Do texto "O ente e a essência" de Tomás de Aquino.

Nesse opúsculo Tomás de Aquino trata da questão ontológica da relação entre o ente e a essência, como se dá tal participação e suas causas. Para realizar tal análise, é preciso mostrar quais são as características do ente e da essência. Para isso é preciso um referencial, um padrão básico para poder pensar e distinguir uma da outra. Então, se quisermos encontrar a resposta para tal relação, “é necessário que a essência signifique alguma coisa de comum a todas as naturezas pelas quais os diversos entes são classificados nos diversos géneros e espécies” (AQUINO, 2008, p.5), diferenciando-se assim do ente.

Na investigação Tomás de Aquino parte da análise dos entes, pois se deve começar dos efeitos para se descobrir a causa. Compreendendo que existem substancias simples e substancias compostas, tal como dizia Aristóteles, ele começa tratando primeiramente das substancias compostas, afirmando “que o nome de essência, nas substâncias compostas, significa o que é composto de matéria e de forma.” (2008, p. 9), representando assim a essência dos entes ônticos.

Uma característica fundamental do pensamento tomista é sua ideia de participação do pensamento com a essência das coisas; o pensamento tem a capacidade, para Tomás de Aquino, de identificar, relacionando e distinguindo, a essência dos objetos, pois “apenas pela definição e pela sua essência é que algo se torna inteligível.” (2008, p. 6). Desse modo, percebe-se não só que a inteligência tem papel preponderante no conhecimento da essência dos entes mas admite-se que é pelo fato do ente ter uma essência é que torna possível o conhecimento de tal ente.

O pensador vai tecendo uma argumentação que mostra como toda matéria é composta de forma, pois sem tal forma sua existência não seria possível. Entretanto, a forma não depende da matéria, podendo existir sem matéria. O ser humano, então, como diz Tomás de Aquino (2008, p. 16), é uma substancia composta:

"De facto, diz-se que o Homem é composto de alma e de corpo, tal como de duas coisas se constitui uma terceira realidade que não é nem uma nem outra. Efectivamente, o Homem não é a alma nem é o corpo. Mas se dissermos que o Homem é de alguma maneira composto de animal e de racional, não o será como uma terceira coisa é constituída de duas outras, mas como um terceiro conceito é formado de dois outros."

O problema é que mesmo nos entes de substancia composta existem diferenças ontológicas, diferindo de um ente para outro ente conforme a combinação de forma e matéria difere. Tomás de Aquino reconhece o problema, e busca resolver esse problema de individualidade ontológica dizendo que o que muda para outra são apenas os acidentes, dessa forma preservando a essência. Disso “segue-se que a essência, própria e verdadeiramente, se encontra nas substâncias, e apenas de certo modo e relativamente, nos acidentes.” (2008, p.7), o que justifica a pluralidade de entes no mundo.

A essência dos entes, como já dito anteriormente, é universal; se encontra em todos os entes algo de objetivo, nenhum ente está ontologicamente distinto dos demais. O que acontece é que existe nos entes certa característica determinada e outra indeterminada; “Por esta razão, deve saber-se que o princípio de individuação não é a matéria considerada de qualquer modo, mas unicamente a matéria delimitada.” (2008, p. 11).

Se a individuação é a matéria delimitada, a característica universal, ou seja, o que no texto de Tomás de Aquino chamou-se de “equidade”, é o que faz com que “tudo o que está na espécie está também no género como não determinado” (2008, p. 12), é a natureza essencial daquele ente.

O pensamento sempre visa o universal, independentemente do ente pensado. Isto decorre do fato da inteligência ser puramente formal, embora esteja ligada a matéria; a inteligência, por questão de afinidade, visa sempre a forma que se encontra na matéria daquele ente, assim o pensamento conceitua tal ente, com base na essência, pois, como diz Tomás de Aquino (2008, p. 14), “a definição significa o todo”, e está definição só é possível devido a característica fundamental da inteligência de reconhecer a forma de todos os entes, sendo a matéria captada pelos sentidos, ou seja, pelo corpo que tem afinidade com a matéria do ente percebido.

Então como se explica a diversidade dos entes? “É evidente, pois, que pela adição da diferença, e retirada a indeterminação referida, que era causa da unidade do género, subsistem as espécies diversas por essência.” (2008, p. 17), gerando uma pluralidade de entes no mundo.

