição acima, extrai-se ademais o princípio universal do direito. Veja-se: "Uma ação é conforme ao direito quando permite, ou cuja máxima permite, à liberdade do arbítrio de cada um coexistir com a liberdade de todos segundo uma lei universal". 30

Percebe-se da estrutura fraseológica um grupo de palavras-chaves constituído por conjunto de condições, arbítrio e liberdade. O conjunto de condições significa para o autor que a pessoa deve ser honesta, não causar lesões ou dano a outrem e compartilhe de um estado que assegure a cada um a sua parte. O arbítrio refere-se ao querer consciente de que uma ação pode gerar uma conseqüência, sendo a liberdade a posse de um arbítrio próprio independente do de outrem. Ou seja, é o exercício externo desse arbítrio.

Em resumo, o conceito de direito formulado por Kant funda-se na norma legislada, ou seja, a norma prescrita para regular o modo de agir das pessoas, com vigência e eficácia em lugar e tempo predeterminado. No caso brasileiro, a origem da norma pode ser tanto o Congresso Nacional, quanto as câmaras estaduais e municipais. O conjunto de leis desta categoria pertence ao direito positivo. Nesta concepção o direito tem caráter abstrato, dirige-se a todos os membros da sociedade e traz implícito o sentido de dever.

Por fim é de se ver que da definição kantiana de direito, deriva sua lei universal, assim formulada por Kant: “Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal”, 31 remetendo a uma concepção jurídica tipicamente liberal, apoiada na liberdade individual, desvinculada de fins ou de valores.

Hans Kelsen em várias de suas obras teceu críticas ao filósofo Immanuel Kant, principalmente com relação ao preceito da lei universal e da idéia de Kant do valor moral absoluto. Para Kelsen fosse tal verdadeiro qualquer agir mau poderia se tornar lei universal.

Por tal motivo, alguns estudiosos não vêem em Kelsen um jurista neokantiano, mas no início do século XX, por influência do neokantismo e dos pensadores do Círculo de Viena, Kelsen se propôs a elaborar uma nova teoria para o direito, apoiado nas reflexões de Grotius e Kant. Para Kelsen, direito deveria ser visto na unicidade de um sistema normativo, constituído por normas válidas e coercitivas, funcionando como um esquema de interpretação a conferir sentido jurídico aos atos humanos 32.

De sua obra Teoria pura do direito saiu o direito purificado, afastado do que fosse justo e injusto. A discussão sobre a justiça cabia à ética, ciência despreocupada com as normas jurídicas, mas comprometida com o certo e o errado, com o justo e o injusto. Em direito não interessa se uma norma é verdadeira ou falsa, boa ou má, mas tão-somente se ela é válida ou inválida, mediante o cotejo com a norma fundamental. O único juízo de valor admitido por Kelsen é a compatibilidade das condutas humanas às normas, e destas com as normas superiores.

A partir do entendimento de que direito é uma pluralidade de normas relacionadas entre si, conceitualmente, Hans Kelsen, assim se expressou:

“o direito se constitui primordialmente como um sistema de normas coativas permeado por uma lógica interna de validade que legitima, a partir de uma norma fundamental, todas as outras normas que lhe integram” 33

As elementares normas coativas, lógica interna de validade e norma fundamental da definição de Kelsen quer dizer que o direito se compõe de normas de ordem coativa, que tem validade se fundada numa norma fundamental. Em miúdos, a lei, componente do direito, para ter eficácia e vigência válidas, deve esposar-se na previsão do legislador originário que a estabeleceu na Constituição.

Essa definição que considerava o direito apenas uma técnica específica a ser aplicada como um silogismo sobre a organização social causou arrepios e protestos em muitos estudiosos. Miguel Reale discordou desse pressuposto, observando que o jurista diante do sistema de normas, deve pressentir a existência de algo subjacente a ele: fatos e valores. Não se podia, portanto, ao estudá-las, abstrair tais fatos e valores presentes. A partir dessa nova visão estabeleceu para o direito uma nova conceituação, sob os auspícios da tridimensionalidade do direito.

Em suma, o que propôs Miguel Reale foi uma alentada crítica à Teoria pura do direito de Hans Kelsen, que, como visto, concebia o direito apenas como norma. Pela importância do tema e para que não se altere a essência de seu pensamento, vai-se aqui evitar expressão indireta e transcrever ipsis literes trechos extraídos do livro Teoria tridimensional do direito - situação atual:

“Kelsen estava, em 1940, no esplendor de sua primeira fase, porque ele teve três fases. Ele foi um jurista que mudou muito ao longo do tempo. Em 1940, era conhecido, sobretudo como o jurista da norma, do normativismo hierárquico, da pirâmide das normas jurídicas, conforme expunha em sua Teoria Pura do Direito (1ª edição).

