Princípio da Dignidade da Pessoa Humana

e Testemunhas de Jeová

- Texto formulado em 2001 -

 

No tópico em estudo cai bem a averiguação de casos originários da fundamentação religiosa que leva os adeptos da seita Testemunhas de Jeová a não permitirem em si mesmos a transfusão de sangue, com base em alguns textos contidos na Bíblia, tais como:

 

"Todo animal movente que está vivo pode servir-vos de alimento. Como no caso da vegetação verde, deveras vos dou tudo. Somente a carne com sua alma - seu sangue - não deveis comer (Gênesis, 9:3-4)."

 

"Quando qualquer homem da casa de Israel ou algum residente forasteiro que reside no vosso meio, que comer qualquer espécie de sangue, eu certamente porei minha face contra a alma que comer o sangue, e deveras o deceparei dentre seu povo (Levítico, 17:10-14; Atos 15:28,29)."

 

Na atualidade existe ampla bibliografia a respeito desta questão.[1] A maioria divide-a em duas abordagens básicas: o paciente capaz de decidir moral e legalmente e o paciente incapaz. O paciente reconhecidamente capaz deve poder exercer a sua autonomia plenamente.

 

Para alguns autores, como Genival Veloso de França, este posicionamento é válido salvo nos casos de comprovada iminência de morte[2], situação em que o médico estaria autorizado a transfundir o paciente, mesmo contra a sua vontade, com base no princípio da beneficência. O fundamento está em que a vida é um bem maior, tornando a realização do ato médico um dever prima facie, sobrepujando-se ao anterior que era o de respeitar a autonomia. Esta colocação respalda-se também no Código de Ética Médica.[3]

 

O Conselho Federal de Medicina manifestou-se, em 26 de setembro de 1980, através da Resolução n. 1.021/80, especificamente, sobre a questão da transfusão de sangue em Testemunhas de Jeová, concluindo que, em caso de haver recusa em permitir a transfusão de sangue, o médico, obedecendo a seu Código de Ética Médica, deverá observar a seguinte conduta: se não houver iminente perigo de vida, o médico respeitará a vontade do seu paciente ou de seus responsáveis; se houver iminente perigo de vida, o médico praticará a transfusão de sangue, independentemente de consentimento do paciente ou de seus responsáveis.

 

Quando a situação envolve menores de idade ou outros pacientes tidos como incapazes[4], como por exemplo, uma pessoa acidentada inconsciente, a questão ganha outras conotações, pois o papel de proteger o paciente, apesar da vontade expressa de seus responsáveis legais poderá ser ampliado.

 

Uma questão a ser levantada no caso de adolescentes é até que ponto eles não podem ser equiparados, desde o ponto de vista estritamente moral, aos adultos, quanto à opção religiosa. O Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu art. 17, dá-lhes o direito de exercício à liberdade de culto, garantindo igualmente o respeito a esta manifestação. Se o mesmo Estatuto permite que, em caso de adoção, o menor com doze ou mais anos possa manifestar-se, por que este consentimento também não pode ser ampliado para esta questão? Muitas vezes as equipes de saúde solicitam à Procuradoria da Infância e Adolescência que busque autorização judicial para a realização do procedimento através da suspensão temporária do pátrio poder.

 

A restrição à realização de transfusões de sangue pode gerar um conflito entre a autonomia do médico e a do paciente e uma possível alternativa de resolução deste conflito moral é a de transferir o cuidado do paciente para um médico que respeite esta restrição de procedimento. Existem Comissões de Ligação com Hospitais que são constituídas por pessoas que se dispõem a ir ao hospital prestar assessoria visando o melhor encaminhamento possível ao caso. Essa Comissão dispõe de um cadastro de médicos que pode ser útil em tais situações.

 

Nos dias atuais, as Cortes americanas e canadenses têm fundamentado suas decisões no predomínio do princípio da autonomia, acatando a recusa a transfusões sangüíneas provenientes de pacientes seguidores da ordem religiosa Testemunhas de Jeová, quando maiores e capazes, mesmo que se encontrem em situação de emergência e risco de vida. Mas, contrariamente, os juízes permitem a realização do procedimento em crianças, filhos de adeptos da seita, mesmo contrariando o desejo de seus pais ou responsáveis, por considerarem que não sendo ainda possível a manifestação autônoma da criança, o direito à vida deva prevalecer sobre a manifestação da vontade parental.[5] O aspecto importante que valoriza a situação é o de que toda pessoa tem o direito às crenças e convicções, mas isso não lhe dá o direito de impô-las aos outros.

