Resumo:
O recente comportamento reiterado do Presidente da República durante a pandemia do Covid-19 inclusive ao participar ativamente em manifestações antidemocráticas e atentatórias à Constituição Federal Brasileira vigente, instaura questionamento sobre a possibilidade de responder por crime de responsabilidade. É o que artigo modestamente tentou esclarecer.

Palavras-Chave: Direito Constitucional. Constituição Federal Brasileira de 1988. Direito Penal. Direito Processual Penal. Direito Processual Administrativo.

Abstract
The recent repeated behavior of the President of the Republic during the Covid-19 pandemic, even when he actively participated in anti-democratic demonstrations and attacks on the current Brazilian Federal Constitution, raises questions about the possibility of responding for a crime of responsibility. That's what the article modestly tried to clarify.
Keywords: Constitutional Law. Brazilian Federal Constitution of 1988. Criminal Law. Criminal Procedural Law. Administrative Procedural Law.
 
Sumário. 1. Introdução. 2. Desenvolvimento. 3. Conclusão 4. Referências.
 
  1. Introdução.
O presente artigo questiona e investiga se os termos dos artigos 85 e 86 da Constituição Federal de 1988 podem propiciar a abertura de investigação em face do crime de responsabilidade e, ainda, se é igualmente possível haver futura cassação do mandato eletivo em face da confirmada materialidade delitiva e a certeza de autoria.
 
Em análise em tese, sob o prisma rigorosamente jurídico, atemporal e impessoal, apenas indicando circunstâncias fáticas apenas na medida em que isso for estritamente necessário.
 
Pretende-se basear-se na mais sólida isenção, trazendo a resposta juridicamente sustentável, tendo como principal questionamento se em face do vigente texto constitucional brasileiro e, ainda, diante de fatos contemporâneos, e fartamente divulgados pela imprensa nacional, indicando as irregularidades ocorridas no Governo Federal, ao longo do tempo, se existe ou não a viabilidade jurídico para abertura de processo de cassação do mandato do ocupante da Presidência da República.
 
Cumpre ainda, estabelecer que investigar os exatos limites da lei, não significa atribuir culpa[1] e tampouco condenar. Afinal, diante de possível investigação, posterior processo de cassação de mandato, pode resultar ou não na aplicação dessa penalidade.
 
O referido processo é designado popularmente como impeachment[2]figura positivada no artigo 85 e reconhecido como crime de responsabilidade. Porém, o uso no bojo constitucional do vocábulo "crime" tem ensejado infinidade de interpretações e questionamentos. O que tem levado a doutrina a se aprofundar no estudo de suas origens bem como procurar solucionar os atuais problemas vivenciados.
 
Historicamente, quando da instauração da República brasileira, os primitivos constituintes pátrios adotaram a estrutura de Estado e o sistema de governo dos Estados Unidos da América, tendo, portanto, adotado o presidencialismo, e no sentido de promover a responsabilidade do Presidente da República, por meio do processo já chamado de impeachment.
 
Assim, o real significado de impeachment e do processo brasileiro de cassação de mandato, em decorrência do cometimento de crime de responsabilidade, fora sintetizado pelo ex-ministro do Superior Tribunal Militar, Flávio Bierrenbach, em artigo publicado na imprensa que permite visão panorâmica da temática, in litteris:
      "O impeachment, portanto, não constitui sanção, pena ou castigo para atos reprováveis do Presidente da República que sejam considerados atentatórios à Constituição ou às leis do país, especialmente diante da Lei 1.079, de 1950, que define o crime de responsabilidade”.
 
    “O impeachment, é antes, o processo em si, do qual poderá resultar ou não a aplicação de uma única penalidade: a desqualificação funcional, que consistirá na perda do cargo e inabilitação temporária para o exercício de função pública. A inépcia, a inércia, a incompetência, a antipatia, a arrogância, não são delitos. Crimes de responsabilidade são infrações político-administrativas".
 
   “Se nos crimes comuns o presidente da República seria submetido a julgamento perante a Suprema Corte, já nos crimes de responsabilidade, como decorrência de sua intrínseca natureza política, será julgado pelo Senado Federal, que se transformará em tribunal de colegialidade heterogênea, conduzido pelo Presidente do STF”. (In: BIERRENBACH, Flávio Flores da Cunha. Impeachment. Diário do Poder, Brasília, 13/02/2015).
 