Mas a essência de um ente é então aquilo que tem de universal ou é justamente o que tem de particular? A essência de um ente é diferente de sua particularidade; pode-se dizer que o ente particular é a unidade de sua essência universal com sua particularidade delimitada.

"Na verdade, humanidade significa o que faz com que o Homem seja Homem. Ora, a matéria delimitada não é o que faz com que o Homem seja Homem. Por conseguinte, como a humanidade, no seu conceito, apenas inclui os princípios que fazem com que o Homem seja Homem, é evidente que da sua significação se exclui ou suprime a matéria delimitada." (AQUINO, 2008, p. 18)

É errôneo dizer que Sócrates é Homem, o que é correto dizer é que Sócrates participa da universalidade do que denominamos Homem, “não se pode dizer que Sócrates seja isto que está separado dele; o que se separasse de nada aproveitaria ao conhecimento deste singular.” (2008, p. 20). Sócrates é a diferença delimitada e particular da essência de Homem.

A característica “Homem” é predicada a Sócrates porque ele tem características semelhantes. O termo “Homem” é um conceito que abarca todas as semelhanças dos homens particulares. Como diz Tomás de Aquino (2008, p. 22), torna-se “evidente que a natureza do Homem, absolutamente considerada, abstrai de qualquer ser, mas sem que haja exclusão de nenhum deles. Ora, é esta natureza assim considerada que se predica de todos os indivíduos.”; “Homem” é uma generalização produzida pela inteligência, que “por ter essa relação com todos os indivíduos, o intelecto descobre a noção de espécie e atribui-lha.” (2008, p. 23-24). Partindo dos entes singulares é possível conhecer a essência desses entes.

Assim, é interessantíssima a colocação do pensamento como fator chave no conhecimento da essência dos entes, ainda mais porque Tomás de Aquino não vê esse conhecimento como resultado de uma busca teórica, abstrata e puramente reflexiva; dessa forma pode-se dizer que “a predicação é algo que se realiza por acção da inteligência, que compõe e divide, tendo como fundamento no próprio real a unidade das coisas, das quais uma é dita da outra” (2008, p. 25).

Porém isto só é possível porque a inteligência é absolutamente extrínseca a matéria. Segundo Tomás de Aquino (2008, p. 27), para a distinção da forma e da matéria “é necessário que em qualquer substância intelectiva haja imunidade absoluta de matéria, de modo que ela não tenha matéria como parte de si. [...] Porém, na alma e na inteligência há uma composição de forma e de ser.”.

Esta composição é importante para entender a ontologia piramidal proposta por Santo Tomás de Aquino nesse opúsculo. Com efeito, a inteligência é composta de ser dado que possibilita a existência de sua essência, que é a forma. Assim, quanto mais próximo do ser esta a forma mais distante ela está da matéria.

"É fácil ver como isto se dá. Em todas as coisas que se relacionam entre si, de tal modo que uma seja causa da outra, aquela que tem a razão de causa pode ter o ser sem a outra, mas não ao contrário. É o que acontece com a relação da matéria e da forma, pois a forma confere ser à matéria. Assim, é impossível que a matéria exista sem qualquer forma, mas já não é impossível que exista uma forma sem matéria. Com efeito, a forma, enquanto forma, não depende da matéria. Mas se se encontram algumas formas que não podem existir senão na matéria, isso sucede-lhes na medida em que estão distantes do primeiro princípio, que é o acto primeiro e puro." (AQUINO, 2008, p.28)

Seguindo esse raciocínio lógico proposto, é então possível compreender a primordial diferença ontológica entre as substancias compostas e as substancias simples. Nas clarificadoras palavras de Tomás de Aquino (2008, p. 28-29): “a essência da substância composta e da substância simples difere no seguinte: a essência da substância composta não é apenas forma, mas compreende a forma e a matéria; mas a essência da substância simples é apenas a forma.” . Se nos entes mundanos a essência se encontra na composição de forma e matéria, nos entes de natureza simples se encontra em sua forma, em sua universalidade.