 

No Brasil, conflitos desse gênero também alcançam os Tribunais, mas o posicionamento dos julgadores difere do anteriormente exposto.

 

A Revista Bioética, do Conselho Federal de Medicina publicou que um homem de 38 anos, natural de Cabrobó, no Ceará, residente em Recanto das Emas, no Distrito Federal foi internado no SPA do HUB, lúcido, orientado. Após a realização de exames, foi descoberto resultado compatível com o diagnóstico de leucemia aguda, sendo-lhe solicitada transfusão de sangue total e concentrado de plaquetas. Ocorre que, ao adentrar o hospital, o paciente comunicou à equipe médica que era Testemunha de Jeová e, por isso, recusava-se terminantemente a receber tratamento com sangue ou derivados, referindo que “preferia morrer a receber o sangue, se isso era a vontade de Deus”, apresentando, inclusive documento de identificação como pertencente à referida religião. A esposa compartilhava o pensamento do marido. Contudo, os familiares, sua mãe e irmãos, resolveram recorrer à Justiça, conseguindo um despacho judicial autorizando o hospital a realizar a hemotransfusão e quaisquer outros procedimentos que julgasse necessário, sob o risco de ser considerado negligente. O hospital, por sua vez, também solicitou liminar judicial autorizando a realização dos procedimentos, após consulta ao CRM-DF. As intervenções iniciaram 24 horas após a admissão. A despeito do tratamento o paciente evoluiu para o óbito um dia após o início da quimioterapia.

 

Neste caso, em particular, a liminar negou o direito de autonomia ao ser humano sobre seu próprio corpo, aplaudindo o princípio de que o bem maior, a vida, suplanta aqueles que dele decorrem.

 

Veja-se síntese do voto do Relator, Desembargador Sérgio Gischkow Pereira, num caso de transfusão de sangue em Testemunhas de Jeová, onde, foi comprovado, não havia urgência da intervenção causadora do litígio:

 

Não cabe ao Poder Judiciário, no sistema jurídico brasileiro, autorizar altas hospitalares e autorizar ou ordenar tratamentos médico-cirúrgicos e/ou hospitalares, salvo casos excepcionalíssimos e salvo quando envolvidos os interesses de menores. Se iminente o perigo de vida, é direito e dever do médico empregar todos os tratamentos, inclusive cirúrgicos, para salvar o paciente, mesmo contra a vontade deste, de seus familiares e de quem quer que seja, ainda que a oposição seja ditada por motivos religiosos. Importa ao médico e ao hospital é demonstrar que utilizaram a ciência e a técnica apoiadas em séria literatura médica, mesmo que haja divergências quanto ao melhor tratamento. O Judiciário não serve para diminuir os riscos da profissão médica ou da atividade hospitalar. Se a transfusão de sangue for tida como imprescindível, conforme sólida literatura médico-científica (não importando naturais divergências), deve ser concretizada, se para salvar a vida do paciente, mesmo contra a vontade das Testemunhas de Jeová, mas desde que haja urgência e perigo iminente de vida (art. 146, parágrafo 3º, inc. I, do CP). Caso concreto em que não se verificava tal urgência. O direito à vida antecede o direito à liberdade, aqui incluído a liberdade de religião; é falácia argumentar com os que morrem pela liberdade, pois ai se trata de contexto fático totalmente diverso. Não consta que morto possa ser livre ou lutar por sua liberdade. Há princípios gerais de ética e de direito, que, aliás, norteiam a Carta das Nações Unidas, que se precisam sobrepor às especificidades culturais e religiosas; sob pena de se homologarem as maiores brutalidades; entre eles estão os princípios que resguardam os direitos fundamentais relacionados com a vida e a dignidade humanas. Religiões devem preservar a vida e não exterminá-la.[6]

 

O Desembargador Osvaldo Stefanello acompanhou, no mérito, o voto do Relator, advertindo: “Não aceito que, por convicção de qualquer espécie, se induza à morte ou se permita que alguém morra.”