Se se perguntasse a Kelsen o que é Direito, ele responderia: Direito é norma jurídica e não é nada mais do que norma. Muito bem, preferi dizer: não, a norma jurídica é a indicação de um caminho, porém, para percorrer um caminho, devo partir de determinado ponto e ser guiado por certa direção: o ponto de partida da norma é o fato, rumo a determinado valor. Desse modo, pela primeira vez, em meu livro Fundamentos do Direito eu comecei a elaborar a tridimensionalidade. Direito não é só norma, como quer Kelsen, Direito não é só fato como rezam os marxistas ou os economistas do Direito, porque Direito não é economia. Direito não é produção econômica, mas envolve a produção econômica e nela interfere; o Direito não é, principalmente valor, como pensam os adeptos do Direito Natural tomista, por exemplo, porque o Direito ao mesmo tempo é norma, é fato e é valor. E, pela primeira vez, na introdução do livro Teoria do Direito e do Estado, disse aquilo que generosamente um dos maiores discípulos de Kelsen, Josef Kunz, qualificou de "fórmula realeana": "o Direito é uma integração normativa de fatos segundo valores". Essa é a fórmula que Josef Kunz chamou de fórmula realeana. O Direito, repito, é uma integração normativa de fatos segundo valores.34

Esmiuçando o texto, conclui-se que, para Miguel Reale, o direito não se resumia nem a um dever, como visto em Kant, nem à norma jurídica, como afirmava Kelsen e nem a um fato isolado como queriam os marxistas, ou os economistas do direito. Em sua concepção, direito não era produto das relações econômicas, e como tal instrumento de dominação de classes. O direito, muito menos poderia ser vinculado a apenas valor, como pregam os adeptos do direito natural. Para Reale, ele é ao mesmo tempo fato, valor e norma, como se vê na definição extraída do texto supra e ampliada em suas Lições preliminares. Para Miguel Reale, Direito é

"a ordenação heterônoma, coercível e bilateral atributiva das relações de convivência, segundo uma integração normativa de fatos segundo valores". 35

Do escrito depreende-se que o direito envolve pelo menos três aspectos e consiste no processo dialético de integração do fato, do valor e da norma. Mais especificamente, os três elementos dimensionais do direito estão sempre presentes na substância do jurídico. O elemento fato faz referência ao mundo da natureza e do ser, atuando como determinantes dos acontecimentos históricos. O elemento valor traduz o mundo ético ou da cultura, estando presentes a moral e os costumes. A norma como último elemento representa a ciência do direito e as normas de conduta desejável pelo e para o meio social.

Em outra parte do citado volume, o professor Miguel Reale, faz a seguinte observação, que pressupõe não seja a assertiva acima a que se reproduza como a síntese de seu pensamento sobre a definição de direito. Transcreve-se: “(...) após nova fase do direito moderno, cheguei a uma definição do direito, que pela primeira vez vou enunciar como homenagem aos jovens que me ouvem:

"O direito é a concretização da idéia de justiça na pluridiversidade de seu dever-ser histórico, tendo a pessoa como fonte de todos os valores". 36

Considerando o que acima se alinhavou, percebe-se ser tarefa quase impossível a elaboração de uma resposta adequada para esgotar a questão inicial: afinal, o que é direito?

É lógico que, se tal possibilidade houvesse o tema seria alvo de pacificação e não de constantes divergências entre doutrinadores e correntes jurídicas. No entanto, as definições coligidas, e aqui interpretadas, foram tentativas do estabelecimento didático da noção de direito. O objetivo de facilitar a compreensão, a fixação de conceitos e, claro, melhorar o entendimento do acadêmico de direito sobre o campo de sua escolha profissional, acredita-se ter sido alcançado. Por óbvio, com a ressalva de que sendo o direito fenômeno jurídico, qualquer definição é motivo de controvérsias, e se deve estar permanentemente em busca de outras formas expressivas para este indeterminado e complexo fenômeno que é o direito.

Mas espera-se que, a partir dessas reflexões, aqueles encontrados em situação idêntica à do aluno vexado na introdução do trabalho terão subsídio para respostar o sisudo professor que lhes solicitar a definição do que é direito.

E dará a resposta, consciente de que a pergunta pode embaraçar tanto o aprendiz, quanto o jurisconsulto afamado, da forma como embaraça o lógico, deparando-se com a pergunta: o que é a verdade?

Notas e Referências bibliográficas

1. José Erigutemberg Meneses de Lima, advogado e Economista atuando em Blumenau (SC).

2. Enciclopédia Jurídica Soibelman. Mundus júris. Histórias de promotores, delegados, serventuários. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/legal/mundus.html>. Acesso em: 17 out.2007

3. Jus Esperniandi ou jus enrolandi são gírias forenses que expressam o direito ao desespero, quando a emoção substitui a razão em pessoas que se defrontam com uma situação vexatória.

