Da nau à senzala: uma leitura dos poemas “O navio negreiro” e “A canção do africano”, de Castro Alves


O navio negreiro
 

No dia 7 de setembro de 1868, no anfiteatro da faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em São Paulo, Castro Alves declamou seu poema “O navio negreiro”, arrebatando o público e conquistando a cidade.

“O navio negreiro” é considerado um poema épico-dramático. Em seu subtítulo lemos: “Tragédia no mar”. Segundo Aristóteles, “a tragédia é a imitação de uma ação importante e completa, [...] que, suscitando a compaixão e o terror, tem por efeito obter a purgação dessas emoções” (ARISTÓTELES, 2007, p. 35). O Vate nos mostra uma  realidade terrível, o tráfico de escravos da África para o Brasil, despertando em seu leitor/ouvinte sentimentos de comiseração e revolta. Contudo, diferentemente do que ocorre numa tragédia teatral, em que atores interpretam personagens e se comunicam, dando progressão à estória, o poema de Castro Alves não é marcado por diálogos. Há apenas uma voz que nos apresenta o espaço e o tempo. Mas essa voz não possui o total conhecimento do que vê. Precisa de outros olhos que lhe ajudem a enxergar mais profundamente. Para isso, o poeta recorre aos olhos do albatroz, da ave do oceano, e também aos “olhos” da Musa, da Poesia que lhe permite o descarregar de suas emoções. Constantemente, o poeta utiliza as 2 apóstrofes (no conceito literário) ou os vocativos (no conceito linguístico).

Assim, não é uma voz que fala só para si, mas possui o intento de atingir o outro, no caso, nós, leitores. Em sua voz, também, subtende-se a voz clamante do outro escravo. Dessa forma, o poeta é o porta-voz dos cativos. O herói desse épico não possui as láureas de louro das grandes epopeias da antiguidade. Não são semideuses com poderes fabulosos. São homens de carne e osso, mais osso que carne. Homens considerados animais, pior, coisas, mercadorias, privados de sua liberdade para se tornarem prisioneiros. São homens que perdem o seu estado de sujeito para se tornarem objetos. Apesar de seu caráter épico e dramático, não se pode esquecer de seu teor emotivo, sensível, lírico. Alfredo Bosi afirma que “O navio negreiro” “Transforma o ferro em pluma, o antilírico em lírico e o lírico em épico.” (BOSI, 2011, p. 125).

O poema é divido em seis partes. Cada uma possui um foco poético e uma construção estética específica, de acordo com a emoção que o poeta deseja transmitir. Apesar de “O navio negreiro” ser conhecido, precipuamente, pelo seu tom dramático e sensível, não se pode esquecer  que é um poema, e como tal possui toda uma construção estética. Castro Alves preocupou-se, não apenas com sua denúncia, mas também com a forma de transmitir essa denúncia. Por isso, é importante destacar o tipo de estrofe, verso, rima, intertexto, figuras de linguagem utilizados pelo poeta em seu texto. A compreensão formal do poema contribuirá para o entendimento do conteúdo.
 
A canção do africano

Em 17 de maio de 1863, Castro Alves publica o poema “A canção do africano” no primeiro número do caderno acadêmico A Primavera. Contava o poeta com apenas 16 anos. Esse poema foi considerado o primeiro de cunho abolicionista do poeta. Nele, lemos a imagem nostálgica, acarretada pelo distanciamento da terra natal, e a condição do negro na África, livre; e no Brasil, cativo.

Quanto à estrutura rítmica, todos os versos são heptassílabos, em redondilhas maiores; e as rimas emparelhadas e interpoladas, seguindo o esquema: aabccb.

O poema é composto de nove estrofes, sendo a primeira, segunda, sétima, oitava e nona composta de seis versos (sextetos); e a terceira, quarta, quinta e sexta composta de quatro versos (quartetos). Ao optar por essa divisão estrófica, o poeta também deixa explícita a divisão de vozes no poema. Nos sextetos, temos uma voz lírica que assume a postura de um observador, o qual apresenta o cenário e descreve as cenas. Nos quartetos, a voz lírica é de um escravo, o qual canta as saudades de sua terra.

