O FANTÁSTICO NO “LABIRINTO DO FAUNO”: UMA VIAGEM PELO IMAGINÁRIO NO CINEMA.

O FANTÁSTICO NO “LABIRINTO DO FAUNO”: UMA VIAGEM PELO IMAGINÁRIO NO CINEMA.

Silvestre Cantalice Filho

“Neste ponto da conversa, eu gostaria de poder relatar a vocês metade das coisas interessantes que Alice costumava dizer, quando começava com sua frase favorita: “Faz de conta””

Alice através do espelho – Lewis Carroll

Resumo

A literatura fantástica foi e ainda é importante para o mundo infantil, é o ponto de partida da criança à literatura. Hoje, a fantasia ganha forma e cores e pode ser observada além das folhas de papel. O cinema enquanto arte proporciona uma demonstração realística, dando à criança a capacidade de dar ênfase àquilo que, até então, permanecia guardado em seus sonhos. Foi percebida pelos estudos literários a importância dos contos maravilhosos, por conter informações ricas em significado. A psicanálise viu na fantasia uma ferramenta para compreender o inconsciente. O conto maravilhoso, ganha forma através do filão cinematográfico. Tomaremos como base para nossa análise o filme: “Labirinto do Fauno”, do diretor espanhol Guillermo Del Toro, no qual pudemos perceber os elementos que guia o telespectador ao mundo imaginário criado pela protagonista.

Palavras-chave: imaginário; conto de fadas; fantástico; símbolo;

Introdução

O cinema fantástico tem um poder de recriar fantasias que se aproximam muito do imaginário infantil, trazendo a tona idéias, devaneios e pensamentos em forma de imagens que possam ser vistas e decodificada, transformando a ficção em algo que se possa comparar com tudo aquilo que desejamos dentro da infinidade da ilusão.

A metáfora assim como em toda obra literária é uma parte importante do conto de fadas, seja numa versão para as telas ou num livro que a criança lê antes de dormir. Nada teria significado se este fosse explícito. E o que parece insignificante para adultos, para criança torna-se de um valor rico, como explica Bettelheim (1980, p. 59), “o conto de fadas procede uma maneira consoante ao caminho pelo qual uma criança pensa e experimenta o mundo”. Desta maneira, percebemos que, antes da realidade existe a fantasia, pois, tendemos o fantasiar sobre aquilo que não conhecemos. A criança percebe o mundo através da fantasia.

O filme “O Labirinto do Fauno” nos mostra como a realidade poderia ser dolorosa se não fosse a ideia do fantástico, porque a criança tende a usufruir da fantasia para superar as adversidades de uma realidade com a qual ela não está de acordo.

A psicanálise sabe bem a importância de tais elementos e conceitos, por perceber que a criança passa por diversos complexos na infância, que talvez não pudessem ser superados sem a fantasia. A protagonista do filme, Ofélia, está passando por um período de grande turbulência; cercada por uma guerra que não entende, com a mãe grávida e casada com um general, que não é seu pai, já que o vínculo com o pai biológico foi completamente quebrado pela morte do mesmo; encarar essa realidade sem a fantasia seria aceitar uma realidade dolorosa da qual a mesma não teria como explicar racionalmente.

Essa necessidade mágica de acreditar e aceitar um mundo fantasioso como verdade é o tema tratado neste artigo, que visa não somente expor a importância da fantasia, mas como também a presença constate e forte de um estudo histórico e literário que através de uma simbologia implícita guia o expectador a perceber a jornada de uma garotinha que é submetida a duros testes para tornar-se ou reafirma-se como princesa do seu reino infinito.

Das fontes do passado até hoje.

Os contos maravilhosos perduram desde muitos séculos, duram até hoje e ganham seu espaço na sociedade moderna. Os contos maravilhosos, conhecidos como contos populares, eram assim denominados por passar de geração a geração, de uma maneira oral. Então, estes relatos eram antes de tudo, a memória de um povo.

Diversas áreas do conhecimento se uniram para resgatar essas memórias perdidas. Também seria uma busca por suas raízes e cultura, na tentativa de descobrir como povos que viviam tão distantes um dos outros compartilhavam das mesmas histórias.

O grande interesse pela literatura fantástica retorna com bastante força no final do século XX para inicio do século XXI. Os contos maravilhosos tiveram sua importância e significados para os povos antigos, transformados pouco tempo depois em contos de fadas para crianças pelas mãos dos irmãos Grimm, Perrault e outros nomes como La Fotaine e Andersen.

