"A Professora de Piano" e "Cinquenta Tons de Cinza"

_Uma análise psicanalítica_

COSTA, Irene Cristina dos Santos

Desenvolvendo uma análise rasa dos filmes “A Professora de Piano” e “Cinquenta tons de cinza”, pretendendo abordar questões relacionadas à teoria psicanalítica estudada, será descortinado aqui aspectos da estrutura psicológica dos personagens protagonistas (Erika Kohut / Christian Grey) em relação a seus respectivos antagonistas (Walter Klemmer /Anastasia Steele – 'Ana') e o contexto em que vivem no que tange à conceituação de coisa e Coisa e objeto de desejo, a relação entre sujeito e objeto sendo marcada pelo conflito, isto é, confrontada por uma teoria na qual o objeto harmônico aparece como objeto terminal, ou seja, como aquele para o qual convergiriam as etapas parciais do objeto.

O filme “A Professora de Piano” é baseado em um livro do escritor austríaco Elfrie de Jelinek, um tratado que discorre sobre preestabelecidas noções de sexualidade feminina ao mesmo tempo em que ataca o orgulho que seu país carrega por sua tradição musical. E o filme “Cinquenta tons de cinza” é baseado na trilogia de livros da autora inglesa E L James, que conquistou uma legião de fãs ao redor do planeta, ultrapassando a marca inédita de 40 milhões de exemplares vendidos em todo o mundo.

Nesta análise será realizada uma rápida abordagem do sentido de Coisa e coisa, dentro da teoria psicanalítica, cabendo lembrar que ao se falar de questões relacionadas à libido, fantasias, desejo, recalque, gozo e Gozo, perversão, pulsão e compulsão... é importante entender que muitos indivíduos transferem suas zonas erógenas para outras partes do corpo que não são as conhecidas usualmente, outros, só conseguem o orgasmo através de uma submissão a distintas condições exteriores, consideradas não convencionais.

Lacan questiona a ideia do objeto genital como sendo o objeto em que culminariam os estágios pré-genitais do objeto, os quais teriam, então, estatuto provisório em um desenvolvimento subjetivo considerado saudável. A relação de objeto se orientando por uma convergência para o objeto genital remete, segundo Lacan, à ideia de uma maturação da relação do homem com a realidade, com o outro, consigo mesmo. Em todas as formas têm-se o desejo e a fantasia elementos constitutivo. Na realidade, todos alimentam seus desejos e fantasias, porém quando a forma de prazer desvia-se do padrão da normalidade, de forma generalizada, costuma-se chamá-la de perversão.

Perversão ou não, entretanto, a busca pelo Gozo é uma constante em todo ser humano, ainda que somente alcance ecos de gozo que o levam a cambiar para a sublimação aceitável ou a perversão dos limites que a sociedade impõe. E, através de estudos psicanalíticos sabe-se que, ao neurótico falta certa concessão ao gozo e ao perverso, falta a concessão ao amor, isto é, a pulsão de morte veiculada pelo gozo perverso é enlaçada novamente pela libido e, dessa forma, nem o neurótico necessita tanto do recalque e nem o perverso do desmentido já que, pela via do amor enlaçado a um pouco de gozo, ambos conseguem um amansamento da pulsão, um apaziguamento do real do sexo, o que tem estreita relação com o aforismo de Lacan.

Assim, perversão sexual toma formas variadas e observa-se na internet um grande instrumento no fluxo de usuários, que variando de idades, instrução e finalidades, buscam satisfazer suas fantasias eróticas e sexuais. Na internet encontram-se aspectos que incluem os chamados de positivos ou negativos; construtivos ou destrutivos, legais ou ilegais, espontâneos ou provocados. Muitos se escondem atrás das telas de um computador para camuflar certas psicopatias. Assim a perversão sexual assume formas variadas de se estabelecer, tais como o voyeurismo, sadismo, masoquismo, que são assumidos naturalmente como “normais” revelando-se por todos os “Cinquenta tons de cinza”.

Segundo Freud, masoquismo define-se como atitudes passivas perante a vida sexual e o objeto sexual, a mais extrema das quais parece ser o condicionamento física ou anímica advinda do objeto sexual. Todavia, mesmo no processo sexual mais normal reconhecem-se os rudimentos daquilo que, se desenvolvido, levaria às aberrações descritas como perversões. É que certas relações intermediárias com o objeto sexual (a caminho do coito), tais como apalpá-lo e contemplá-lo, são reconhecidas como alvos sexuais preliminares. Essas atividades, de um lado, trazem prazer em si mesmas, e de outro, intensificam a excitação que deve perdurar até que se alcance o alvo sexual definitivo. Já o sadismo é definido como perversão sexual em que a satisfação erótica advém de atos de violência ou crueldade física ou moral infligida ao parceiro sexual. O linear entre a satisfação sexual pela sublimação do desejo em algo socialmente aceitável e a satisfação através da perversão é muito tênue e remonta as práticas sado/masoquistas.