Essa estrutura é significativa no poema, pois o eu lírico que inicia e termina o poema abre espaço para que o negro marginalizado saia da sua condição de objeto, tornando-se um sujeito, através do seu canto, isto é, através da palavra. Segundo Ivana Rebello, o “artifício de construir um canto dentro de outro canto permite visualizar uma operação transgressora, que insere para dentro do texto e para dentro da literatura uma fala até então segregada.” (REBELLO, 2010, p. 25).

A primeira ideia quando se lê o título do poema “Canção do africano” é um diálogo intertextual com “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias. Tal ideia se confirmará na terceira estrofe, quando o escravo entoa: “Minha terra é lá bem longe,/ Das bandas de onde o sol vem;/ Esta terra é mais bonita,/ Mas à outra eu quero bem!”. Logo, o poema de Castro Alves deve ser lido em paralelo com o poema de Gonçalves Dias.

Seguindo a mesma estrutura de “Canção do exílio”, o poeta dos escravos aproxima o seu texto do poema de Dias, imitando-o em sua composição. Vê-se um espelhamento na forma de escrever, logo, um pastiche. Afrânio Coutinho, em seus estudos acerca do Poeta dos Escravos percebeu que “a obra de adolescência de Castro Alves está riscada de pastichos.” (COUTINHO, 2004, p. 213).

Entretanto, a apropriação estilística de Castro Alves não é ingênua, pelo contrário. Ele faz uma alusão à “Canção do Exílio” no título e na forma para mostrar uma inversão de seu conteúdo idealizador da terra brasileira. Assim, o que o poeta faz é uma paródia do texto de Dias. Segundo Affonso Romano de Sant’Anna,
 

o que o texto parodístico faz é exatamente uma re-apresentação daquilo que havia sido recalcado. Uma nova e diferente maneira de ler o convencional. É um processo de liberação do discurso. É uma tomada de consciência crítica. (SANT’ANNA, 1999, p. 31).

 
Tanto no poema de Gonçalves Dias, quanto no poema de Castro Alves, temos um eu lírico que sente saudade de sua terra. Porém, o Brasil, idealizado em “minha terra tem palmeiras/ onde canta o sabiá”, de “Canção do Exílio”; será ironizado em “A gente lá não se vende/ Como aqui, só por dinheiro”.

Grande expoente da geração condoreira brasileira, Castro Alves mostra em sua poesia o “retoricismo de orador político”. Sua poética, em “O navio negreiro” e “A canção do africano”, mostra drama dos negros na travessia da África às terras brasileiras. Da nau à senzala, o leitor se depara com cenas tristes, cruéis, de sofrimento e de medo. Sua escrita do clamor torna seus poemas em verdadeiros dramas trágicos de um painel histórico.

Em “O navio negreiro”, as descrições dos martírios dos negros tomam relevo. O paradoxo das primeiras partes com as seguintes retrata como que, por trás das aparências, se esconde a verdadeira essência. Um país como o Brasil, cujo tráfico negreiro já havia sido proibido, continuava a se macular tais horrores. A escravidão foi uma mancha na história brasileira que ainda hoje é difícil de ser apagada. O racismo, enraizado desde esses tempos, continua vivo. E será preciso muitas lutas, muitas vozes, como a de Castro Alves, para erradicá-lo definitivamente da mentalidade humana.

Em “Canção do africano”, a palavra dada ao negro o coloca na condição de agente. O escravo tem sentimentos, não é um mero objeto, mas, sim, um sujeito de sensibilidades. Arrancado de sua terra, como homem livre, vem às terras estrangeiras para se tornar escravo. Não há como amar esta “nação prisão”. O medo da mãe que já conhece o destino do filho faz com que ela o segure firme para, nesse abraço, sentir o máximo possível do calor de seu rebento. A canção do exílio do negro não é a das palmeiras nem dos sabiás. Sua canção é a saudade da liberdade. 


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