É cediço que o crime que se refere ao Presidente da República, pode ser de duas espécies, a saber: o comum e o de responsabilidade. E, em ambos os casos há ativa participação do Legislativo no processo, porém, de atuação diferente.
 
Pois, no artigo 51 do texto constitucional vigente, compete à Câmara dos Deputados, autorizar, por dois terços de seus membros, a instauração de processo contra o Presidente da República", tanto em crimes comuns[3] como os de responsabilidade.
 
Por outro lado, ao Senado segundo o artigo 52, não se atribuiu qualquer competência no que se refere ao crime comum, porém, lhe deram função primordial no que se refere aos crimes de responsabilidade, pois, in casu, o Senado irá processar e julgar o Presidente, decidindo ipso facto sobre a cassação de mandato, cuja abertura fora apenas autorizada pela Câmara dos Deputados.
 
Realizada essa prima distinção, é forçosa aduzir mais uma distinção entre as diferentes consequências que decorrem da prática de atos de improbidade administrativa que tanto podem tipificar um crime comum como crime de responsabilidade (infração político-administrativa) e, ainda, uma terceira espécie de infração delineada pelo quarto parágrafo do artigo 37 da Constituição Federal brasileira vigente, in litteris:
 
    §4º— Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.
 
Comportamentos tipificados como atos de improbidade administrativa são previstos por diferentes diplomas legais e, podem acarretar diferentes responsabilidades e são julgados  em diferentes tribunais.
 
Aliás, comentando-se a Lei de Improbidade Administrativa, a Lei 8.429/1992 tem-se observado que a responsabilidade pela improbidade administrativa não se confunde com a responsabilidade oriunda da prática de ilícito penal. Pois, diversamente, esta é amálgama de natureza cível e administrativa (posto que esteja relacionada com a administração do Estado). E, para ter a natureza penal teria que ocorrer crime previsto em lei penal e apenado com reclusão ou detenção (embora, haja outras penas criminais), onde se preenchessem todos os requisitos tanto do direito penal como do direito processual penal.
 
Afinal, na improbidade administrativa, tem-se punição não propriamente a título pena, apesar de haver a previsão de tipo penal na Lei de Improbidade Administrativa, com o clássico esquema da previsão de pena imposta ao fim do processo penal, mas a imposição de outras sanções sem natureza penal, tais como a suspensão de direitos políticos, o ressarcimento do dano causado, a perda da função pública, o pagamento de multa em valor multiplicado pelo valor do dano ou outro, etc.
 
Ademais, a improbidade administrativa é apurada em ação civil pública, não se aplicando a esta, as normas processuais penais. Seu caráter constitucional mais preponderante é o fim ressarcitório. Por isso, existe dispositivo somente para preceituar que o ressarcimento do dano nunca prescreve (ex vi o artigo 37, §5º CF/1988).
 
Portanto, na interpretação sistemática, é inegável que a sua natureza seja prevalentemente civil. E, sua prioridade máxima é proteger o Erário, evitando a cultura profana do patrimonialismo.
 
Cogita-se ainda da possibilidade de cumulação dos crimes de responsabilidade (Impeachment) e de improbidade administrativa dos agentes políticos por distinção de suas naturezas jurídicas.
 
Interpretando ainda, as normas constitucionais que preveem a cassação do mandato presidencial, dentro do âmbito do Legislativo e pela prática de crime de responsabilidade. Evidencia-se que há divergências interpretativas das leis, e diferentes doutrinadores e juristas partindo de premissas diferentes e valorando de forma diferenciada certos princípios jurídicos, podem dar azo as interpretações diametralmente divergentes.
 
E, mesmo diante da impossibilidade de se atingir a pura objetividade, a interpretação, não apenas no direito, mas como em outras áreas do saber humano, jamais constituirá em atividade inteiramente discricionária nem puramente mecânica.
 
Afinal, a interação havida entre intérprete e texto, traz tanto elementos objetivos como subjetivos. Sabendo que a subjetividade traduzir-se-á na sensibilidade do intérprete que humanizará a norma jurídica para afeiçoá-la à realidade e permitirá que se busca a solução justa, dentre as alternativas que o ordenamento jurídico nos apresenta.
 
