A HIPOCRISIA DA FESTA DE ANIVERSÁRIO

A meiga Isabel, com os olhos cheios de lágrimas, não mais resistindo aos terríveis sofrimentos, gritou: Basta, seus monstros!...

Houve um princípio de tumulto na sala, diante da inusitada reação da criança, porque os adultos não compreendiam o motivo.

Isabel sabia que a situação atingira o clímax, e tão amedrontada estava que os olhinhos estampavam um ar de inocente pavor.

Positivamente, tudo começara naquela manhã que se encurtara para a menina, devido ao alarido das pessoas, no afã de arrumar

O ambiente para a festa, perturbando a alegre disposição que ela dera aos próprios brinquedinhos, que com tanto amor guardara.

Cachorrinhos de sua estimada coleção, bonecas,os belos sapatinhos e até as fivelinhas da Hello Kitty foram jogados em gavetas.

Revistinhas da Mônica, Magali e do Cascão a até mesmo do Cebolinha foram retirados de seus lugares e guardados em caixas.

Isabel sabia que a tirania de pessoas inseguras é capaz de qualquer maldade, para satisfazer sua triste necessidade de promoção.

Sabia ainda que, na busca de prazeres, os adultos até cometem barbaridades, e as crianças são eternas vítimas de tanta vaidade.

Idiossincrasias à parte, a garota assistia ao alvoroço, que, à medida que as horas avançavam, assumia proporções catastróficas.

A mãe agora gritava com todos, exigindo que tudo ficasse exatamente de acordo com o artificialismo de seus próprios planos.

Dizia às auxiliares para tirar as horríveis manchas da parede, como se aquela linda casinha merecesse o deprimente qualificativo.

A medida que o tempo corria, a situação somente piorava, e agora exigiam que ela engolisse a comida, para poder tomar banho.

Finalmente, chegou a hora tão temida pela criança, que ainda se lembrava da mesma chatice do ano anterior, de triste memória.

E tal qual um condenado conduzido pelo verdugo ao cadafalso, atingira o centro da sala, em meio a tétricos sorrisos de bocas

Sempre cheias de empadas e hálitos quentes de álcool, para dar início ao repetitivo espetáculo do maçante parabéns para você.

Tias gordas a saudavam, matronas sorridentes e sempre a mastigar, para vingar-se dos dissabores que a vida lhes repassara .

Aquelas senhoras, entre um sanduíche e um pastelzinho, vangloriavam-se dos cuidados que dispensavam aos filhos e netos.

Debalde, falavam mal de babás e,sobretudo aos íntimos,evidenciavam a decrepitude dos exemplares de paquidermes presentes,

E criticavam umas às outras, malgrado os grandes abraços com que se cumprimentavam, num ambiente de inebriante falsidade.

A aflição da menina continuava, pois gostaria de brincar no chão junto às outras crianças, que simplesmente ignoravam a festa.

Não podia se juntar a elas, porque o vestido novo que lhe apertava o pescoço tinha que ser preservado até o próximo aniversário.

Infelizmente, já estava marcada para o domingo seguinte a festa de uma prima, e, conforme ameaça dos tios, seria monumental.

Verdadeiramente,Isabel sabia da ânsia que têm os homens de manter permanente competição com seus pares... daí as guerras.

E ardorosa batalha vinha sendo travada pelos adultos, selvagens e irracionais, pela cerveja que sorviam em generosas rodadas.

Repetiam os copos na tentativa de afogar as amarguras, em vigorosos goles, e, à medida que lhes subia a pressão sanguínea,

Sentiam-se envaidecidos,aproveitando para exaltar as posses,as conquistas, a posição social, enfim, a falsa impressão de sucesso.

Aproveitando-se de um descuido, Isabel juntara-se às outras criaturinhas, enlevada por sorrisos sinceros e olhares felizes,quando

Requisitaram-na para a cerimônia, pois chegara a hora trágica, sendo violentada em sua liberdade para cumprir o solene ritual.

Infelizes também estavam as matronas comedeiras, roedores, predadores e os ébrios, que, entre sorrisos insinceros, lamentavam.

O triste final que se prenunciava irrompeu quando Isabel não teve forças para apagar as velas, explodindo em copiosas lágrimas.

João Augusto Maia Gaspar

Em 09.04.2006

jaugustogaspar
Enviado por jaugustogaspar em 24/07/2011
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