Críticas ao Tribunal Penal Internacional*

     Durante o 4º Congresso da Associação Internacional dos Advogados do Povo (International Association of People’s Lawyers – IAPL), na Holanda, em maio de 2010, tivemos a oportunidade de visitar o Tribunal Penal Internacional, na cidade de Haia, receber informações de representantes da Presidência e da Promotoria do tribunal, e assistir a uma audiência do caso Germain Katanga e Mathieu Ngudjolo Chui (Congo).

     O Tribunal Penal Internacional foi criado pelo Estatuto de Roma, que entrou em vigor internacional em 01/07/2002. O Brasil ratificou esse tratado em 20/06/2002, passando a ser parte e assumindo as obrigações dele decorrentes.

     A criação desse tribunal está dentro do problema da Justiça Penal Internacional, a qual, segundo Jorge Miranda (2000, Apud MAZZUOLI, 2010, p. 53), tem evoluído segundo três fases.

     A primeira, de tribunais de vencedores contra vencidos, cujos maiores exemplos foram os Tribunais de Nuremberg e de Tóquio, ambos criados em 1946, para punir os vencidos na II Guerra Mundial e servir à instalação de uma nova correlação de força no sistema internacional.

     A segunda fase correspondeu aos tribunais criados por resolução do Conselho de Segurança da ONU: Tribunal Penal Internacional para a Antiga Iugoslávia (1993) e Tribunal Penal Internacional para a Ruanda (1994). Esses tribunais, voltados para conflitos específicos, foram experiências fundamentais para a criação de um tribunal penal internacional geral e permanente.

     Um dos grandes problemas da Justiça Penal Internacional é a questão dos tribunais de exceção, tribunais criados para conflitos específicos e que não respeitam os princípios universais da reserva legal e da irretroatividade da lei penal: segundo os quais uma pessoa não pode ser punida criminalmente por um fato não previsto em lei na data da prática do fato supostamente criminoso.

     O Tribunal Penal Internacional procura resolver esse problema, mas traz consigo vários outros

1. Competência material (crime de agressão)

     O art. 5.1 do Estatuto de Roma diz que o Tribunal é competente para julgar indivíduos por crimes de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crimes de agressão. Os arts. 6º, 7º e 8º definem, respectivamente, os três primeiros crimes. Mas não existe no texto normativo a definição do crime de agressão. O próprio art. 5.2 fala que a jurisdição do TPI sobre o crime de agressão só poderá ser exercida quando o estatuto for emendado. A explicação para essa indefinição tem sido a falta de consenso entre os Estados. Mas isso revela algo mais profundo: o fato de que, aos Estados que exercem pressão no sistema internacional, não interessa definir tal crime. Em outras palavras, são os próprios agressores os que discutem e determinam o rumo das discussões sobre o Estatuto. Por que criar meios para punir a si próprios?

     O Prof. REZEK analisa a questão, mostrando que “não se pode processar um estadista pelo esse crime internacional enquanto não se resolver essa questão. Deixar para depois a definição disso parece um típico sinal dos tempos.” (2008, p. 46)

     Entre 31 de maio e 11 de junho de 2010, foi realizada em Kampala, Uganda, a Conferência de Revisão do Estatuto de Roma, organizada pela Assembléia dos Estados Partes do referido tratado. O tema principal foi a definição do crime de agressão. Após extensas discussões com análises de documentos e elaboração de relatórios, a conferência concluiu pela redação de novos artigos, mas que, como emenda a um tratado internacional, ainda precisa ser ratificada pelos Estados partes, e ainda assim, que a jurisdição não poderá ser exercida antes de 2017. Resta perguntar quantas guerras de agressão ocorrerão até 2017 e se a conclusão da Conferência valeu de alguma coisa.

2. Condições prévias ao exercício da jurisdição

     De acordo com o art. 12.2 do Estatuto de Roma, o TPI só pode julgar indivíduos que sejam nacionais de um Estado que seja parte do tratado (ou que tenha reconhecido a competência do Tribunal), ou então que o crime tenha sido cometido no território de um Estado nessas condições.
Mais uma vez, o poder político no sistema internacional evidencia a ineficácia do Direito Internacional. Afinal, vários dos países que mais promovem guerras, genocídios e crimes contra a humanidade não são parte no tratado: Estados Unidos e Israel (alguém ficaria surpreso?), Rússia, China, Índia, Paquistão, entre outros.

     Como exemplo aplicado, pode-se tomar o ataque de Israel ao navio Mavi Marmara e outras embarcações que compunham a Frota da Liberdade, que levava mantimentos humanitários à Palestina, causando a morte de pelo menos nove ativistas desarmados. Os responsáveis pelo ataque não podem ser levados ao Tribunal.

