O filme Soul: uma narrativa existencialista

*Spoiler

Para iniciar é preciso fazer uma breve introdução ao existencialismo: Foi uma corrente filosófica inaugurada em meados do século XIX, a partir das ideias do filósofo dinamarquês Soren Kierkegaard. Não obstante, o existencialismo chegou ao seu ápice com os filósofos Nietzsche e Sartre; e apesar dos filósofos existencialistas naturalmente possuírem diferenças teóricas, há algo no cerne dessa filosofia que os coloca no mesmo patamar, pois em termos gerais, o existencialismo dá enfoque ao existir em si mesmo, ou seja segundo essa doutrina não há um “propósito” inerente à existência humana, a não ser aquele que o indivíduo dá para si enquanto existe. Para ilustrar, há uma famosa afirmação de Sartre: “A existência precede a essência.” Tal afirmação pressupõe que o indivíduo humano por ser dotado de racionalidade, é capaz de ampliar as próprias perspectivas existenciais, pois ele pode refletir acerca de sua condição humana, e por conseguinte moldar a própria essência conforme adquire consciência. Sendo assim, diferente de uma planta que tem sua essência e funções predeterminadas antes mesmo de existir, o mesmo não se dá com o ser humano. A premissa básica é: primeiro o ser humano existe, depois ele se faz. E sim, o ser humano possui predisposições biológicas e psicológicas, no entanto, ele necessita de estímulos externos para se desenvolver, e é capaz de mudar conforme vive; a partir de tal premissa, o indivíduo passa a ver sua própria existência como um fim em si mesma, e procura explorar a própria liberdade de se concretizar no mundo.

O filme Soul, apesar do nome, não centraliza questões religiosas como o “pós-vida.” A narrativa gira em torno de Joe, um professor de música frustrado, que passa a vida ensinando jovens muitas vezes desinteressados, quando seu maior sonho sempre foi tocar jazz com artistas ilustres e ganhar prestígio com isso. Certo dia, Joe recebe um convite de um ex-aluno para tocar jazz na banda de uma artista muito admirada; após a ligação, Joe acaba sofrendo um acidente que o leva à morte, no entanto, sua consciência ou alma, se vê presa em uma espécie de “esteira” em direção ao “além-vida", ao se deparar com a própria morte, Joe é tomado por angústia e inconformismo, pois ele não consegue aceitar que morreu quando finalmente estava prestes a alcançar o que considerava ser o seu “propósito”; em desespero, ele tenta fugir da “luz no fim da esteira”, mas acaba caindo na escola da vida ou pré-vida, uma espécie de dimensão habitada por consciências que ainda não conheceram a terra, tais consciências necessitam encontrar um propósito primordial antes de irem para a terra, e para isso, são treinadas por aqueles que assim como Joe, já a habitaram algum dia. Joe fica encarregado de ajudar uma dessas almas, e o nome dela é 22, uma alma um tanto peculiar, já que ela passou séculos tentando achar o seu propósito, e foi orientada por todos os tipos de pessoas, mas nunca o encontrou; 22 mostra-se sem a menor vontade de habitar a terra, enquanto Joe quer retornar ao seu corpo a qualquer custo; acontece que em meio a trama, Joe acaba encarnando no corpo de um gato e 22 encarna no corpo terreno de Joe, dentro desse conflito, 22 conhece a terra, ela conversa com pessoas, e aprecia a vida intensamente, desde saborear uma pizza até se emocionar com uma música; ela então se convence de que talvez o seu “propósito” seja apreciar a existência como um fim em si mesma. No final, Joe retorna ao seu corpo e realiza o que tanto queria, no entanto, ele percebe que não era exatamente aquilo que almejava, afinal, e depois de alcançar o seu objetivo, o que viria? O significado da trama depende do contraste e interação entre os dois personagens, dado que, um aprende com o outro, e Joe por fim percebe que a existência humana não possui uma finalidade inerente a si, e que somos seres multifacetados.

O existencialismo permeia a totalidade da trama, dado que, apesar de se ter uma dimensão “pré-vida" no filme; o enredo expõe a personagem 22, cuja natureza aponta a complexidade incutida no conceito de “propósito”, já que ela só foi capaz de encontrar o propósito da sua existência após existir. Além disso, a personagem não possui um propósito específico, como: ensinar, dançar e etc. Seu “objetivo” final é apreciar a vida e se fazer no mundo como um ser integral. A natureza de 22 indaga o essencialismo ( sustenta a primazia da essência sobre a existência) de Joe, pois o personagem acaba limitando os próprios ângulos existenciais ao focar apenas no jazz e em seus objetivos com a música; desse modo se esquece de explorar outros lados de si mesmo.

Conclui-se então, que aspectos culturais, papéis sociais e estereótipos, podem estimular um senso de determinismo no indivíduo, como ocorre com o Joe e sua fissura pelo jazz; lembrando que o jazz tem como berço a cultura afro-americana, e Joe é um homem negro. Nota-se aqui uma espécie de “limitação existencial" por conta das lentes culturais e da negritude. Outro ponto a ser ressaltado é que no filme, outras pessoas acabam muito alienadas da própria existência, seja por meio das aparências nas redes sociais, ou de um trabalho que anula o indivíduo enquanto a vida continua passando. Há uma clara reflexão acerca das possibilidades a serem exploradas pelo indivíduo. Para finalizar ficam alguns questionamentos acerca da existência: por mais que tenhamos paixão por algo, esse algo seria o propósito final da nossa existência? Será que realmente escolhemos nossos caminhos de forma consciente? A maioria dos indivíduos vive ou apenas existe de forma inautêntica e adaptativa? E se o propósito da vida for apreciar o céu enquanto ponderamos a magnitude da existência?

Letícia Sales
Enviado por Letícia Sales em 11/01/2021
Reeditado em 13/01/2021
Código do texto: T7157500
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