o melhor carnaval de nossas vidas

Os confetes caíam do céu, brilhavam como estrelas. Sabíamos de imortais poetas, de igrejas, de solos e tintas. A chuva era só água suspensa de sempre e não o entretítulo caótico que depois brotou das nuvens estanho. Eu era jovem demais e você desenhava tanta coisa boa no ar e as coisas ficavam lá grudadas no ar, como se o ar fosse uma lousa mágica gigantesca. Eu me lembro, ainda consigo lembrar com esse nó duro na garganta que contávamos os dias para chegar logo outro carnaval. Hoje não conto mais. Anuviou. Cresceu o nível de sangue coagulado nas veias. Fui perdendo a vontade de fazer fotografias. Fui odiando os agendamentos da memória depois que você se foi. Agora, só queria mesmo tomar um café enquanto escrevo deste quarto de hotel barato em Minas, lugar onde só ouço o ranger das tábuas e o cerrar dos dentes quando algum outro hóspede roda a chave na alambrada enferrujada. Já não há cortes, nada se abre ou se fecha e eu sei que você já nem se lembra mais. Daquilo.

Mas voltemeia eu caio nesse carnaval, o que foi o mais feliz de nossas vidas. Sei também que você ainda deve guardar um pouco da inocência, daquele que foi o melhor carnaval de todos. E se um dia eu vir você na rua, balançando as suas mãos com outras, sei que haverá um sorriso de quem espera e ainda acredita num outro carnaval feliz. Eu nunca mais tive coragem de andar de mãos dadas, medo que as mãos se acostumem a falar com outras mãos e misturem outros suores, outras lembranças. Outro carnaval?

Não sei ainda se revelo o filme com as parcas fotos deste carnaval que tirei aqui da janela – em todas há o mesmo recorte - ou se o deixo exposto ao sol para que deteriore pigmento por pigmento de luz. A luz, aquela que tenho visto em sonho, aquela luz submersa no mar dos meus sonhos como um holograma. Ela aparece bem em frente à minha janela. Numa visão onírica, um grosso caldo azul escorre e depois enche até a borda da minha sacada. A casa não é a minha, não essa onde hoje habito. É também, uma casa de sonho. Janelas largas, abas de madeira, muitas plantas e um pôr-do-sol salutar.

Quando a maré sobe, parece que vai engolir toda a paisagem em volta, mas estranhamente não mete medo. Acho essa visão do mar um presságio, um outro lado da vida, abundante e fértil, um outro motor fora de mim, sem rédeas. Eu só o observo indo e vindo e uma hora, ele foi. O mar do sonho um dia passou, aquela visão do mar e, num estalo de acordar de manhã cedo, eu também passei, e anos se passaram dentro dos meus ossos frágeis. E essa busca angustiosa, que era primeiro uma tísica satisfação que dava um gosto meio amargo ao dia, foi minguando e sumindo e desbotando até que desapareceram todos os vestígios dela e meus olhos foram reacendendo como um farol queimando no meio do mar. E desde então, um fino esforço de recomeçar delineia os esboços do meu novo eu, que aqui da varanda, cavalete armado há meses com uma pintura a óleo por terminar, mira as estrelas grandes e vermelhas do céu de hoje, protuberâncias no espaço marinho, tão próximas de mim que parecem até confetes...

Jan Morais
Enviado por Jan Morais em 27/11/2006
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