Atentemos para os princípios posto que sejam linhas mestras, diretrizes axiológicas de todo sistema jurídico. E, apontam os rumos a serem trilhados para todos a sociedade e obrigatoriamente pelos órgãos do governo (poderes constituídos). Afinal, os princípios exalam a substância derradeira do desejo do povo, seus objetivos e desígnios, sendo vetores condutores da legislação, da administração e da jurisdição. E, por estas, não podem ser contrariados, têm que ser prestigiados ao máximo até as últimas consequências.
 
Residem nos princípios constitucionais as opções ideológicas fundamentais de todo sistema jurídico, que devem ser fielmente obedecidas pelo intérprete. Os princípios representam colunas-mestras da grande construção do Direito, cujos fundamentos se afirmam no sistema constitucional.
 
Enfim, as decisões políticas e jurídicas contidas no ordenamento constitucional obedecem às diretrizes abarcadas na principiologia informadora do sistema de Direito e, principalmente organizada em Estado.
 
Todavia, a Carta Magna redentora consagra diversos princípios, que convivem no sistema, mas que não estão, na mesma posição hierárquica. Não, por acaso que existe o Título I da Constituição que tem a designação de "Dos Princípios Fundamentais", atribuindo a estes a máxima positividade e determinando que outros princípios sejam interpretados em conformidade com estes, qualificados e gabaritados como fundamentais.
 
De sorte que o intérprete não pode apegar-se a um princípio constitucional ignorando os demais, pois o texto constitucional representa conjunto hierarquizado e harmônico de princípios, sendo inconcebível sua existência em estado de isolamento. Sua convivência e interrelação com os outros princípios e normas, lhe conferem equilíbrio e proporção.
 
As normas (afirmou Bobbio: só têm existência em um contexto de normas), isto é, no sistema normativo. A interpretação jurídica precisamente desenrola-se no âmbito de três distintos contextos: o linguístico, o sistêmico e o funcional
 
No contexto linguístico é discernida a semântica dos enunciados normativos. Mas o significado normativo de cada texto somente é detectável no momento em que se o toma como inserido no contexto do sistema, para após afirmar-se, plenamente, no contexto funcional.
 
Há a luta inerência entre o poder e a responsabilidade no sistema republicano. Noutros sistemas, como a monarquia que já fora conhecida no país, quando vigente o texto constitucional de 1824, pode-se adotar a bizarra regra de que o rei não erra, de que o rei era irresponsável.
 
Já, no regime republicado, lastreado na igualdade entre as pessoas, todo governante em seu ofício precípuo, o faz, por força de uma outorga dos governados, dos iguais. Assim, o governante não é alguém mais importante ou diferente dos cidadãos que os elegeu.
 
Assim, curial, lembrar que todo e qualquer governante é cidadão que fora investido em função de comando e que recebera um mandato para desempenhar certa função. E, se não for fiel ao mandato recebido, poderá ser responsabilizado, podendo ser afastado do poder.
 
Portanto, a eventual cassação de mandato presidencial por condenação em processo de crime de responsabilidade, nada tem de estranho ou conflitante com a soberania popular. Ao revés, trata-se de forma usual e normal de controle de exercício do poder, peculiar ao sistema republicano. Seria aberrante e incoerente, o sentido contrário, que diante de ausência de previsão constitucional, da possibilidade de responsabilização do ocupante da Presidência da República.
 
Mesmo em priscas épocas, no Império Brasileiro, o artigo 99 preconizava que a figura do Imperador não estava sujeita a responsabilidade alguma. Porém, como no sistema republicano é fundamental a existência de controles sobre quem quer que exerça poder pública, a ninguém cabe tal imunidade.
 
Afinal, revela-se a República, por mais paradoxal que pareça, ser o governo dos iguais. Assim, quem governa não é diferente dos governados, traduz-se que o governante é um igual a quem o conjunto de iguais conferiu esse poder-dever, motivo pelo qual os atos praticados pelo governante sempre devam ser justificados e podem ser controlados e, portanto, ensejar responsabilidades.
 
