A SÓCIA QUE VIROU EMPREGADA...

I- O Serviço

Dona Mirela tinha 64 anos de idade. Era viúva, sem pensão previdenciária e sem aposentadoria. Não conseguira, ao longo da caminhada, pagar uma única parcela sequer para o INSS.

Vivera durante bom tempo da costura, mas agora, nos albores do inverno da vida vivia tão somente de pequenos consertos que fazia em roupas usadas. Uma bainha aqui, uma emenda ali, um aperto acolá e conseguia, desta forma, tirar ao final do mês uma média de meio salário mínimo, deduzidas as despesas.

Trabalhava num pequeno cômodo abafado entre velhas máquinas de costura e panos que se espalhavam para todos os lados. Alguém cedera o lugar por um aluguel extremamente barato somente no intuito de ajudar. Parece difícil acreditar, mas ainda existem pessoas que ajudam ao semelhante movidas simplesmente pelo desejo de ajudar... A par dos constantes problemas de saúde que afetam estas profissionais, ia levando a vida. Fazia para pagar o aluguel, os pequenos encargos decorrentes do seu trabalho e ia sobrevivendo.

Certo dia apareceu uma sócia. Era bem mais jovem e se dizia cheia de talento na arte de costurar. Convenceu Dona Mirela a fazer uma sociedade no pequeno negócio. Dividiriam as despesas e rachariam o lucro quando desse e partiriam os prejuízos se surgissem.

Soraya - a sócia talentosa - era bem falante, olhar escorregadio que deslizava sorrateiramente qual o de uma cobra astuta observando tudo à sua volta, sempre pronta a dar o bote na hora propícia, principalmente nos clientes masculinos que chegavam e os transeuntes que passavam na calçada. Cedo, porém, a velha costureira percebeu a “fria” em que tinha se metido. Deu graças a Deus quando a sócia lhe fez a comunicação de que ia se casar e iria residir em outra cidade. Não podia mais manter a sociedade. E saiu para alívio de D. Mirela e de algumas vizinhas preocupadas com o futuro de seus respectivos maridos.

A rotina parecia ter voltado na vida da costureira. Ledo engano. Dois meses depois D. Mirela recebeu uma intimação da Justiça do Trabalho. Ficou sabendo que estava sendo processada em ação trabalhista pela ex-sócia. A talentosa operária convencera um advogado – desses de porta de Regionais do Ministério do Trabalho, mais ou menos com os de “porta de cadeia”- que trabalhara como empregada, ganhando um salário mensal sem, entretanto ter tido sua CTPS assinada, seu FGTS recolhido, etc. etc. Pedia até vale transporte já que morava a uns 100 metros do atelier.

II- A audiência:

Depoimentos Pessoais:

D. Mirela adentrou meio que “cabrera” na sala de audiências. Olhava para todos os lados porque na verdade, na verdade mesmo, mal sabia ela o que estava fazendo ali. Afinal, para ela, aquele ambiente era por demais suntuoso em comparação ao cômodo escuro e mal ventilado onde tentava ganhar seu pão remendando cuecas e outros vestuários, via de regra, mal cheirosos.

Seu estado piorou quando percebeu a pompa do Juiz e aquela arrogância tão característica da maioria dos togados, máxime quando são novos e, principalmente, da Justiça do Trabalho.

Contrastando com a empáfia que ali pululava, uma gentil escrevente com modos de uma dama do século XIX, dirigiu-se, primeiramente a D. Soraya:

- Por favor, sente-se aqui D.Soraya. Falou apontando para uma cadeira mais próxima. A talentosa, que se vestia muito bem, acomodou-se ajeitando a gola do vestido, talvez confeccionado por ela, especialmente para aquela ocasião.

-Qual o seu nome, perguntou.

- Soraya Gomes de Toledo

- Profissão?

- Costureira

- Onde a senhora mora?

- Rua 1º de Maio, 02

- E onde trabalha?

- Rua Aymorés, 101.

- Quantos anos?

- 46 anos.

- Muito obrigado D., Mirela. Pode voltar para o seu lugar, finalizou a escrevente.

O Meritíssimo, sem olhar para qualquer dos advogados - na verdade ignorando-os totalmente como soe acontecer, diuturnamente, na maioria destes recintos – olhando-a de cima em baixo perguntou:

- A senhora trabalhou para a Reclamada?

- Sim senhor.

- Tem na sua carteira de trabalho outros contratos?

- Ah! doutor, não tenho Carteira de Trabalho não.

- Mas era empregada dela?

