Crimes violentos, terá que ser sempre assim? A Imprensa investiga, julga, condena precipitadamente? 2ª aPrte

O açodamento da polícia e do órgão da acusação, somado ao tratamento apelativo da imprensa, não têm nada de original. Contribuíram isso sim, para aumentar a desconfiança da sociedade na ordem jurídica e na Justiça, desta feita comprometendo os princípios básicos do Estado Democrático de Direito.

O indiscriminado uso, pela imprensa em geral, da imagem das pessoas é hoje uma rotina que acompanha, inclusive, o enorme desprezo gerado uniformemente contra o direito à própria imagem e à intimidade. É elementar que a proteção a tais prerrogativas é constitucional. Entretanto, o abuso na exposição das pessoas à coletividade alcança, agora, características horripilantes. Calha a manifestação do presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes, ao afirmar no dia 09/05/08, em Belo Horizonte, que a liberdade de imprensa deve conviver com a determinação da Constituição de que a honra e a privacidade são invioláveis. Disse: “É claro que a regra é a liberdade. Mas se não se deve violar o que é inviolável, cabe ao juiz também agir em certos casos”, afirmou, ao defender que o Judiciário proíba, até mesmo previamente, reportagens ou informações específicas. Complementou: “Os senhores se lembram dos fatos da chamada Escola Base. E daí, como que se repara o dano perpetrado contra essas pessoas? Se eles tivessem obtido uma liminar para impedir a divulgação dos dados, teria havido injustiça?” Por fim, asseverou: “A Constituição protege a intimidade, a honra e a dignidade das pessoas. E muitas vezes não se pode permitir a divulgação de fato eventualmente mentiroso por causar danos irreparáveis às pessoas”.

E a colocação de algemas nos acusados era necessária? Evidente que não, eis que não foram presos, ao contrário, se colocaram à disposição da Justiça, lembro ainda, da Justiça, e não da polícia, logo, qual a razão de algemá-los? Não se pode deslembrar que já se afirmou na jurisprudência da suprema corte que o emprego de algemas e o uso da força devem ser condicionados à necessidade da contenção do preso, tudo ligado, obviamente, às razões e circunstâncias da captura, mais periculosidade do aprisionado.

A par disso, os atos de aprisionamento devem ser acompanhados da discrição adequada, evitando-se a divulgação desordenada que pode levar a autoridade executora, mais tarde, a ser responsabilizada por danos morais e materiais, porque o suspeito de hoje pode ser o inocente de amanhã, mantendo, inclusive, o estado de inocência que constitui o cerne de toda a processualística penal brasileira.

Bem o disse, a seu tempo, Sérgio Marcos de Moraes Pitombo, acentuando cuidar-se de questão delicadíssima (“Emprego de Algemas, notas em prol de sua regulamentação”, Jornal do Advogado, outubro de 1984, página 09). Afirmava Pitombo: “Só se justifica o emprego de algemas e, portanto da força, no usar dos meios necessários para sujeitar o preso resistente, ou lhe fossem levadas avante”. Dizia mais, referindo-se a Antônio de Paula: “São pois criminosos todos os atos de violência desnecessários cometidos contra o preso que se submete à ordem de prisão, mesmo contra aquele que, havendo resistido, foi afinal submetido, e constituem requintes de desumanidade e covardia as agressões, os insultos, esbordoamento, as bofetadas praticados contra o preso que, afinal, se submeteu”.

A conduta dos executores autorizados a prender, mas não a execrar, é clara ofensa a repetidas decisões da suprema corte brasileira. Qual o risco que os acusados ofereciam a justificar as algemas? No fim de tudo, as advertências de toda a doutrina caem no vazio. As jurisprudências corretoras de excessos são deixadas ao léu. Apenas a título de exemplo, anote-se acórdão prolatado pelo Superior Tribunal de Justiça, 6ª Turma, com a seguinte ementa: “Penal. Réu. Uso de algemas. Avaliação da necessidade. A imposição do uso de algemas ao réu, por constituir afetação aos princípios de respeito à integridade física e moral do cidadão, deve ser aferida de modo cauteloso e diante de elementos concretos que demonstrem a periculosidade do acusado. Recurso provido. Por unanimidade deram provimento ao recurso (RHC 5.663/SP, Relator Ministro William Patterson, 6.ª Turma, J. 19/08/1996)”.

Diga-se, a bem da verdade: pior que o emprego dos ferros nos pulsos dos encarcerados é a obrigação, a eles impostas, de exibirem as faces à curiosidade cúpida da comunidade. Assim agindo, a polícia colaborou com a mídia para matar o casal antes da hora de serem mortos, e destruir os seus futuros, suas dignidades, suas famílias, suas possibilidades de defesa eficaz. Fazem tudo em nome da Justiça – mas que Justiça? Tudo antes do processo e da sentença condenatória transitada em julgado.