Em análise ao filme “A professora de piano”, protagonizado pela personagem Erika Kohut, assim como ao filme/livro “Cinquenta tons de cinza”, protagonizado pelo milionário Christian Grey (ambos com traços de perversão), observa-se uma clara proximidade a um dos escritos de Freud que pode se enquadrar ao comportamento de Érika e de Grey, logo de início do texto de Freud há uma cena que compõem a versão consciente de um fantasma que exibe uma autoridade anônima, sem rosto definido, batendo nas nádegas de uma criança igualmente anônima. Tal cena dá prazer ao paciente de Freud, que a evoca, reduzido a um olho que contempla, e serve de pano de fundo imaginário para atividades masturbatórias.

Esta cena evoca no indivíduo uma versão mais antiga, recalcada, envergonhada, onde se revelam as identidades do espancador e do espancado: nesta cena, é o pai do sujeito que aparece surrando uma criança odiada, irmão ou rival. Esta cena dá prazer ao sujeito que a evoca, mas é um prazer culpado e censurado. Freud reconstrói uma vertente mais radical dessa fantasia, um segundo tempo totalmente inconsciente. Trata-se de uma cena onde o sujeito se vê espancado pelo pai, e goza com isso; desta vez, um gozo de caráter masoquista. Freud específica que esta faceta do fantasma não pode chegar a ser lembrada, porque jamais recebeu transcrição em palavras. Lacan, através dos escritos de Freud, faz uma leitura rigorosa e sistemática da psicanálise, faz uma distinção entre os atos perversos e estruturas perversas em relação ao objeto de desejo. Ou seja, pressupõe que os atos perversos podem ser tolerados por indivíduos não-perversos, mas que as estruturas perversas são sempre perversas, mesmo quando são socialmente toleradas. Ainda, nas relações sado/masoquistas, observadas no filme, o prazer/gozo se concretiza no Outro, na dor ou depreciação do Outro,

No filme “A professora de piano”, Érika Kohut é uma professoras de piano do Conservatório de Viena que vive com sua mãe (altamente possessiva) que parece substituir a ausência do marido por uma possessividade agressiva, que trata a filha como se ela tivesse 12 anos, apesar de ter 40, que supervisiona todos os seus passos de forma escancarada. Mantém de forma antagônica uma relação de amor e ódio com a filha e detém seus modos e meios de satisfação e (também) assume o papel de elemento castrador, lembrando que a castração é a descoberta do sujeito de que há o outro sexo. dorme no mesmo quarto, embora tenha um só para ela. Erika dorme com a sua progenitora, ocupando o lugar de um pai duplamente ausente. Em uma passagem do filme, simula estar tendo contato sexual com sua mãe. Ela não bebe, não tem amigos e muito menos sentimentos, se tornando uma pessoa sisuda e antipática ao ser vista pelos outros. Observa-se que Érika não consegue se colocar na vida, pois há sempre a presença de sua mãe castradora evitando a construção de seu reconhecimento no mundo e a elaboração de um saber de si. Ela tem (ainda) a figura do pai identificada a possessividade de sua mãe em uma relação doentia.

Em “Cinquenta tons de cinza” (filme/livro), Christian Grey, é rapaz que cresceu com "uma autoimagem negativa, pensando que era algum tipo de rejeitado, um selvagem incapaz de ser amado". Filho de uma prostituta viciada e vítima de seu cafetão sádico, foi torturado durante seus quatro primeiros anos até a morte de sua mãe biológica e posterior adoção por uma família abastada. Cresce uma criança arredia, que após anos de silêncio consegue, através da música, sair da mudez que o acometia desde que foi achado ao lado de sua mãe morta, com cujo cadáver ficou trancado num apartamento sem comida, por três dias. Suas vivências com essa mãe submetida a seu cafetão que costumava queimar a criança com cigarro aceso, trouxe como sequela um pavor de ser tocado, mesmo após a adoção. Torna-se um adolescente rebelde, prensado entre a forte demanda pulsional e o horror ao toque e ao envolvimento afetivo. Vai de uma passagem ao ato a outra, descontrolado num percurso mortífero até encontrar uma mulher que o introduz no universo sadomasoquista lhe oferecendo, assim, uma oportunidade viável "de lidar com a dor do lado de fora", uma proposta sedutora para quem cresceu achando "que merecia apanhar" . Ao lhe dar uma forma de lidar com o gozo mortífero, ela o auxilia a "canalizar sua raiva" e se torna o "centro de seu mundo".

