Prefácio do Livro "Fragmentos do Ciclo dos Símios" de Larissa Marques

“Não era tanto pelo fato de mentir, mas porque não havia verdades a dizer.” (Ernest Hemingway, As Neves do Kilimanjaro)

Carlos não matou o espadarte gigantesco. Carlos não escalou o Kilimanjaro. Não dançou salsa em Cuba nem fez os sinos se dobrarem. Carlos não é Ernest Hemingway.

Mas Carlos e Hemingway têm algo em comum: ambos são símios. À revelia da Santa Sé, despudoradamente, ainda que em derredor de qualquer esfera científica que engendre a vã empreitada de atraí-los aos limites do círculo. Hemingway e Carlos não podem ser encarcerados na redoma de vidro, à mercê dos olhos imóveis, perscrutadores, dos PhD de plantão e seus óculos e seus alvíssimos jalecos. Há volume demais, volume etéreo, diáfano, contraditório como a existência. É impossível escrutar a existência, substância amorfa, indócil, em constante motim. Fragmentá-la, como nos mostra a narradora-personagem de “Fragmentos do Ciclo dos Símios”, é tarefa exequível, desde que se tenha a coragem, o desprendimento, a paixão necessária ao mergulho nas águas turvas, por vezes gélidas, por vezes escaldantes, de outra existência, a aceitação do amálgama enquanto concomitante meio e fim, inevitável e inescapável, da porção humana que nos habita a nós, os símios.

Por meio de uma linguagem de cunho intimista, com forte imagética lírica, Larissa Marques apresenta ao leitor pequenas histórias, fragmentos do cotidiano de um casal que nada tem de normal, a julgar a definição de “casal normal” como aquele que respeita o ciclo “dormir-todo-dia-juntos-na-mesma-cama-dar-beijo-de-bom-dia-levar-

café-na-cama-mandar-flores-no-dia-dos-namorados-pagar-contas-do-mês-jantar-fora-dar-presentes-no-aniversário-de-casamento-comprar-casa-carro-fazer-filhos-multiplicar-e-encher-a-terra-etcetera-e-tal.” Não, eles não se atêm a lugares tão comuns. A relação de ambos demanda aniquilamento e transcendência, necessidade e repulsa, sadismo e masoquismo. Também o verbo. Desprovida de perspectivas, sem expectativas quanto ao amanhã, a narradora escreve. Os capítulos são tão implacáveis quanto o tempo, sôfrego, que devora o ânimo, os sonhos, a vida, o romance. Não há escapatória, a luz no fim do túnel não existe porque o túnel é hermético, como a garagem de Moebius. A nós, símios que pensam, que escolhem e que pensam que escolhem, nos resta ingressar no túnel, impregnarmo-nos de breu e tentar descobrir a saída inexistente.

Carlos Cruz