O Mulo, de Darcy Ribeiro
 

O Mulo, de Darcy Ribeiro, traz uma intertextualidade com Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, ao apresentar um homem sertanejo que rememora sua vida a um interlocutor. Assim como Riobaldo passa por travessias, Philogônio também experimenta fases em sua vida. Entretanto, o protagonista de O Mulo é marcado pelo medo da morte, em busca de compreensão de sua própria existência, num estado de desamparo. A sua ascendência familiar é incerta; sendo estéril (daí a explicação do título), não deixou filhos; é, pois, o “fundador” de si mesmo. Quando criança, foi tratado como um objeto, sendo chamado de “Trem”; depois ganha um pouco de dignidade, passando a nomear-se “Terezo”; sua primeira certidão lhe deu o nome de “Terêncio Bogeá Filho”; mas foi como “Philogônio de Castro Maya” que conseguiu se tornar sujeito, homem de respeito, proprietário de terras, patrão. Homem de “fodeções” com animais, homens e mulheres; estas foram muitas em sua vida, algumas lhe deixando marcas inesquecíveis; como a ultrajante Inhá que lhe traiu a confiança; a boa de cama, mas desasseada Emilinha; e Sia Mia, moça de família, com quem se casou para herdar uma fazenda, única de amor mais afetivo, que morre prematuramente. Sendo um homem pecador, Philogônio escreve sua confissão-testamento para um padre anônimo, o qual se tornará seu herdeiro universal. Em seu escrito, vai traçando quais devem ser as obrigações do sacerdote, como vir morar em sua propriedade dos Laranjos e rezar durante um ano missa todos os dias pelo sufrágio de sua alma. Dessa forma, até depois de sua morte, Philogônio deixa ordens, característica de quem teve uma formação de vida assinalada pelo mando. Mas para chegar aonde chegou, passou por muitas humilhações e teve de lutar. Foi matador, a morte acompanhou sua vida, assassinatos cometidos pelas próprias mãos e sob suas ordens. Pesadelos o acompanham durante a sua escrita, principalmente em relação ao sexo e à morte. A palavra se torna para ele uma forma de purgação. Confessando-se “através da pena”, sente mais à vontade para relatar seus pecados, mediante uma linguagem despudorada. O tempo da enunciação (escrita) vai se alternando com o tempo do enunciado (relato), numa convergência metalinguística, em que se percebe um protagonista solitário. No último capítulo, o seu homem de confiança, Militão, que ficaria responsável por procurar um padre digno de ser seu confessor e herdeiro, o qual leria seu escrito, é assassinado. E não há ninguém que poderia substituir Militão. Se a confissão-testamento não chegou ao remetente esperado, alcançou a nós, leitores que passamos a ser seus herdeiros sem papel passado; apenas ouvintes, cabendo a nós lhe dar ou não a absolvição.

 

RIBEIRO, Darcy. O Mulo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.