Assim, os filmes “A Professora de Piano” e “Cinquenta tons de cinza” passam ao público o lado obscuro da sexualidade humana, de perversões como o voyeurismo, masoquismo e sadismo agrupados em uma única pessoa (Érika/Christian) refletidos a seu objeto (Walter/Ana) na tentativa de realização do desejo/gozo. Observa-se aqui, que o Perverso aceita a angústia de castração sob a condição de transgredi-la. Ele não renuncia ao falo, mas conjura de modo eficaz a angústia de castração; os personagens principais têm a necessidade de depreciar o objeto sexual (Walter/Ana), o que é decorrente do que Freud denominou de impotência psíquica. Ela está presente em todas as esferas libidinais que pode ter entre os homens. A impotência não é em relação ao sexo oposto, propriamente dito, mas sim em relação a alguém em especial, ao cônjuge, namorada(o) ou mesmo a amante quando a relação afetiva se sobrepõe à erótica.

Segundo Freud, essa impotência psíquica é fruto de um conflito que se estabelece na mente dos indivíduos em decorrência de fantasias (infantis) incestuosas (recalcadas no indivíduo vulgo normal, latentes no pervertido ou neurótico), que se mantêm ativas no inconsciente. Dessa forma, suas pesquisas levam-nos a descobrir que, durante a infância, surge uma complexa situação afetiva que deixará suas marcas por toda a vida o desejo por seu/sua progenitor(a) oposto e o ódio e identificação por se rival do mesmo sexo, revelando-se no Complexo de Édipo (no menino) ou de Electra (na menina).

No caso de Erika, a ausência da figura paterna e a presença da mãe castradora e autoritária, e em relação à Grey, o sofrimento junto à família biológica (pai cafetão que o torturava e mãe prostituta) e a rejeição sofrida corroboram para sua conturbada personalidade. O perverso ao ter seu jogo interditado pela figura do pai reage com o desafio e a transgressão, traços característicos da perversão; é a castração representada por essa interdição paterna que será desafiada e, se possível transgredi. Erika é uma personagem com a mente antissocial, que se priva das emoções, mas que ao senti-las se torna imprevisível. Leva tudo isso ás últimas consequências.

Ela vive dia após dia com o sofrimento e com a negação, com a plena consciência de si mesma e da sua sexualidade distorcida, sendo incapaz de avaliar corretamente o bem e o mal nos seus comportamentos. Tanto que quando mutila sua vagina, apaga todos os rastros existentes. Embora não tenha namorado, e não demonstre nenhum interesse em ter, no entanto, não é indiferentes a sexo e pulsões libidinais – apenas gosta de uma modalidade de sexo não muito ortodoxa, frequenta lojas de artigos pornográficos, onde assiste a vídeos de sexo explícito e esfrega no rosto o esperma dos frequentadores que lá estiveram antes dela. Quando conhece Walter, loiro e jovem desembaraçado que demonstra interesse nela, não apenas em sentido musical, mas como alvo de suas atenções e afeições. Ele para impressioná-la, traz apenas músicas de Schubert.

Em relação à Christian de “Cinquenta tons de cinza”, tudo correu muito bem até que apareceu alguém, a jovem mulher, Anastasia Steele (Ana), que fez seu mundo, antes calmo e organizado, virar de cabeça para baixo ao introduzir paulatinamente um novo ingrediente em sua vida — o amor. Maníaco por controle, mas seduzido pela situação de embate, ele se propõe a entrar nessa relação, certo de que era o senhor da situação; todavia encontra alguém rebelde, insubmissa e desafiadora, que aos poucos lhe tira o chão. Ana, por sua vez, é uma moça com autoestima baixa, inexperiente em relações afetivas, mas que se sente fortemente atraída pela beleza e pelo poder representados pelo rapaz e, ao se perceber escolhida por ele (mesmo se sentindo não merecedora de sua atenção) cede, paga o preço se submetendo a uma certa dor, a que lhe era suportável na relação, para ela, erótica.