- Sim senhor.

- Quanto a senhora recebia por mês?

- R$ 350,00

- Quem pagava a senhora?

- D. Mirela.

- Qual o período de trabalho?

-Há! Excelência. Trabalhava direto.

- O que é direto?

- Ah! Excelência, eu entrava as 7.30 e saia depois que fechava tudo. Lá pelas 7 horas da noite.

- Não fazia hora de almoço?

- Às vezes fazia 15 minutos.

-Saia para almoçar?

-Que nada. Almoçava, quando dava, ali mesmo, correndo.

- Recebia horas extras por isso?

- Nunca recebi nada.

- Férias?

- Nunca

- 13º?

- Nunca.

Dada a palavra ao advogado da D. Mirela este endereçou as seguintes questões ao Meritíssimo que as transmitiu à Reclamante.

- O que a senora fazia? Que tipo de costura?

- Consertos de um modo geral em roupas usadas. Às vezes novas também. Respondeu D. Soraya.

- Qual era o preço médio de cada conserto?

- Variava. Ia de R$ 2,00 a R$ 10,00 por conserto.

- Trabalhavam todos os dias, inclusive sábado?

- Não. Sábado não.

- E quantos consertos eram feitos, mais ou menos, por alto, na oficina? Emendou o advogado.

- Todo dia tinha serviço?

- Sim.

-Mas uma média, como exemplo. 5, 20, 100.

- Ah! Uns 30 consertos por semana.

O advogado pensou um pouco:

- Bom. 30 serviços por semana a R$ 10,00 da um total de R$ 150,00 por semana, logo, R$ 600,00 por mês. Quanto a senhora ganhava?

- Um salário mínimo.

- R$ 350,00 emendou o advogado.

-Sim. Respondeu D. Soraya.

- O cômodo era próprio ou D. Mirela pagava aluguel?

- Era alugado por R$ 350,00.

- Mais água, luz e telefone, quanto dava, mais ou menos?

- Deixa ver. 350 de aluguel, água, 10, luz 30 e telefone 60.

- Então a despesa era de R$ 450,00 por mês.

- Mais ou menos isso.

-E D. Mirela pegava também nos consertos?

- Sim. Pegava também.

- Mas ela, então, ela tomava prejuízo!

Nesta altura D. Soraya engasgou, olhou para seu advogado que desviou o olhar, ia responder, mas o Meritíssimo interrompeu quase gritando com o advogado de D. Mirela:

- Doutor! Tenha a paciência mas esta pergunta não tem nada a ver com o que se quer provar aqui, portanto indefiro!

Ai a coisa já começava a se delinear... As perspectivas de provar o óbvio começaram a diminuir.

Em seguida dirigiu-se à Reclamada, D. Mirela:

- A Reclamante trabalhou para a senhora?

- Trabalhou comigo, respondeu D. Mirela

- Não era sua empregada?

- Não. A gente era sócia.

- Quanto a senhora pagava a ela por mês

- Não pagava por mês, respondeu D. Mirela.

- E pagava como?

- Ela recebia o dela e eu o meu.

- O que ela fazia?

- Costurava.

- E senhora, o que fazia?

-Costurava, também.

- E quanto ela recebia?

- Ela é mais nova. Trabalhava mais. Houve mês que tirou R$ 300,00.

- Quanto entrava bruto mensalmente na oficina?

- Mais ou mesmo uma media de R$ 800,00 a R$ 900,00

- E líquido?

-Mais ou menos R$ 450,00

- A senhora tirava quanto?

- O mais que tirei foi R$ 150,00.

- Onde fica a oficina da senhora?

- Rua N.S. da Penha.

- A senhora mora lá também?

- Não senhor. Moro da Rua da Bacia, no alto do morro. Perto da torre de TV.

O advogado de D. Soraya não quis fazer nenhuma pergunta.

- Tem testemunhas? - Voltou o MM. a perguntar.

- Sim senhor. Tenho duas.

Inquirição das Testemunhas

Testemunha da Reclamada:

- A senhora conhece D. Mirela?

- Sim.

- Conhece de onde?

- Eu moro em frente. Ela sempre costura para mim.

- A senhora vai sempre lá?

- Sempre que tenho serviço para ela fazer.

- E quando não tem? Vai lá também?

- Às vezes.

- A senhora conhece D. Soraya?

- Conheço sim.

- De onde?

- Ela costura também.

- Sabe se ela é empregada de D. Mirela?:

-Acho que são sócias.

- Acha? Por quê?

