A VINGANÇA DE ENANIAS VIEIRA - O NORDESTE AINDA HOJE CONTA A HISTÓRIA MAIS VIOLENTA ESCRITA POR UM JUSTICEIRO. A BALA ESCREVEU SEU NOME POR CONTA DE UMA VINGANÇA SANGRENTA
 
HOMENS SECOS PARTE III
O RETORNO
A VINGANÇA DE ENANIAS VIEIRA
 
     Naqueles dias corria o ano de 1942.
     A casa era grande e toda alpendrada, fora construída na parte mais baixa do terreno, numa planície. Ao seu redor, crescia um grande número de árvores frutíferas de diversas espécies. Passando em frente ao terreiro estava à estrada coberta por uma extensa camada de ervas daninhas devido ao longo período sem uso; a gitirana avançava adentrando no alpendre e trepando por várias partes das paredes e nas vigas de sustentação do teto. Parte do telhado ruíra até o chão, portas e janelas estavam podres, quebradas e deixando a ação do tempo lhes corroer. Por trás da vivenda passava o rio, que com as suas águas cristalinas parecia imutável no decorrer dos anos; mesmo hoje, podem ser vistos cardumes de peixes a nadar sossegadamente no fundo, através do espelho d’água.
Debaixo de uma grande ingazeira: pequena cruz tosca, num total de quatro tomadas de musgos, pôde ser vistas, fincadas no chão, pelo solitário visitante; estas completavam o quadro de abandono e desolação em que estavam aquelas terras.
     Foi há vinte anos e as pessoas diziam ser possível, ainda hoje, ouvir os sons dos tiros, os gritos de terror e as lamentações dos antigos moradores reclamando por Justiça. Viajantes evitavam aquele cantinho e desinformados que ali passavam, contavam histórias assombrosas, aumentando cada vez mais o estado de desprezo daquele rincão. O silêncio reinante nesse ambiente só era cortado pelo cantar dos pássaros e a respiração ofegante do desconhecido personagem. Ele tinha o olhar triste, longe, perdido, buscando alguma coisa; acariciou a crina de sua montaria enquanto seus olhos ladeavam de canto a outro, a velha casa, o alpendre, o terreiro, as cruzes ...
     "Mariana, preciso ir à cidade, o inverno está em cima e as nossas provisões estão no fim. Precisamos nos preparar para esta tem¬porada",
Enquanto falava, o homem dirigiu seu olhar pela janela, divisando grande parte das terras que seriam plantadas novamente. A mulher ou¬viu as palavras e concordou com um gesto afirmativo. Naquele ínterim, uma cachopa de seus dezesseis anos adentrou na sala.
     "Pai, me deixe ir com o Senhor. Estou precisando comprar algumas coisas pra mim".
     "Claro, minha filha. Teu irmão foi pegar o cavalo, logo que ele chegar da manga, nós iremos".
     O breve silêncio fui cortado pelo tropel do cavalo que se aproximava seguido de outros. O jovem cavaleiro pulou no chão defronte a casa e correu apressado para dentro; a palidez vinha estampada em seu rosto, logo atrás alguns outros o perseguiam, o mais adiantado de rifle empunhado levou-o ao ombro efetuando um disparo no instante exato em que o mancebo em¬purrava a porta gritando por ajuda, a bala atingiu - lhe no meio das costas impulsionando-o para frente, enquanto novos tiros eram dados.
     “Meu filho, cuidado”.
     Gritou a mulher ficando de pé e abraçando-o para caírem trespassa¬dos pelos projéteis. O fazendeiro no seu estupor diante da cena, não saiu de si até ser colhido por um disparo em pleno peito que o fez desandar; vários outros o jogaram de encontro à parede, onde este de olhos esbu¬galhados escorregou lentamente ficando sentado em uma poça do pró¬prio sangue, vidrado na esposa e no filho.
Quando ouviu o primeiro disparo, a rapariga saiu correndo por uma porta dos fundos da casa em direção ao rio; já alcançava a canoa, quando um dos atacantes arrodeou a vivenda e disparou sobre ela.
     Na copa de uma mangueira, talvez a árvore mais velha entre as que se espalhavam em volta da casa; o único sobrevivente daquele massa¬cre acompanhava o morticínio cruel dos seus entes, no mais completo silêncio. Lágrimas afloravam por sua face, enquanto ele, mais e mais fazia força agarrado ao galho da sombrosa fruteira.
     Um matador entrou na casa e logo saiu; depois de breve diálogo com o líder do grupo, todos partiram dali.