No filme “A Professora de Piano”, Erika é uma praticante do voyeurismo, frequenta sex shop e drive-in apenas para ver a prática sexual. Ignorante de seus próprios desejos e motivações demonstra no desenrolar do filme a prática forte do voyeurismo, a personagem mutila sua própria genitália, cheira fluidos masculinos em papéis higiênicos, no lixo de cabine de sexo. Em “Cinquenta tons de cinza”, Grey é um homem jovem bonito e milionário, que usa esses atributos em função de sua personalidade altamente sádica, encontrando prazer e submeter as mulheres.

O foco do Voyeurismo, do sadismo e do masoquismo está na a relação com o Outro. Walter conhece um lado da professora que ninguém tinha visto antes. Ela não demonstra emoção o tempo todo que seu aluno a acaricia, não permite o ato sexual e o gozo está no olhar. Embora sua personagem não deixe transparecer os sentimentos, ela consegue fazer uma caricatura desse ser sem extrapolá-lo ou minimizá-lo, Ao iniciar a relação com o personagem Walter, ela começa a deixar seus sentimentos transparecerem. Encontra alguém tão imprevisível quanto ela que, gradativamente, vai tomando o que pertencia a ela: o controle da situação. Surgem as surpresas. E para poder controlá-lo, se deixa envolver em situações de masoquismo, quando o jovem rapaz aceita seu jogo em tornar-se seu “torturador” e demonstra prazer em estuprá-la e nisso sente gozo.

Da mesma forma Anastasia (Ana) evidencia um lado de Grey que nenhuma outra conseguira – ele experimenta o amor. E através dos limites tênues entre dor e prazer estabelecem o desafio onde o castigo, aos poucos, vai sendo desejado e provocado por ela, se tornando um ingrediente fortemente erótico na relação dos dois, ou seja, o que antes era uma forma de gozo do Outro se torna, ao ser enlaçado pelo amor e pelo desejo, um tempero desejável na relação a dois, um grande fetiche, que, para a consciência, é um objeto de prazer, de amor – sem que se saiba por que – para o inconsciente representa a equação que permite renegar a castração.

Tanto Erika quanto Grey apresentam um conflito paradoxal em suas relações de amor/desejo/gozo em suas práticas sado/masoquistas com o Outro. Dessa relação com o outro espera-se apreender algo sobre a satisfação barrada, castrada, e mesmo reencontrar em seu objeto de desejo (Walter/Ana) a reelaboração de seu complexo de edipiano para que o desejo se realize. Mas há algo do desejo que sempre escapa uma peça que sempre falta para completar-se o sentido do desejo - o objeto.

Na estrutura psicológica perversa de Erika e de Grey, a sexualidade está marcada pela compulsão e pela necessidade de reconstrução de uma cena traumática. A construção do fetiche revela-se um recurso possível de estruturação de uma vida libidinal. Érika/Grey usa os objetos como estratégia para salvaguardar a sua vida psíquica. O envolvimento emocional inesperado os faz vulneráveis e isso a incomoda.

Logo, aos olhos da psicanálise Anastasia (Ana) é a reconfiguração da mãe perfeita que faltou a Grey, atenciosa, amorosa, persistente e levemente indomável, e Walter é a reconfiguração da figura paterna para Erika, o pai que no filme não aparece, ausente devido à insanidade e morte em hospício, que marcou na personagem seu gosto musical por Schubert .

Atentando para esse aspecto psicológico dos filmes, ao assistir “A Professora de Piano” e/ou “Cinquenta tons de cinza”, sentir repulsa ou excitação ante os gestos e atitudes desses personagens em determinadas cenas, defender o distorcido de Erika e Walter, de Grey e Ana, as pessoas estão defendendo a si mesmas através da identificação, da transferência, ou sublimação. Protegem o seu próprio direito de sonhar. Atacar essas imagens fictícias é mexer num vespeiro de faltas, dores e traumas sem fim que estão submergidas no oceano de nosso inconsciente.

Referências Bibliográficas

FREUD, S. Uma criança é espancada - uma contribuição ao estudo da origem das perversões sexuais (1919). In:Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v. XVII, p. 195-218.

JAMES, E. L. Cinquenta tons de cinza - livro 1. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2012a; 2012b; 2012c.

JORGE, M. A. C. Fundamentos da psicanálise - de Freud a Lacan. Rio de Janeiro: Zahar.

LACAN, J. O seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

https://youtu.be/dpIVHb6biyk

https://youtu.be/mXV_u73vRMI

https://youtu.be/LNDSpeHLEMc

Nina Costa
Enviado por Nina Costa em 06/09/2015
Reeditado em 07/09/2015
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