 

A observação demonstra que o pensamento decisivo dos julgadores nacionais pauta-se no sentido de que se durante uma cirurgia realizada em um Testemunha de Jeová mostrar-se imprescindível imediata transfusão de sangue, sob pena de fracasso da operação e morte do paciente, cabe aos médicos, simplesmente, efetuar a transfusão. Tal providência impor-se-ia, ante a situação clínica apresentada pela paciente, por tratar-se - a vida - de bem jurídico indisponível, atualmente em perigo concreto e iminente risco de ocisão, ensejo no qual o interesse público sobrepõe-se aos sentimentos pessoais.[7] Não se poderia esperar que os médicos suspendessem a cirurgia para consultar terceiros, mesmo que fosse o Judiciário. Nesse lapso temporal resultaria morto o paciente. A violação à liberdade de religião não poderá ser clamada, pois em situações incomuns, nas quais o indivíduo encontra-se impossibilitado fisicamente de expressar sua vontade, o ordenamento jurídico deve optar por preservar-lhe a vida em detrimento de dogma religioso.

 

Todavia, decide-se através das laudas que compõem esta monografia que, iminente o risco, sendo-lhe possível externar a vontade, esta deverá ser preservada. O indivíduo é um ser social o que coloca em discussão a validade de preservar-lhe a existência ao mesmo tempo em que se lhe priva do direito de usufruir as suas convicções mais profundas, condizentes à sua essência, em razão da qual afastar-se-á de seus amigos e da prática religiosa que o alerta veemente sobre a exigência de preservar a pureza do sangue culminando por ameaçá-lo de que, infringindo essa lei será decepado dentre seu povo (Levítico, 17:10-14; Atos 15:28,29).

 

Portanto, a aplicação da tutela antecipada, aqui deverá ser sopesada, ao levar-se em conta o direito das partes envolvidas. Formula-se o pensamento de que no conflito envolvendo maiores e capazes, pelo menos em tese, e, em princípio, ressalvados casos excepcionais, não cabe ao Judiciário a concessão de tutela antecipada para determinar a realização deste ou daquele tratamento. Se o caso não oferece urgência, o problema não existe, pois o paciente pode negar-se a receber qualquer tipo de tratamento, não podendo o profissional, segundo lição de Antonio Carlos Bittar, sob pena de responsabilidade - civil e penal -, coagi-lo a qualquer intervenção ou outro condicionamento.[8] Por outro lado, oferecendo urgência e estando o paciente em estado de inconsciência, não necessita o médico ou o hospital da intervenção jurisdicional, pois não considera crime de constrangimento ilegal o art. 146, parágrafo 3º do Código Penal, a intervenção médica ou cirúrgica sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal se justificada por iminente perigo de vida.

 


[1] Artigos publicados na base Medline sobre esta questão: <http://www.ufrgs.br/HCPA/gppg/transfus.htm>. Ver também: FRANÇA, Genival Veloso de. Comentários ao Código de Ética Médica. Rio de Janeiro: Guanabara-Koogan, 1994, p. 50-51, 62-63. Também: DORSA, Paschoal José. O direito à vida e à liberdade de crença: testemunhas de Jeová ... em face da Constituição. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 714, p. 98-102, abr. 1995.

[2] FRANÇA, Genival Veloso de. Comentários ao código de ética médica. Rio de Janeiro: Koogan, 1994, p. 62.

[3] O Código de Ética Médica preceitua que é vedado ao médico: artigo 46: efetuar qualquer procedimento médico sem o esclarecimento e o consentimento prévios do paciente ou de seu responsável legal, salvo em iminente perigo de vida; artigo 56: desrespeitar o direito do paciente de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente perigo de vida.

[4] A respeito ver: CHAVES, Antonio. A ordem religiosa testemunhas de jeová não admite transfusões de sangue: como ficam as operações de crianças em perigo de vida? Revista da Faculdade de Direito, FMU. Disponível em: <http://www.fmu.br/direito/nac/06ordem.html>. Acesso em: 15 dez. 2000.

[5] MURIEL, Christine Santini. Aspectos jurídicos das transfusões de sangue. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 706, p. 32, ago. 1994.

[6] BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Câmara, 6. Cível. Apelação Cível n. 595.000.373. Relator: Osvaldo Stefanello. Porto Alegre, 28 de março de 1995. Revista Jurídica, Porto Alegre. Disponível em: <http://www.jol.com.br>. Acesso em: 15 dez. 2000.

[7] LUDWIG, Artur Arnildo. Opor-se à transfusão de sangue ante iminente perigo de vida por motivos religiosos. Revista da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, n. 58, p. 299, jul. 1993.

[8] BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. 2. ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. 72-73.

Sílvia Mota a Poeta e Escritora do Amor e da Paz
Enviado por Sílvia Mota a Poeta e Escritora do Amor e da Paz em 21/10/2021
Código do texto: T7368217
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