A nossa geração moderna, que se caminha para uma desordem e perda de valores, talvez veja hoje nos contos, a estrutura social prometida a povos que mantinham uma tradição, que era baseada na socialização e na proteção dos valores sociais importantes. É desta ótica que o fantástico se sobressai, não por ser mera fantasia do inconsciente humano, mas por conter fantasias simbólicas que, para nós, seres sociais, são verdades transformadoras, como explica Coelho, (2008, p. 23),

É por meio desta perspectiva que os contos de fadas, as lendas, os mitos, entre outros, também deixaram de ser vistos como entretenimento infantil e vêm sendo descobertos como autênticas fontes de conhecimento do homem e de seu lugar no mundo. (Coelho, 2008, p. 23)

A evolução humana continua com suas “certezas absolutas”, mas tantas descobertas nasceriam também da fantasia, de imaginar o impossível, criar o maravilhoso, mudando sociedades e indivíduos. É na ciência e principalmente na arte que o fantástico acorda, e não poderíamos deixar de pontuar que, quando falamos em arte, incluímos o cinema, no qual o mundo se delicia com toda a fantasia criada do imaginário de outros, os poderes de super heróis fantásticos, mundos maravilhosos escondidos por portais, extraterrestres, etc. O cinema faz hoje o que os contos populares e os contos de fadas faziam. Afinal hoje estamos diante de uma era cibernética, portanto, não é de se admirar que todo aquele maravilhoso tenha sido convertido em imagens que podem ser vistas na sala de nossa casa ou no cinema.

A produção cinematográfica, principalmente aquelas voltadas ao público infantil, retoma o maravilhoso, dando vida ao que antes era papel e voz. O cinema é uma fonte rica de simbolismo de nossa era, mas não está isento do poder da literatura, já que é dela que os filmes bebem seu rico conteúdo. Mesmo um filme de fantasia que não seja adaptado de alguma obra literária conterá resquícios do antes dito nos contos maravilhosos. Manter toda a simbologia e toda a mitologia que se encontrava nos textos é o grande desafio, que muitos diretores de cinema conseguem.

A importância da Literatura fantástica

A noção de estudos literários enquanto arte do fazer e do representar situações sócio-culturais tem ganhado grandes dimensões no mundo de hoje. A literatura, mesmo no mundo moderno com o qual nos deparamos, ainda é a fonte de riqueza e conhecimento necessário à formação de indivíduos.

Neste âmbito de representação de situações cotidianas e de espaços sociais, nos deparamos com uma questão, em torno da presença do fantástico e a necessidade de fantasia. A ficção por assim dizer, não nasce ao acaso, mas de um pensamento sobre o impossível, sobre o imaginário.

Excluir o fantástico é penetrar num mundo sem significado e sem descobertas. Não era à toa que os povos de antigamente viviam a completa fantasia do desconhecido. O cinema se apropria de certas configurações para recriar o conto de fadas, mantendo suas características fundamentais: o símbolo, o mito e a fantasia.

A presença do fantástico.

Assim como a literatura, o cinema fantástico é rico em recriar o mundo mediante uma perspectiva “impossível”, criar o que aos olhos do ser humano seria devaneio ou pura imaginação. Ciências como a psicanálise viram nos contos maravilhosos uma rica fonte para descobertas do inconsciente, por conter características que estão inerentemente ligados a psique do ser humano. Para Bettelheim (2008, p. 59)

[...] as estórias de fadas respondem a questões eternas: Como posso realmente ser eu mesmo? [...] por esta razão os contos de fadas são tão convincentes para ela. [...] ela pode obter um consolo muito maior nos contos de fadas do que um esforço para consolá-la baseado em raciocínio.

(Bettelheim. 2008, p. 59)

Quando o autor fala em raciocínio, ele fala em verdade, verdade essa desconhecida pela criança. Está claro que o fantástico se faz presente em nossa vida, mesmo na era moderna em que vivemos. Tudo se fundamenta um pouco na fantasia. Todavia, devemos levar em consideração essa presença, seja ela forte ou completa, pois nos deparamos, com certas vertentes do fantástico e cabe salientar que nosso trabalho visa a expor o fantástico e sua presença numa obra cinematográfica moderna e rica em símbolos. Mas, o estranho e o sobrenatural também estão presente numa obra maravilhosa; a historia ou o leitor ou o telespectador, no nosso caso, podem se confrontar com algumas dúvidas em relação o teoria do fantástico. Neste contexto, vamos tomar como base a pesquisa de Tzvetan Todorov, no qual ele aborda claramente essa noção de fantástico, definição fundamental para conceituar a obra em análise.