Essa pirâmide ontológica se manifesta em forma de processão, sendo o topo da pirâmide assumido, segundo Santo Tomás de Aquino (2008, p. 31), por Deus:

"[...] é necessário que haja uma realidade que seja a causa do ser de todas as outras coisas, pelo facto de ela ser tão-somente ser. De outro modo ir-se-ia até ao infinito nas causas, visto que tudo o que não é apenas ser tem uma causa do seu ser, como se disse. Portanto, é evidente que a inteligência é forma e ser e que ela tem o ser a partir do primeiro ente, que é apenas ser. E esta é a causa primeira, que é Deus."

Mas fica confuso qual é a essência da inteligência, pois sabe-se que esta é uma substancia simples, e que a essência das substancias simples é sua forma, porém não se sabe qual é a forma da inteligência. Nosso filósofo responde a está dúvida duma forma aparentemente ambígua, pois diz que “a quididade da inteligência é a própria inteligência, a sua quididade ou essência é o mesmo que ela própria é, e o seu ser, recebido de Deus, é aquilo pelo qual ela subsiste na natureza.” (2008, p. 32). Além de ser insuficiente tal resposta, ela não explica também o porquê da composição da alma na matéria. De fato, a melhor resposta tomista para tal junção é que pelo fato da alma ser a forma mais distante de Deus, “a alma torna-se tão próxima das coisas materiais, que a realidade material é atraída a participar do seu ser, de modo que da alma e do corpo resulta um único ser num único composto” (2008, p. 33).

Então como explicar os acidentes? A argumentação utilizada é que a medida de distanciamento da forma primordial é a razão dos acidentes, ou seja, “o grau de perfeição na recepção de uma mesma forma não diversifica a espécie; assim, por exemplo, o mais branco e o menos branco na participação de brancura da mesma natureza.” (2008, p. 39); os acidentes não são dessa maneira essências no ente, porque, como dito anteriormente, “a essência consiste no que é significado pela definição” (2008, p. 40), e está definição pressupõe a universalidade à medida que é definida pelo intelecto e este apreende apenas a pura forma, que é uma substancia simples, por isso universal.

Porém Tomás de Aquino admite a existência de acidentes causados pela forma, como se vê nesta passagem:

"E como cada coisa se individua pela matéria e é colocada no seu género ou espécie pela sua forma, os acidentes que derivam da matéria são acidentes do indivíduo e diferenciam os indivíduos da mesma espécie. Por seu turno, os acidentes que derivam da forma são as paixões próprias do género ou da espécie. Por resta razão, encontramo-los em tudo o que participa da natureza do género ou da espécie, tal como a capacidade de rir que no Homem acompanha a sua forma, pois o riso acontece por uma dada percepção da alma humana." (AQUINO, 2008, p. 43)

Dessa forma Tomás de Aquino, com sua explanação sobre o ente e a essência, consegue abarcar a totalidade dos fenômenos existenciais referente aos entes; análise difícil e complexa “tendo em vista que o ente se diz de vários modos” (2008, p. 45). Nesse sentido, é interessante compreender a grandeza argumentativa utilizada por este pensador e como ele sacralizou uma filosofia mundana sem se abstrair de suas características fundamentais e torna-la irracional, como algumas argumentações de cunho religioso.

Por fim, pode-se dizer que o intuito do ensaio tomista O ente e a essência é expor a distinção real entre essência e existência, ou seja, Tomás de Aquino mostra que a essência de qualquer criatura é distinta de sua existência, apenas Deus tendo como sua essência a existência. Sendo assim, a definição da essência dos entes não implica sua existência. Dessa forma os entes precisam, necessariamente, de outra realidade para sua existência, são dependentes da existência divina. A partir dessa explanação lógico-ontológica Tomás de Aquino, considerado o mais sábio dos santos e o mais santo dos sábios, consegue concluir o objetivo fundamental de seu opúsculo, que não é outro senão evidenciar a participação de Deus na natureza dos entes.

REFERÊNCIAS

AQUINO, Tomás de. O ente e a essência. Coleção Textos Clássicos de Filosofia. Tradução de Mário Santiago de Carvalho. Covilha: LusoSofia. Net, 2008.

Sobrinho de Rameu
Enviado por Sobrinho de Rameu em 23/04/2015
Código do texto: T5216980
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2015. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.