Democracia Em Vertigem (Netflix) – crítica

Considerações iniciais: o texto em questão trata-se de duas críticas em uma. A primeira é uma análise sobre aspectos audiovisuais da obra, onde será considerada a direção, o roteiro e os aspectos técnicos. Por se tratar de um documentário, não será levado em consideração interpretações, pois não há reconstrução de cênica de fatos (como nos documentários do History Channell, por exemplo). A segunda crítica terá caráter político, sobre o papel desse documentário na atual conjuntura da política brasileira e da luta de classes (afinal, somos marxistas), e claro, sobre como o documentário trabalha seu tema principal: a democracia.

Crítica audiovisual:

“Temo que a nossa democracia tenha sido um sonho efêmero”, diz a diretora Petra Costa em um voice over melancólico, enquanto a câmera passeia vagarosamente em um plano sequência pelo palácio da alvorada, em Brasília. Aqui, a realizadora dos aclamados Vidas Cinzas e Elena nos convida para uma reconstituição dos fatos, desde a vitória do ex presidente Lula, em 2002, que, para ela, é o momento onde o Brasil respirou o melhor de uma democracia, devido ao fato de um operário, alguém que saiu do seio da classe trabalhadora, ter ganhado uma eleição para a presidência, com massivo apoio popular, passando então pelo período do golpe jurídico-midiático-parlamentar em 2016, até a vitória de Jair Bolsonaro, sendo esse o resultado de uma virada autoritária, que leva ao fim do breve período democrático. No processo, a diretora também traz aspectos de sua vida pessoal, pelo fato de seus pais terem sido opositores da ditadura empresarial-militar, que lutaram por uma alternativa revolucionária e posteriormente, pela redemocratização do país, após os 21 anos de regime militar. O roteiro aqui, dividido em desenvolvimento dos fatos e narração, foca no desenrolar do processo de impeachment da ex presidenta Dilma e de investigação, condenação e prisão de Lula, visto que há bem mais detalhamento nesses fatos, do que nos períodos de governabilidade dos dois ex presidentes, onde tudo é passado de forma resumida, destacando os principais pontos, como os programas sociais de combate à fome, que tirou 40 milhões de brasileiros da miséria, a conciliação com setores políticos burgueses (representados pelo PMDB) e as tenções no governo Dilma, afetado pela crise econômica e as manifestações iniciadas em 2013, fato esse também bastante resumido. Mas não há imparcialidade (e nem é obrigatório ter), pois a diretora deixa claro quais os seus posicionamentos diante os fatos, onde ela denuncia um golpe, mas de forma alguma, pode-se dizer que houve manipulação dos mesmos. As imagens de arquivo e as que ela mesma registrou, são verídicos. Ou seja, ela usa a realidade concreta como argumento de suas opiniões. O texto de narração é eficientemente melancólico. Até o mais frio dos espectadores, é capaz de sentir tal abatimento, principalmente sendo um brasileiro que acompanhou tudo, tendo consciência do que acontecia. Os problemas que se podem destacar são uma certa verbalização de certas informações que poderiam ser substituídas por imagens de arquivo, que até poderiam sustentar as observações da diretora, como por exemplo, as declarações preconceituosas e proto-fascistas de Bolsonaro, que reforçariam o perigo que ele representa, principalmente por ter um plano de poder.

No trabalho de direção em si, há um excelente uso de planos abertos, sejam aéreos ou em solo firme, mostrando a arquitetura de Brasília, como uma cidade cujo centro do poder é afastado e isolado das massas, destacando a concretização da polarização política, com muitos planos longos vagarosos, cirurgicamente pensados. Em outras sequências, são usados movimentos circulares situando a ambientação e focos em figuras públicas, muitas vezes reagindo a certos acontecimentos. Há muitas entrevistas com muitas pessoas envolvidas no processo em tempo real desses acontecimentos, que até saem do modelo convencional dos documentários. Vale também destacar as imagens de arquivo, muito bem editadas, em perfeita sincronia com o que é comentado. O único ponto fraco dessa direção, é o ritmo que, no final do segundo ato, fica um tanto lento, mas que se recupera na conclusão.

Em aspectos técnicos. A cinematografia é realista, registrando as sombras de certas ambientações, reforçando um aspecto de algo sombrio que toma Brasília. Mas o destaque aqui é para a trilha sonora, a base de composições orquestrais que ditam muito bem um tom tenso, caótico e quase apocalíptico, mas dosado, para que não fique apelativo demais.

Democracia em Vertigem é um filme de tom consistente, com um excelente trabalho de direção e roteiro, que apesar de alguns problemas pontuais, não perde seu valor, como uma obra cinematográfica forte e impactante, que provavelmente vai ficar na memória de muitos brasileiros. Nota 9 (nove).