     Apenas uma hipótese poderia fugir à limitação referida no art. 12.2. Trata-se do art. 13(b), que autoriza o Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) a denuniciar ao Procurador do Tribunal qualquer situação, inclusive quando o referido Estado não seja parte do tratado. Foi o que aconteceu no caso do conflito em Darfur, Sudão, país que não é parte, mas do qual vários nacionais, inclusive o atual presidente, Omar al-Bashir, estão sendo processados.

     Mas para essa questão não pode ser ignorado o problema dos membros permanentes e com poder de veto no Conselho de Segurança da ONU. Qualquer um desses 5 Estados (EUA, França, Reino Unido, China e Rússia) pode vetar qualquer decisão no Conselho de Segurança, inclusive a decisão de encaminhar uma denúncia ao TPI. Conclusão: se o criminoso for agente estatal desses países, ou de qualquer país a eles aliado, a questão será vetada. Volta-se ao ataque de Israel à Frota da Liberdade: o Conselho de Segurança jamais encaminharia uma denúncia ou sanção contra Israel, especialmente por sua aliança estratégica com os EUA.

     E os membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU não têm apenas o poder passivo de vetar uma denúncia a ser encaminhada ao TPI, mas também o poder ativo de suspender qualquer processo no tribunal pelo período de 12 meses, na forma do art. 16.

3. O imperialismo revelado na prática do TPI

     O imperialismo não é meramente uma postura militar de um país específico, mas sim um estágio superior do capitalismo em que este se encontra monopolista, parasitário e agonizante. Também foi chamada de imperialismo a colonização européia nos países africanos, no séc. XIX. Trata-se, portanto, de um processo de desenvolvimento desigual entre países e de atividade colonialista.

     As contradições já mencionadas revelam a política imperialista que existe na prática do TPI. Mas a própria condição dos atuais réus do tribunal evidencia essa política. Afinal, os maiores agressores, genocidas e praticantes de crimes contra a humanidade jamais foram levados ao tribunal, como por exemplo os governantes estadunidenses de ontem e de hoje, responsáveis por gravíssimos inclusive no Iraque e no Afeganistão, como bombardeios, prisões ilegais até mesmo secretas, armas de destruição em massa, etc. Se não está julgando esses sujeitos, o que o tribunal está fazendo então?

     Em mais de 7 anos de atividades, o tribunal não processou mais que 16 pessoas, dos seguintes países: Uganda, Congo, República Centro-Africana e Sudão, e abriu uma investigação sobre o Quênia. Normalmente, chefes de milícias envolvidos em conflitos étnicos no continente africano.
Não se pode esquecer que tais conflitos têm sua origem histórica na própria prática imperialista, na estratégia de dominação de dividir para conquistar, que provocou cisões e tensões entre grupos étnicos, enquanto as potências se rivalizam manipulando cada qual um dos grupos étnicos em conflito armado. Em vez de atacar as causas e punir os imperialistas, o tribunal vai às conseqüências e processam chefes de milícias em países desestabilizados por conflitos centenários.

     Outro que evidencia a presença única de réus africanos é o princípio da complementaridade da jurisdição do tribunal, em que ele só julga se o país do conflito não tiver instituições políticas e judiciais suficientemente estáveis e eficientes para conduzir um julgamento dentro dos requisitos de imparcialidade e devido processo legal. Os países imperialistas podem facilmente mostrar, invocando suas “democracias” eleitorais de fachada, que possuem regimes estáveis capazes de julgar seus criminosos.

     O ex-Secretário Geral das Nações Unidas, Kofi ANNAN (2010, p. 8), publicou artigo no jornal International Herald Tribune de 31/05/2010, desafiando a efetividade do TPI ao afirmar que “um Tribunal Penal Internacional permanente deve ser também universal”, mostrando que a ação de países que se opõem ao tribunal leva à impunidade em detrimento da justiça. Assim, ANNAN coloca a perspectiva de que mais países ratificarão o Estatuto de Roma e assim se tornará universal. Mas a realidade é que, independentemente das ratificações, a Justiça Internacional continuará sendo política e imperialista.

Referências

ANNAN, Kofi A. Justice vs. Impunity. International Herald Tribune, 31 mai. 2010.
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 4.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
REZEK, Francisco. Apesar da crise, Direito tem salvação. Revista Visão Jurídica n. 13, Ed. Escala. 2008.

* Publicado na Revista Crítica do Direito, fevereiro de 2012.