Repise-se que o Presidente da República não é Imperador temporário e, a ele não se aplica o artigo 99 da Constituição imperial brasileira, e, sim, a regra geral de responsabilidade que é inerente a qualquer cidadão, que tiver temporariamente imbuído em qualquer parcela de Poder público.
 
  1. Desenvolvimento
O atual texto constitucional brasileiro evidencia positivamente que o crime de responsabilidade não se confunde com infração penal. E, quando cometido pelo Presidente da República, cuidou a Constituição federal vigente elaborar distinção nítida entre o crime de responsabilidade e crime comum.
 
De fato, o crime comum do Presidente da República é julgado pelo Supremo Tribunal Federal; por órgão do Judiciário. Enquanto que o crime de responsabilidade é julgado pelo Senado Federal e, não pelo Poder Judiciário, porque não se trata de crime, em sentido penal, posto que não seja infração penal.
 
O crime de responsabilidade constitui infração político-administrativa. Apesar de que não vige diferença qualitativa ou quantitativa entre o ilícito administrativo e ilícito penal, cuja criação depende somente de um juízo político do legislador.
 
Porém, é necessário haver pelo menos à guisa desse modesto artigo, que se estabeleça uma distinção entre esses dois tipos de ilícitos com base em critério formal e fundado na análise do regime jurídico de cada qual.
 
O legislador goza de ampla liberdade para determinar se um comportamento será tipificado como crime ou como infração administrativa. E, tal escolha tem relevante consequência, pois ao tipificar a conduta como ilícito penal, o legislador atribui à prática de tal ato uma sanção penal, submetendo o infrator a certo regime jurídico.
 
Por outro viés, se o legislador tipifica a conduta como infração administrativa, a prática de tal conduta ilícita dá ensejo à aplicação de sanção administrativa, cujo regime jurídico é distinto do que disciplina a aplicação da sanção penal.
 
Em verdade, a definição do tipo de ilícito, a saber, penal ou administrativo implica certamente na opção do tipo de sanção a ser aplicada, e, ipso facto, na escolha de um regime jurídico. Ao ilícito penal corresponde uma sanção penal, ao ilícito administrativo corresponde uma sanção administrativa.
 
Muitos estudiosos já se questionaram a respeita da insistente distinção. Mas, é simples a explicação, pois ao excluir do regime jurídico do processo de cassação do mandato qualquer aplicação indevida de preceitos do Código Penal brasileiro ou do Código de Processo Penal pátrio.
 
Em verdade, o crime de responsabilidade não é propriamente crime, sendo violação política-administrativa e, portanto, deve ter julgamento de natureza política, realizado por órgão político. Afinal, quem julga crime de responsabilidade não é o Poder Judiciário e, sim, o órgão político que é o Poder Legislativo.
 
Não se pode concluir que serão desprezadas as garantias constitucionais do devido processo legal e da ampla defesa que são asseguradas pelos incisos LIV e LV do artigo 5º da Constituição Federal brasileira vigente.
 
 
Mesmo ante o processo administrativo, verifica-se a existência de princípios firmados pela Lei 9.784/99 (conhecida como Lei do Processo Administrativo), mas decidimos não inclui entre os princípios, naturalmente, o devido processo legal e a ampla defesa, pois estes antecedem essa específica lei e, se aplicam a qualquer processo disciplinar ou punitivo, portanto, sua forte índole de garantia constitucional há de ser respeitada.
 
Por essa razão é elucidativo o posicionamento manifestado pelo decano e Ministro Celso de Mello, in litteris:
  “A garantia do devido processo legal compreende uma série de direitos, deveres e responsabilidades, conforme muito bem observou o Professor e Ministro Celso de Mello, dizendo que ele, em síntese, visa a “garantira pessoa contra a ação arbitrária do Estado e a colocá-la sob imediata proteção da lei”, abrangendo, entre outros, “os seguintes direitos:(a) direito à citação e ao conhecimento de teor da peça acusatória;(b) direito a um rápido e público julgamento; (c) direitos ao arrolamento de testemunhas e à notificação destas para comparecimento perante os tribunais; (d) direito ao procedimento contraditório; (e) direito de não ser processado, julgado ou condenado por alegada infração às leis editadas ex post facto; (f) direito à plena igualdade com acusação; (g) direito de não ser acusado nem condenado com base em provas ilegalmente obtidas ou ilegitimamente produzidas; (h) direito à assistência judiciária, inclusive gratuita; (i) privilégio contra a autoincriminação;(j) direito de não ser subtraído ao seu juiz natural”. (In: FERRAZ, Sérgio; DALLARI, Adilson Abreu. Processo Administrativo. 3ª edição. São Paulo: Malheiros, 2012)
 