     O pequeno salvara-se por acaso, tinha subido cá para buscar um ninho de galo das campinas, foi quando tudo começou; neste local permaneceu até o fim da invasão. Assim que os invasores partiram, desceu apressado, correu feito loco, trazendo o gosto amargo na boca. Palavras não existiam. A pequena distância entre ele e a casa parecia infindável. Seu coração batia acelerado, uma enorme confusão se formava em sua mente; correu, caiu, levantou, correu, quando alcançou a casa! Tinha a respiração ofegante, a cabeça doía e girava, adentrou a tempo de ver seu pai sem morto ergue a mão para ele; de lado sua mãe e seu irmão entrelaçados num abraço mortal. Quis ir a ela, mas devido a sua morbidez. Correu ajoelhando-se junto ao pai. Tentou falar, porém não tinha voz ela sumira em sua garganta, abraçou seu genitor e este num esforço sobre-humano acariciou seus cabelos. O olhar do homem penetrava no do garoto, nesse transe, conversaram calados por um curto instante, até a vida escapar daquele ser em função dos ferimentos sofridos: sua mão foi pendendo lentamente e tocou o chão onde ficou inerte. A respiração do pequeno era dificultosa, cansada, deitando seu velho sobre o colo en¬quanto fechava-lhe os olhos, passava as costas da mão no próprio rosto afastando a torrente de lágrimas.
     Estava só, todo o seu mundo caíra de uma única vez, era muito para carregar sozinho. Com o passar das horas chegou alguém e aí mais gente foi chegando; retIraram-no dali, foi levado à fazenda vizinha, de onde dias depois fugiu, para no mundo solto na vida, tornar-se homem com con¬dições de cobra uma dívida de sangue.
     Apeou o cavalo, e num gesto lento andou em direção as ruínas do casarão. Uma brisa soprava tocando seu rosto, enquanto imagens de um tempo perdido fervilhavam na sua cabeça. Entrou: mãos invisíveis pareci¬am puxá-lo, vozes misturadas, risos e ali estavam eles conversando ani¬madamente reunidos em volta da mesa, fechou os olhos, passou a mão na face e as imagens sumiram assim como vieram. Uma lágrima insistiu em rolar, enxugou-a, deixando o ódio, a revolta que há muito guardava dentro de si vir à tona, era chegada a hora da vingança, e o ponto de partida tinha que ser ali mesmo, a casa de seus pais, palco de um massacre presenciado por ele há vinte anos. Saiu, montou seu cavalo e partiu com a Serra Grande, cento e trinta léguas distante dali; onde as raízes de tantas mortes de fato começaram, guardava bem na lembrança a his¬tória contada por sua mãe, quando tinha a idade de oito anos.
     Era noite de forró nas terras de Oziel Severino e toda a gente da região dirigia-se para lá; a dita estava animada e o povo dançava tran-qüilo quando surgiu um bate-boca entre Francisco Severino, irmão de Oziel, e outro elemento de nome desconhecido que ali veio brincar a noite toda. Este último estava bêbado, por uma banalidade surgiu à dis¬cussão. Francisco Severino sacou sua faca e partiu para cima do ébrio, foi segurado e contido por seu amigo de longas datas: João Vieira. Sere¬nados os ânimos, o bêbado foi embora e a festa continuou altiva; desta feita foi Francisco Severino quem se embriagou indo tomar satisfações com o Vieira, que a todo custo evitava o vozerio, inconformado, Fran¬cisco sacou de novo a faca e botou se para cima do amigo, que foi esqui¬vando-se dos golpes jogados contra ele, quando sentiu estar encurralado e não podendo evitar o desfecho, sacou sua pistola e disparou no atacan¬te, foi um só tiro, mas que ceifou a vida de Francisco Severino. Em questão de segundos a parentada toda se reuniu apenas por milagre João Vieira escapou com vida da chuva de balas disparadas contra ele. “Fugiu dali, passando em casa, juntou os trapos numa carroça e levou a todos para as novas terras onde agora estavam morando”.
     Fixaram-se, compraram terras e construíram uma nova vida. A agri-cultura era a fonte de rendas dos Vieiras, assim, viveram em suas incan¬sáveis labutas durante o período de quatro anos, quando um dia, localizados por seus inimigos, o pequeno viu sua gente tombar morta por tiros assassinos.
     ...
     Cavalgou dias e noites, a vida lhe ensinou ludo que precisa¬va, era agora homem com idade e condições de cobrar sua vingança; certamente alguns dos Severinos já poderia ter batido com a caçoleta, todavia! Os remanescentes teriam que se ver com ele.
     Uma semana depois chegava ao final da jornada. Lá estava Ser-ra Grande, às vistas, logo à frente, esporeou o cavalo adentrando a galope no lugarejo, bastante modificado pelo tempo: passava do meio dia. Parou embaixo de um juazeiro bem defronte à capela local, úni¬ca construção que parecia manter o aspecto da sua memória de menino. Amarrou o animal, localizou um boteco aberto e para lá cami¬nhou. Além do botequineiro havia outro homem dentro do recinto. Foi direto ao balcão.
     - Me bota uma branquinha aí amigo! E me traga algo para comer estou com muita fome.
     O vendeiro lhe mediu de alto a baixo.
     - Aguarde um pouco e já será servido - respondeu apontando uma mesa vazia ao lado.

 
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Wanderley Marques