4. LEVAGGI, Abelardo. Manual de Historia del Derecho Argentino. Parte General. Tomo I. 2. ed. Buenos Aires: Ediciones Depalma, 1998. p. 257/258

5. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Disponível em: <http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=direito>. Acesso em: 17 out. 2007.

6. A lei mosaica, reunida nos primeiros livros da Bíblia sob o título de Pentateuco e atribuída a Moisés, é um conjunto de regras morais, sociais e religiosas de observação obrigatória para o povo de Israel.

7. O Código de Hammurabi, em seus 282 parágrafos, trata de matéria de cunho processual, penal, patrimonial, obrigacional etc. É fonte da famosa regra de ouro do olho por olho, dente por dente, significando não faça aos outros aquilo que você não gostaria que fosse feito a você.

8. O Código de Manu trazia como pressuposto básico a proteção da propriedade privada, a honra pessoal, a vida, a integridade física das pessoas etc. Punia o adultério e admitia o divórcio.

9. THEIMER, Walter. História das idéias políticas. Lisboa: Arcádia. 1970. passim.

10. BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico – lições de filosofia do direito. Compilação de Nello Morra e tradução de Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone. 1995. p. 26 ss.

11. HOBSBAWM, Eric J. Era dos Extremos: O breve século XX: 1914-1991. SANTARRITA, Marcos (trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 15.

12. BOER, N. A bula Unam Sanctam de Bonifácio VIII sobre as relações entre a igreja e o estado, in Pensamento medieval, Org. José Antônio de C.R. de Souza. S. Paulo: Loyola. 1983. p.125/143

13. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil promulgada em 5 de outubro 1988. 25ª ed. São Paulo: Saraiva. 2000.

14. No Ocidente, a divisão entre o direito canônico e o direito produzido pelo Estado é conhecida e reconhecida, entretanto em países muçulmanos e hindus, o direito se confunde, ainda, com o conjunto de regras do comportamento religioso e moral.

15. LYRA FILHO, Roberto. O que é Direito. São Paulo: Brasiliense. Coleção Primeiros Passos, 62. 1999. p.10.

16. BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Trad. Maria Celeste C. J. Santos. Brasília: Editora Universidade de Brasília. 6ª ed. 1995. p. 21

17. IHERING, Rudolf Von. A luta pelo direito. São Paulo: Martin Claret, 2006. p.53

18. Common law versado para o português representa lei comum e constitui sistema jurídico oriundo da Inglaterra cuja principal característica é a valorização da jurisprudência em detrimento das leis estatutárias e codificadas como na civil law, ou direito romano-germânico, ao qual o sistema jurídico brasileiro se acha vinculado.

19. KELSEN, Hans. Teoria geral das normas. Trad. José Florentino Duarte. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor. 1986. passim.

20. PERELMAN, Chaïm. Ética e direito. Trad. Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes. 1996. p. 58

21. HOLMES JR., Oliver Wendell. The Common Law. New York: Dover, 1991. p 1

22. KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Trad. Valério Rohden e Udo Moosburger. Editora Nova Cultural, Coleção Os Pensadores. 1996. p. 147

23. TELLES JR. Godofredo. Introdução à ciência do direito. Postila. Facs. 2-3-4-5. 1972. p 101.

24. DINIZ, Maria Helena. Conceito de norma jurídica como problema de essência. São Paulo: Editora Saraiva. 1999. p. 55

25. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. 3ª Ed. Revista e atualizada. Curitiba: Editora Positivo. 2004. p. 610

26. KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Trad. Valério Rohden e Udo Moosburger. Editora Nova Cultural, Coleção Os Pensadores. 1996. Passim.

27. KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2003. Passim.

28. BOBBIO, Norberto. Direito e estado no pensamento de Emanuel Kant. Trad. Alfredo Fait. 3ª ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília. 1995. p. 394

29. LEITE, Flamarion Tavares. O conceito de direito em Kant. São Paulo. Ed. Cone. s/d. p. 70.

30. Ibdem. p.70

31. KANT, Immanuel. Textos selecionados. Seleção de textos de Marilena de Souza Chauí. Trad. Tânia Maria Bernkopf, Paulo Quintela, Rubens Rodrigues Torres Filho. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural. 1984. p.129

32. Os termos pirâmide e pirâmide hierárquica normativa não foram utilizados por Hans Kelsen em nenhuma de suas obras. Segundo alguns estudiosos, a demonstração geométrica da Pirâmide de Kelsen foi invenção de seu aluno Adolf Merkl.

33. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6ª ed. Coimbra: Armênio Amado Editora, 1984, p. 57

34. REALE, Miguel. Teoria tridimensional do direito - situação atual. São Paulo: Saraiva. 1994. p. 117/128

35. REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 1993, p.67

36. REALE, Miguel. Teoria tridimensional do direito, p. 117/128