É sabido que o processo de cassação do mandato presidencial por ser punitivo em face de apuração de infração político-administrativa, deve igualmente observar as garantias constitucionais retromencionadas, de forma a assegurar a eficácia, mas sem o rigorismo da legislação, da jurisprudência e da doutrina penal e do direito processual penal.
 
Numa visão técnico-jurídica é oportuno salientar que, ao passo que o processo penal busca a verdade[4] processual, o processo administrativo está dirigido à busca da verdade material. Assim, a salvação dos penalmente acusados em geral costuma ser alguma nulidade formal ou mesmo a insuficiência de provas.
 
Entretanto, em sede de processo administrativo, os eventuais vícios poderão ser relevados, corrigidos ou convalidados, sendo dever da autoridade processante sempre buscar as provas para, enfim, chegar à verdade material. E com razão tais características devem estar presentes cabalmente no processo político-administrativo voltado para apuração de crime de responsabilidade.
 
Requer-se, naturalmente, a tipicidade que é decorrente tanto do texto constitucional, mas que deve ser aplicada de forma consentânea ao caráter político-administrativo do processo. E devido ao elevado grau de discricionariedade de ações e decisões políticas, não é possível a exigência de ajuste milimétrico e matemático ao tipo, nem do elevado nível de prova requerido para as sanções penais.
 
Bastando existir a compatibilidade razoável com o tipo. bem como. o conjunto de circunstâncias que indiquem a ocorrência de comportamento ilícito.
 
Outra particularidade oriunda da das diferentes sedes de julgamento, é um princípio geral de direito que é inquestionável, é o da imparcialidade do julgador. Por essa razão, que o no processo de impeachment presente na Constituição dos EUA, os julgadores devem expressamente realizar juramento de imparcialidade. E, tal procedimento, não tem sentido algum em nosso país.
 
Afinal, obviamente, não faz sentido, aqui nem exigir juramento de imparcialidade do julgador, nem excluir do corpo de julgadores quem fosse de algum partido de oposição ao Presidente da República, pois isso tornaria morto o princípio constitucional da responsabilidade dos governantes.
 
Cabe realizar relevante advertência doutrinária sobre o respeito da hierarquia dos princípios e normas constitucionais, pois o ordenamento jurídico em geral, também conhece a estrutura de ordem escalonada, não estando todas as normas postas horizontalmente lado a lado, mas sim, verticalmente, umas com força relevante sobre as demais.
 
E, assim, caso se perca a unidade, perder-se-ia também a dimensão da certeza, o que faria do texto constitucional um mero instrumento de arbítrio, por força do surgimento descontrolado de antinomias.
 
Assim, a noção hierárquica dita os esquemas interpretativos pautados na regra da superioridade e da especialidade, donde a possibilidade de restritiva interpretação de certas normas jurídicas e extensivas de outras. Tornando-se assim inevitável o recurso ao escalonamento e suas consequências analíticas.
 
Deve-se atentar ao primeiro artigo da Constituição brasileira vigente que arrola os fundamentos do Estado Democrático de Direito, a saber: 1. soberania; 2. cidadania; 3. dignidade da pessoa humana;4. os valores sociais do trabalho e,  5.da livre iniciativa. E, ainda a ressalva pungente do parágrafo único: Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
 
Lembremos que em regimes democráticos não existe governante irresponsável. E, não existe democracia representativa sem eleição. Eleição que deve ser isenta, periódica e devidamente apurada, resultante assim de sufrágio popular, onde as autoridades designadas para exercitar o governo devem responder pelo uso que dele fizerem, uma vez que o governo irresponsável, embora oriundo de eleição popular, pode ser tudo, menos autêntico governo democrático.
 
