Se não fosse a mentira

A todo escritor é necessário ser um bom contador de mentiras. Da mentira, que os intelectuais chamam de ficção, surgem as mais belas, feias, românticas e odiosas narrativas. Que seria, meu Deus, da poesia se o poeta não fosse um fingidor? E que seria dos contos e fábulas, com seus animais fantásticos imitando os homens, num mundo imaginário e maravilhosamente mentiroso? E o folclore? Para onde iriam o saci, o boitatá, a caipora, a mula sem cabeça? E as memórias de Brás Cubas, um homem depois de morto contando a história de sua vida, vejam só, pura mentira, loucura das mais insanas! Para onde iria o teatro e os atores fingindo vivenciar situações diante de uma plateia que, mesmo sabendo de toda a enganação, aplaude de pé o espetáculo? O que faríamos com as artes, desde os rupestres até os gregos, dos gregos à Tarsila do Amaral, se não fosse a mentira? O quadro que falseia a paisagem, a escultura do corpo que finge ser corpo real e se vangloria disso. As performances, vozes e instrumentos, que tomam da natureza os mais diversos sons para que se possa reproduzir melodias artificialmente belas. Qual seria o rumo da própria vida humana, do indivíduo que, ao acordar todos os dias, mente para si mesmo que a morte está distante? Basta um semáforo quebrado, um motorista desatento, um infarto fulminante, uma briga de bar, um buraco na rua… Basta nada mais do que a própria vida, no seu curso natural, para saudar a morte e expor a mentira da confiança. O que seria de nós, se não fosse a mentira? Seríamos verdadeiramente infelizes.