Aqui, é desimportante a existência de suspeitas contra os denunciados; se devem ser submetidos à prisão cautelar, que o sejam, mas não se pode deixar de velar para que os acusados tenham suas dignidades preservadas. Se não concordam, então que mudem as leis, mas enquanto não mudarem, que se submetam a elas. Se a autoridade age de forma diferente, permitindo a conseqüência deletéria, agiu mal. Se não previu o abuso cometido na execução, deveria tê-lo previsto. E se quis que o esquartejamento moral dos presos acontecesse, comportou-se de forma absolutamente desviada do regular exercício da jurisdição. Qualquer das três hipóteses merece avaliação a tempo certo.

Não posso concordar com a infeliz nota divulgada pelo delegado de polícia, responsável pela condução das investigações, quando alegou ser impossível conter os populares quando da prisão do casal e que apenas tentou ‘organizá-los’, bem como não ter sido possível conduzir os presos em viatura com película protetora dizendo que ‘preso é preso’.

Sr. Delegado, concordo com V. Sa. em gênero, número e grau, quando afirmou que ‘preso é preso’, numa clara alusão de que o casal não devia receber tratamento diferenciado, portanto, quando um policial, por qualquer motivo vir a ser preso, e fato assim acontece a todo momento, então vamos tratá-lo como todo e qualquer preso, expondo-o à execração pública, inclusive fazendo tábula rasa da legislação de regência e determinando que seja recolhido em cela com presos comuns e não em cela separada dos demais, pois como disse: ‘preso é preso’.

Você cidadão que o aplaudiu, quero vê-lo, se amanhã, for você o acusado, e tiver que sujeitar-se ao arbítrio, à exposição desnecessária, à humilhação de ser execrado em praça pública, enfim, quero ver a quem pedirá socorro diante de um linchamento moral desnecessário.

O que dizer do Promotor de Justiça, quando através da imprensa, pediu à opinião pública que o ajudasse a condenar o casal? Onde estamos? Com certeza num País, gigante adormecido, que por um grande estadista internacional anos pretéritos, nos rotulou de República de Bananas. Quando vamos ser um País sério? O julgamento compete ao Judiciário.

No caso presente a polícia, acusação e mídia proporcionaram e ainda proporcionam um grande espetáculo. Não é julgamento. A velocidade do mundo contemporâneo e das comunicações não nos permite esperar por julgamentos, decorrentes de juízos refletidos. Por vezes, queremos a sentença imediatamente, ainda que com informações preliminares. Somos instigados à pronta condenação do primeiro que seja apresentado como acusado, ainda que para a impunidade dos verdadeiros culpados.

Com a mídia, experimentamos a transparência nas instituições, indispensável. Mas ela é perigosa, quando possibilita as manifestações totalitárias, tal como a das maiorias enfurecidas que condenaram à morte o filósofo Sócrates, Jesus Cristo e, de forma antecipada o casal de ‘japoneis’ dono da Escola Base. Os atores do espetáculo não podem ignorar que as únicas penas previstas no ordenamento jurídico pátrio são: prisão simples, detenção e reclusão, e que as prisões em fragrante delito, temporária e preventiva, são cautelares, portanto, provisórias.

Não podem os atores, ignorar que a única hipótese de pena capital – pena de morte, prevista na Constituição Federal do Brasil se relaciona a crimes militares praticados em tempo de guerra. A pena de morte foi abolida para todos os crimes não-militares na Constituição Federal de 1988 (artigo 5º, inciso XLVII). Atualmente, é prevista para crimes militares, somente em tempos de guerra, no entanto, vale notar que o país não se engajou em um grande conflito armado desde a Segunda Guerra Mundial. É o único país de língua portuguesa que prevê a pena de morte na Constituição.

Não podem, ditos atores, alegarem ignorância de que não existe no ordenamento jurídico tupiniquim a pena de execração pública. Não só espero como tenho certeza, que a gloriosa polícia mineira, civil ou militar, a instituição secular do Ministério Público, bem como o Poder Judiciário das Alterosas, não irão mirar no péssimo exemplo que pudemos assistir pela mídia, condutas condenadas por toda comunidade jurídica nacional.

Monte Sião, 10/05/08.

Milton Biagioni Furquim

Juiz Direito

Milton Furquim
Enviado por Milton Furquim em 27/12/2021
Reeditado em 27/12/2021
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