Adiante, em seu artigo 2º o mesmo texto constitucional vigente afirma o princípio de grande importância, designado como o da separação dos poderes. Ratifica tal princípio a exata especificação das funções de cada Poder, justamente para evitar o absolutismo, o exercício do Poder Público em termos absolutos ou perpétuos, sem qualquer limitação, pois isso acarretaria inexoravelmente a tirania.
 
A tripartição de poderes não visa criar três poderes absolutamente autônomos e independentes, pois isso corresponderia, a triplicação da tirania. A tripartição é instrumento de contenção do Poder, possibilitando que cada um dos Poderes, exerça controle sobre os demais.
 
Pelo artigo 86 da CF/1988 uma vez admitida a acusação contra o Presidente da República, por dois terços da Câmara dos Deputados, será ele submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, nas infrações penais comuns, ou perante o Senado Federal, nos crimes de responsabilidade.
 
§1º O Presidente ficará suspenso de suas funções: I — nas infrações penais comuns, se recebida a denúncia ou queixa-crime pelo Supremo Tribunal Federal; II — nos crimes de responsabilidade, após a instauração do processo pelo Senado Federal.
§2º Se, decorrido o prazo de cento e oitenta dias, o julgamento não estiver concluído, cessará o afastamento do Presidente, sem prejuízo do regular prosseguimento do processo.
§3ºEnquanto não sobrevier sentença condenatória, nas infrações comuns, o Presidente da República não estará sujeito a prisão.
§4ºO Presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções.
A responsabilidade do Presidente da República é derivação imediata do princípio republicado já positivado no primeiro artigo do texto constitucional brasileiro. E, em seguida, de forma genérica discorre sobre o conceito de crimes de responsabilidade como sendo "
 
Os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal”. Por último, faz uma especificação claramente exemplificativa (não exaustiva) de situações que são caracterizadas como atos atentatórios à Constituição. O parágrafo único desse Art. 85 diz que os crimes nele previstos serão “definidos em lei especial”, mas é bom lembrar que tal lei ordinária não pode alterar ou restringir um mandamento constitucional. Ou seja: a lei ordinária não está adstrita à relação exemplificativa, mas pode abranger, também, qualquer ato do Presidente que "atente contra a Constituição Federal".
 
Assim, se atenta contra o princípio da separação dos poderes, se atenta contra os princípios e valores que jurou respeitar no dia de sua posse, comete positivamente o crime de responsabilidade. E, é responsabilizado exatamente por atos típicos e precípuos de suas funções.
 
De sorte que mais relevante do que as mais elementares normas hermenêuticas, é a hierarquia dos princípios e das normas constitucionais e, não pode conferir imunidade ao Presidente da República, como aliás, já decidiu o Supremo Tribunal Feral, in verbis:
 
     A norma consubstanciada no art. 86, §4º, da Constituição, reclama e impõe, em função de seu caráter excepcional, exegese estrita, do que deriva a sua inaplicabilidade a situações jurídicas de ordem extrapenal. O Presidente da República não dispõe de imunidade, quer em face de ações judiciais que visem a definir-lhe a responsabilidade civil, quer em função de processos instaurados por suposta prática de infrações político-administrativas, quer, ainda, em virtude de procedimentos destinados a apurar, para efeitos estritamente fiscais, a sua responsabilidade tributária. A Constituição do Brasil não consagrou, na regra positivada em seu art. 86, §4º, o princípio da irresponsabilidade penal absoluta do Presidente da República. O Chefe de Estado, nos ilícitos penais praticados “in officio” ou cometidos “propter officium”, poderá, ainda que vigente o mandato presidencial, sofrer a “persecutio criminis”, desde que obtida, previamente, a necessária autorização da Câmara dos Deputados. Inquérito no 672-6, Distrito Federal, Relator Ministro: Celso de Mello, STF, D.J. 16.4.93.
 
De fato, uma parte mais sombria e nebulosa do parágrafo quarto do artigo 86 em comento seja a limitação temporal à vigência do mandato. Pois não poderá ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções.
 
Convém, em tempo, assinalar que o referido dispositivo-ressalva não existia nos textos constitucionais de 1946, 1967 e 1969, pois tal limitação fora novidade trazida pelos constituintes de 1988.
 