Crítica política:

Avaliado o filme como produto audiovisual, vamos a análise política. Diferente de outras produções originais da Netflix, não foi, de fato, produzido pelo serviço de streaming, mas sim pela sua realizadora, Petra Costa. Logo, o papel aqui é de distribuidora do filme. Em outras palavras, não houve nenhuma participação da Netflix, nem como empresa que demanda um projeto artístico e nem que se oferece para bancar a produção. Somado a isso, recentemente, a Netflix, também como distribuidora, exibiu a série O Mecanismo, criada por José Padilha, que, através da ficção, reconstrói o processo da Lava-Jato manipulando alguns fatos, como por exemplo, o ex presidente Lula dizendo falas de Romero Jucá sobre estancar a sangria, e pode-se entender que, o fato do serviço de streaming exibir duas produções audiovisuais sobre os mesmos assuntos, mas ideologicamente opostas, é uma tentativa de alegar imparcialidade diante do assunto e não perder clientes de ambos os lados do espectro político. Mas como todos sabem, empresas não são isentas, ainda mais uma como a Netflix, que se tornou o maior serviço de streaming do mundo, conseguindo superar até a TV por assinatura. Logo, é de se entender o duplo papel desse documentário, e todo o seu sucesso. Ele existe para que uma grande empresa capitalista não perca metade dos seus consumidores no Brasil – mas é importante frisar que, se o conteúdo tivesse um teor mais radical a esquerda, provavelmente não seria exibido pelo serviço – e um papel político de tentar dialogar com o público que também acompanhou o processo, muitas vezes enviesado pela opinião moldada pela mídia, informar o público estrangeiro a partir de uma perspectiva igualmente alternativa aos veículos de comunicação tradicionais, apresentando a visão assertiva de que vimos um processo de golpe e que a democracia (burguesa – e isso vai ser considerado mais à frente no texto) sofre ameaça no atual cenário de ascensão de Bolsonaro, mas o que temos aqui é uma narrativa que, apesar de flertar com uma crítica a estrutura do sistema, continua presa ao tipo de visão de conjuntura equivocada, mais baseada em apego partidário do que em análise concreta da realidade. A ideia de democracia aqui trabalhada é a democracia burguesa, e só. A diretora reconhece em dado momento que os períodos democráticos existem por concessão da classe burguesa, quando o sistema capitalista não está com suas contradições expostas, mas parece achar que só a democracia burguesa é o ideal para a sociedade e que vivemos seu pleno funcionamento durante os governos petistas, apesar da conciliação com as velhas elites. Nisso, Petra Costa também deixa passar em branco certos elementos muito presentes no governo Lula, que apesar de também existirem em outros governos, não foram combatidos pelo PT, nesse período de respiro democrático apontado por ela.

O primeiro que podemos citar é o genocídio praticado pela polícia militar nas periferias do Brasil, com a desculpa do combate as drogas, que teve como resultado, a intervenção militar no Rio de Janeiro, e é responsável pela grande maioria dos homicídios no Brasil, onde os corpos são pessoas negras e pobres, independente do gênero ou da idade. Basicamente, uma grande parte da população do país, aqueles que, teoricamente, decidem o processo democrático durante as eleições, está sendo morta pouco a pouco. Se o Estado burguês dar, ampliando o direito ao voto, tirando a necessidade de ter escolaridade (para uma população de maioria analfabeta), também tira, matando os que gozam desse direito. No governo Lula, que ostentava maioria no congresso e 80% de aprovação popular, não houveram políticas como descriminalização das drogas ou desmilitarização da polícia, que poderiam, ao menos, reduzir o banho de sangue.

O segundo foi a “Missão de Paz” do governo Lula no Haiti. Afinal, como o PT pode representar a chama democrática no Brasil se pratica imperialismo em outros países? Caso você, nobre leitor, não saiba do que falo, leia a matéria do site Esquerda Diário, cujo link ficará no final do texto, pois há muitas informações e não dar para resumir.

O terceiro elemento é a lei antiterrorismo, aprovada pelo governo Dilma, que é usada como desculpa para reprimir movimentos sociais voltados para a causa dos trabalhadores, de negros, mulheres e lgbts, muitos com orientação política marxista ou anarquista, que normalmente é quem faz oposição de esquerda ao petismo e também é visto como ameaça em potencial pelo Estado burguês, principalmente em períodos de crise do sistema capitalista.

Tudo isso, aparentemente, serve para suavizar os governos petistas, ignorando seus piores pontos e, talvez inconscientemente, vendendo a democracia burguesa como algo que, apesar de ser frágil (pois dura até onde a burguesia permite, e por isso, ineficiente) é o melhor que há. A ideia de uma insurreição popular, onde o povo de fato conduza o processo político, é tratado como um sonho antigo, pelo qual seus pais lutaram no passado, e só. Nisso, há o destaque messiânico do discurso de Lula, onde ele diz acreditar na justiça burguesa, e que por isso não fez uma revolução.

Como obra audiovisual, o documentário é quase perfeito, mas como comentário político, é acuado, e até bastante ingênuo. Dentro do atual caráter da luta de classes, onde uma real virada autoritária no mundo se mostra uma realidade, onde o sistema capitalista novamente busca precarizar o trabalho e reduzir a qualidade de vida dos trabalhadores para não terem que pagar a conta da crise do sistema, um saudosismo pela democracia burguesa não cumpre um papel eficiente em politizar as massas.

- Gabriel Pinheiro, trabalhador, estudante e militante comunista.

https://esquerdadiario.com.br/O-brutal-legado-de-opressao-das-tropas-brasileiras-nos-13-anos-de-ocupacao-do-Haiti
Gabriel Craveiro
Enviado por Gabriel Craveiro em 25/07/2019
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