- Por que cada uma cobra o preço que quer e cada uma chega à hora que quer.

- Ela já costurou para a senhora?

- Já sim. Uma vez, mas eu passei para D. Mirela porque ela cobra mais barato.

- Como cobra mais barato? Cada uma cobra um preço?

- Sim. Cada uma cobra um preço.

- E como a senhora sabe que D. Soraya cobra mais caro?

- Porque uma vez ela fez um conserto para mim em uma blusa vermelha e me cobrou R$ 7.00. Depois outra blusa para fazer o mesmo serviço D. Mirela me cobrou R$ 5,00. Teve uma vez também que ela me cobrou R$ 8,00 para fazer um serviço numa saia preta e branca e eu dei para D. Mirela que cobrou R$ 5,00.

- A senhora á amiga da Reclamada?

- Amiga, amiga, não.

- Mas, não freqüenta sempre a casa dela?

- Não. Não freqüento a casa dela não senhor.

O Juiz, meio irritado pergunta em tom agressivo:

- Mas a senhora não disse que freqüenta a casa dela!?

- Não, Dr. O Senhor está confundindo tudo.

- Como confundindo!? E pede a escrivã para ler o que ela havia dito no inicio.

“- A senhora conhece D. Mirela?

- Sim.

- Conhece de onde?

- Eu moro perto dela. Ela sempre costura para mim.

- A senhora vai sempre lá?

- Sempre que tenho serviço para ela fazer.” Leu a graciosa escrivã.

-E ai? A senhora sabe que está sob juramento e pode sair daqui presa por mentir para o juiz?

- Olha Dr. Eu tenho 65 anos de idade e não sou mulher de mentir não. Eu só sei que o senhor está fazendo uma confusão danada, porque eu não sei onde ela mora. Sei onde ela trabalha, que é perto de onde eu moro.

Houve um silencio meio que sepulcral, mas o Meritíssimo não perdeu a pose e sapecou:

- Não existe confusão nenhuma. Eu sei o que estou perguntando.

E encerrou-se aquele diálogo e a instrução do feito.

Na verdade, desde o inicio da audiência o MM. Juiz estava confundindo o local de trabalho de D. Mirela com a sua residência no alto do morro. Mas como ele não aceitava interferência de nenhum advogado em suas audiências, e não digeriu sua falha apontada por uma idosa sem instrução que só queria falar a verdade, não voltou atrás.

IV- Sentença:

A Reclamante não havia arrolado nenhuma testemunha ficando, assim, tão somente a palavra dela contra a da Reclamada e da testemunha que ousara gritar com o meritíssimo. Ela a dizer que trabalhara como empregada e esta e sua testemunha a afirmarem que existia uma sociedade.

Depois de algum tempo o Meritíssimo lasca a sentença: “... Não restou provado que a reclamante fazia horas extras (...) Não restou provado, também, que restaram verbas indenizatórias a serem pagas...”“ Condeno a reclamante a pagar à Reclamada a importância de R$ 3.000,00 devidamente corrigida, mais os juros de praxe, FGTS, seguro desemprego, tudo a ser apurado em liquidação de sentença. Só não ficou provado como é que alguém pode ser patrão e ganhar R$ 150,00 mensais e pagar à sua "empregada" R$ 350,00!

D. Mirela não pode recorrer porque na Justiça do Trabalho mesmo você estando amparada pela Assistência Judiciária constante da Constituição Federal, é obrigado a efetuar o depósito da verba referente à condenação. Como ela não tinha, teve que se conformar com a sentença.

– Se eu tivesse o dinheiro para depositar pagava a ela disse ao final.

O advogado pensou com seus botões: Duas pobres coitadas. Uma não tem onde cair morta e a outra se cair morta não tem lugar certo para cair.

O valoroso advogado e a triunfante costureira talentosa correram atrás do dinheiro, executaram a sentença. Só que depois do Oficial de justiça ter vasculhado todos os cartórios, todos os Detrans, de todos os lugares da face da terra e nada ter encontrado – nem dívidas – a processo dorme no cartório a espera que um dia – quem sabe- D. Mirela acerta na loteria.

Juiz trabalhista é assim – alguns, diga-se – “que nem argentino”: Perde o jogo, mas não perde a arrogância.

Por isso eu sempre digo aos meus clientes: - Jamais contrariem alguns Juízes, jamais!

Nelson de Medeiros
Enviado por Nelson de Medeiros em 06/05/2008
Reeditado em 06/05/2008
Código do texto: T978042
Copyright © 2008. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.