Quando se estabeleceu que a duração de mandato presidencial era de quatro anos, não havendo possibilidade de reeleição. Porém, atualmente, por força do § 5º do artigo 14 da Constituição Federal, mediante a redação oferecida pela Emenda Constitucional 16/1997, o Presidente pode ser reeleito por mais um período, subsequente, de quatro anos.
 
Desta forma, se estabeleceu que o Presidente da República estará no exercício de suas funções por oito anos, caso seja reeleito. Mas, cumpre diferenciar mandato do que seja o exercício das funções de Presidente da República.
 
Pois, antigamente não era possível cassar mandato presidencial após os quatro anos, porque, após tal tempo, não haveria mais mandato para ser cassado. E, hoje o mandato resta dividido em dois períodos de quatro anos, durante a somatória desses, a função exercida pelo Presidente da República é uma só. Sendo inquestionável que, uma vez reeleito, estará no exercício de suas funções por oito anos.
 
Assim, deve a interpretação dada ao parágrafo quarto, do artigo 86 ser atualizada, para compatibilizar-se com vigente contexto constitucional.
 
Concluímos que a interpretação constitucional deve ser evolutiva, mesmo quando não haja alteração do texto normativo, sempre atentando para ponderação, a fim de compreender o enunciado semântico dentro do quadro histórico presente.
 
Ademais, os crimes de responsabilidade ainda que apenas tentados, são passíveis de perda de cargo, tal como a inabilitação, até cinco anos, para o exercício de qualquer função pública, imposta pelo Senado Federal nos processos contra o Presidente da República ou Ministros de Estado, contra os Ministros do Supremo Tribunal Federal ou contra o Procurador Geral da República.
 
Verifica-se, enfim, que tais penalidades, são tipicamente de ordem política e não se confundem com as penalidades previstas em Código penal, nem as substituem.  O artigo 4º é uma reprise do que já constava na Constituição brasileira de 1946 e, é bastante semelhante ao texto constitucional atualmente em vigor, contendo uma afirmação genérica sobre atos que atentem contra a Constituição, trazendo enumeração exemplificativa, in litteris:
 
 
Art. 4º São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentarem contra a Constituição Federal, e, especialmente, contra: I — A existência da União; II — O livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário e dos poderes constitucionais dos Estados; III — O exercício dos direitos políticos, individuais e sociais; IV — A segurança interna do país; V — A probidade na administração; VI — A lei orçamentária; VII — A guarda e o legal emprego dos dinheiros públicos; VIII — O cumprimento das decisões judiciárias.
 
Ainda mais contundente é o artigo 9º que impõe:
      São crimes de responsabilidade contra a probidade na administração:.3 — não tornar efetiva a responsabilidade dos seus subordinados, quando manifesta em delitos funcionais ou na prática de atos contrários à Constituição;
  1. Conclusão
 
É forçoso concluir que o texto constitucional vigente não tolera a improbidade, ao revés, fixa uma pluralidade de possíveis sanções. Portanto, a probidade administrativa é relevante valor constitucional, podendo ensejar tanto sanções criminais, civis como também as político-administrativas.
 
Saliente-se, por derradeiro que a dita improbidade pode decorrer de ação ou omissão. E, tal detalhe é relevante. Pois os delitos funcionais e atos contrários à Constituição podem ter sido praticados por terceiros (como Ministro, por exemplo) e num tempo pretérito, mas, se o Presidente da República, no exercício de suas funções, deles toma conhecimento e se omite, deixando de responsabilizar seus subordinados, eis que está configurada plenamente o crime de responsabilidade.
 
A improbidade administrativa traduz o quanto o agente público rompeu com o compromisso de obediência aos deveres inerentes à sua função, e essa qualidade é fornecida pelo próprio sistema jurídico através de seus princípios e de suas normas das mais variadas disciplinas.
 
Acrescente-se que o artigo 10 da Lei 8.429/92 estabelece que a improbidade administrativa que cause lesão ao erário mediante qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje a perda patrimonial, desvio, apropriação malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no artigo 1ºda referida lei.
 