Caracterizar uma obra como fantástica, não é somente lhe conferir o status de impossível, de irreal; a presença de certos elementos faz com que percebamos que o real e o imaginário se confundem.

A literatura é rica em elementos; até o leitor é o próprio elemento da obra em questão. A obra também pode definir a reação do leitor diante do que pode ser ou não fantasioso como explica Todorov (1975, p. 37): “O fantástico implica, pois, uma integração do leitor no mundo das personagens”. Mas o que realmente define o fantástico são elementos necessários à obra e a quem lê, pois “A hesitação do leitor é, pois a primeira condição do fantástico”. (TODOROV. 1975, p. 37).

A hesitação seria a dúvida em relação a acontecimentos que estão de certa forma no interior da obra. O fantástico se explica por decisões tomadas pelo personagem e pelo leitor ativo. Conclui-se, então, que se a obra se investe de recursos para explicar ou não os acontecimentos, o personagem é ponto fundamental e tem que tomar certas decisões. Para Todorov (1975, p. 37),

Se ele decide que as leis da realidade permaneçam intactas e permite explicar os fenômenos descritos, dizemos que a obra se liga a outro gênero: o estranho. Se, ao contrário, decide que se deve admitir novas leis da natureza, pelas quais o fenômeno pode ser explicado , entramos no gênero do maravilhos.

(TODOROV, 1975, p. 37)

Daí temos a confirmação de que a presença do fantástico se da por tê-lo como realidade; buscar explicação para os acontecimentos maravilhosos que rodeiam o personagem num obra ou quando o mesmo busca tais explicações, mudamos para um gênero completamente diferente.

Entrando no Labirinto

O filme do diretor espanhol Guillermo Del toro, é uma primorosa obra fantástica e simbólica, de onde é perceptível o grande conhecimento literário empreendido pelo mesmo na produção desta obra. Como foi dito anteriormente, perceber certas nuances, é fundamental para classificar uma obra como fantástico. “O labirinto do Fauno” se inicia com a protagonista Ofélia saindo de seu lar para ir viver num outro lugar com sua mãe e seu padrasto. Vemos até este ponto uma ordem inversa apontada nos contos de fadas, onde geralmente a mãe biológica dar lugar a outra mulher, que torna-se madrasta e sempre é má. Ofélia adora contos de fadas e carrega livros sempre consigo, talvez uma alusão a importância desta literatura para crianças.

O fantástico se inicia quando Ofélia ver uma pequena fada que aos olhos dos outros nada mais era do que um gafanhoto. Para quem está vivenciando o fato estranho “os acontecimentos sobrenaturais não provoca qualquer surpresa” (TODOROV, 1975, p. 60).

Ao chegar no seu destino, Ofélia afasta-se, e encontra um pouco adentro da floresta um labirinto, símbolo de iniciação, (CHEVALIER, GUEERBRANT, 1998. P.530), e também de busca interior pelo eu. Dentro do labirinto Ofélia se depara com criaturas estranhas, o fato dela não se sentir surpreendida é o indicio de fantástico citado anteriormente.

Ao se deparar com o fauno, figura mítica que esta relacionado à floresta, encube Ofélia de três provas que ela teria que concluí-las para voltar ao seu reino como princesa. Este seria o chamado para aventura citado por Campbell (SD) em seu livro “O herói de mil faces”, onde aborda uma estrutura para a jornada comum do herói.

Neste contexto, Ofélia é incumbida de penetrar na floresta e resgatar, uma chave que estava no boca de um sapo, e este estava matando uma árvore muito antiga. A floresta é símbolo de santuário (CHEVALIER, GUEERBRANT, 1998. P.439), talvez por seu estado natural, virgem. É o símbolo associado ao feminino. Símbolo de mistério, morada de seres maravilhosos, sua escuridão é símbolo do inconsciente.

O folclorista Vladimir Propp (2001), elaborou em seu livro “Morfologia do conto maravilhoso”, A estrutura comum do herói nos contos fantásticos. Em que ele detalha que o herói passa por etapas, e essas funções seriam imprescindível para a noção de fantástico. Ao se afastar de casa, Ofélia passa por uma situação de mudança, essa seria uma regra comum, ao encontrar o fauno, Ofélia entra em sua iniciação, busca simbólica por si mesmo, como disse Campbell, (SD, p.102) “O herói caminha por uma paisagem onírica povoadas por formas curiosamente fluidas e ambíguas, na qual deve sobreviver a uma sucessão de provas”. Dessa forma o filme em análise se fundamenta nesta estrutura comum.