Por fim, deduz-se que o impeachment é crucial válvula de descompressão da democracia, garantindo a legitimidade de que ocupa determinados cargos e, num país presidencialista, a relevância do instituto se agiganta porque evita rupturas institucionais principalmente com o fito de haver a devida preservação da legitimidade da representação popular.
 
Ratifique-se que no sistema republicano não existe imunidade processual para o Presidente da República, podendo ser positivamente investigado no exercício de seu mandato. E pode ser responsabilizado por ato praticado no exercício de suas funções, sob a única ressalva prevista no §4º do artigo 86 que se direciona aos crimes de responsabilidade previstos no artigo 85 do mesmo texto constitucional vigente.
 
A responsabilização civil opera-se tanto por ação quanto por omissão, seja dolosa ou culposa, no tocante aos deveres inerentes ao cargo, por força dos princípios republicanos, da moralidade ou probidade administrativa, da obrigatoriedade do desempenho da função pública.
 
Na hipótese de reeleição poderá o Presidente da República ser responsabilizado por ato praticado no exercício de mandato anterior desde que configurem como crime de responsabilidade. É o que determina a sã e consciente interpretação das normas, anteriormente existentes, instituindo a responsabilidade como regra ampla e geral, seja feita de maneira evolutiva, em consonância com os princípios fundamentais da Constituição.
 
 
 
 
 
 
 
 
Referências:
 
BIERRENBACH, Flávio Flores da Cunha. Impeachment Diário do Poder, Brasília, 13/02/2015.
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. (Tradução de Maria Celeste C.J. Santos). Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997.
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PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratadode direito privado: parte especial. Tomo XXII. Direito das obrigações: obrigações e suas espécies. Fontes e espécies de obrigações. Rio de Janeiro: Borsoi, 1958
 
[1] Segundo Pontes de Miranda, "a abstenção, omissão, ou ato negativo, também pode ser causa de dano. Se o ato cuja prática teria impedido, ou, pelo menos, teria grande probabilidade de impedir o dano, foi omitido, responde o omitente". Sergio Cavalieri, no mesmo sentido, afirma que a omissão "como pura atividade negativa, a rigor não pode gerar física ou materialmente o dano sofrido pelo lesado, porquanto do nada nada provém.

Mas tem-se entendido que a omissão adquire relevância jurídica, e torna o
omitente responsável, quando este tem dever jurídico de agir, de praticar um ato para impedir o resultado. (In: PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado: parte especial. Tomo XXII. Direito das obrigações: obrigações e suas espécies. Fontes e espécies de obrigações. Rio de Janeiro: Borsoi, 1958; CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 11ª edição. São Paulo: Atlas, 2014). Tratando-se da responsabilidade civil.
 
[2] A sintética Constituição Norte-americana de 1787 contém apenas dois dispositivos sobre o impeachment. O primeiro reserva à Câmara dos Representantes o poder de dar início ao impeachment (Artigo 1º, Seção 2, item 5), enquanto o segundo fixa a competência do Senado para julgar o presidente, em julgamento presidido pelo presidente da Suprema Corte, com um quórum qualificado de dois terços dos membros (Artigo 1º, Seção 3, item 6). Nos Estados Unidos, o presidente, mesmo sendo processado no Senado, não fica suspenso de suas funções. O afastamento só se dá com a condenação definitiva pelo Senado.
 
[3] Crime comum é aquele que não exige nenhuma qualidade específica do sujeito ativo para sua prática. São exemplos comuns, o homicídio, furto e estupro. O homicídio simples, por exemplo, que pode ser praticado por qualquer pessoa contra qualquer pessoa. Diferente do feminicídio que exige que o sujeito passivo seja mulher e que o crime, dentre outros motivos, fosse cometido em razão disso, este sendo um crime próprio.
 
[4] Verdade formal a que resulta do processo, embora possa não encontrar exata correspondência com os fatos, como aconteceram historicamente. A verdade real é aquela a que chega o julgador, reveladora dos fatos tal como ocorreram historicamente e não como querem as partes que apareçam realizados. Carnelutti apud Leite ofereceu ferrenha crítica a respeito destas diferenciações, classificando-as como "verdadeiras metáforas".
GiseleLeite
Enviado por GiseleLeite em 01/08/2020
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