Todo o caminho vivido pela personagem principal se encaixa na estrutura do conto fantástico elaborado por Propp, isso coloca o filme de Guillermo Dell Toro no patamar de obra fantástica. Devemos levar em consideração que também a obra é fantástica pela não hesitação de Ofélia sobre o que é verdade ou não. O fantástico, defini-se “como uma percepção particular de acontecimentos estranhos” (Todorov, 1975, p 100), que para o protagonista não causa nenhuma surpresa.

A redenção no conto maravilhoso também é de extrema importância simbólica, o “final feliz” é antes de tudo uma função compensadora das atribulações vividas pelo protagonista. “No conto de fadas fazem necessários, para fortificar a criança no seu defronta mento de sua vida Para” (BETTELHEIM, 1980, p.177). O filme “Labirinto do Fauno”, expõe uma finalização fantástica por completo. O retorno para casa surge, mediante a ressurreição, como explica Vogler (1998),

Para que a historia fique completa, a platéia precisa experimentar, mais um momento de morte e renascimento [...] Os herói precisam passar por uma purgação final, uma purificação, antes de ingressar de volta ao mundo comum.

(VOGLER, 1998, p. 281)

No filme O Labirinto do Fauno, a morte e ressurreição para Ofélia será o final feliz esperado, já que a mesma viveu o fantástico inteiramente sem hesitar ou buscar explicações racionais para os acontecimentos que lhe ocorria.

O retorno para casa é então, o ultimo estagio do herói “Tendo sobrevivido a todas as provações e passado pela morte, os herói regressam ao seu ponto de partida, voltam para casa ou continuam a jornada” (VOGLER, 1998, P. 303)

Assim defini-se a presença do fantástico pela não hesitação da protagonista, que enfim poderá retornar ao seu reino infinito, ao seu lar comum, seu interior, e finalmente poderá viver o final feliz.

Considerações finais

Não há como negar a importância dos contos de fadas, tanto para antigas gerações quanto para nossa era. A busca incansável para resgatar tais obras fizeram que através da tecnologia que temos hoje pudéssemos transportar aquele conhecimento valioso para as telas de TV.

O fantástico é uma necessidade no mundo moderno que busca transformar ideias impossíveis em realidade. O cinema consegue de certa forma recriar os mundos fantásticos vividos nos contos, se configurando como outro meio de levar os contos antigos as crianças e adultos do mundo.

O filme “O Labirinto do Fauno” se designa como fantástico, por conter em seu interior elementos coesivos, ao mundo da fantasia, tanto quanto, a jornada do protagonista, comum na literatura e no cinema, quanto ao teor de aceitação da protagonista acerca dos elementos maravilhosos que povoam a obra.

O Labirinto do fauno é antes de tudo uma obra prima cinematográfica, que expõe claramente a importância da fantasia, para o mundo atual, a importância de acreditar e ver nos símbolos um resgate do nosso eu, de nossa cultura, de nossa vida.

O filme em análise consegue sutilmente unir o sobrenatural com a fantasia, propondo uma visão infantil bem mais aguçada para a natureza dos acontecimentos, e não necessariamente ao fato de algo existir ou não.

Referências

TODOROV, tzvetan. Introdução a Literatura Fantástica. São Paulo: Pespectiva, 1975.

BETTELHEIM, Bruno. A Psicanálise dos Contos de Fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.

COELHO, Nelly Novaes. O Conto de Fadas. São Paulo: Paulinas, 2008.

CHEVALIER, Jean. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olimpio, 1998.

VOGLER, Christopher. A Jornada do escritor. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.

CAMPBELL, Joseph. O Héroi de Mil Faces. São Paulo: Cultrix Pensamento, SD.

PROPP, Vladimir. Morfologia do Conto Maravilhoso. São Paulo: Copymarket.com, 2001.

CRISTIANE, Madanêlo De Oliveira. "A IMPORTÂNCIA DO MARAVILHOSO NA LITERATURA INFANTIL" [online]

Disponível na internet via WWW URL: http://www.graudez.com.br/litinf/marav.htm

Acessado em 11/11/2009