ANÁLISE LITERÁRIA DO CONTO “GUARDE SEGREDO”

O conto “Guarde Segredo” foi escrito pela escritora afro-brasileira Esmeralda Ribeiro. Além de escritora de poemas e contos, Esmeralda também é jornalista, diretora do projeto cultural “Quilombhoje” e coordenadora editorial da série “Cadernos negros” (LITERAFRO, 2020). De acordo com Neves (2009, p.3), o conto em questão foi publicado no ano de 1991, ou seja, há trinta anos. A obra pertence à corrente da Literatura Afro-brasileira, o que implica, portanto, que ela vincula-se à interação dinâmica de cinco variáveis: temática, autoria, ponto de vista, linguagem e público (DUARTE, 2010).

O tema central dessa narrativa gira em torno de uma não resignação ao racismo, o que, consequentemente, acarreta uma justiça praticada com as próprias mãos. O assunto abordado, por sua vez, é o assassinato de um jovem branco racista cometido pela própria namorada, que é afro-brasileira. De forma sintética, o enredo apresenta uma jovem que, após o despejo de sua família, foi morar com a avó. De acordo com a minha interpretação, nessa casa, as duas têm visões com a figura do escritor afro-brasileiro Lima Barreto, o qual é uma espécie de espectro que escreve a história e o destino das duas, inclusive o derradeiro evento do esfaqueamento do abastado jovem racista. Pode-se inferir, portanto, que a mensagem que o conto quer transmitir é que toda atitude tem um limite de resignação, aceitação e subordinação, inclusive a tolerância com ações racistas.

No que concerne ao enredo do conto, é verificável a presença de quatro momentos distintos, sendo que cada um é responsável pelo desenvolvimento da unidade temática da narrativa. Logo no início, na exposição, Ribeiro introduz o contexto e a paisagem suburbana em que a história acontece e apresenta alguns personagens importantes, como a protagonista que não recebe nome, sua avó Olívia, seu pai e sua mãe. Esse fato pode ser observado nas seguintes passagens, as quais mostram o início e o fim dessa primeira parte (RIBEIRO, 1991):

“Prezada Senhora: Recebo com surpresa sua carta perguntando-me sobre vovó. [...] Ela havia dito aquilo como se já soubesse sobre o nosso despejo. Como se estivesse nos olhando sempre. Caminhamos. [...]”

Após isso, o desenvolvimento da trama é iniciado com o mistério acerca de Lima Barreto –o qual não é identificado de imediato-, perpassando pelo cotidiano simples –mas inquietante- da avó e da neta naquela casa antiga e culminado no início do namoro da protagonista com o jovem rico Cassi Jones. Tal trecho do conto é resumidamente exemplificado nas seguintes passagens iniciais e finais do conto (RIBEIRO, 1991):

“[...] – Temos visita, vovó? – perguntei.

– Não. "Ele" já foi embora – respondeu. [...]

Um dia de manhã, me disse: "Como vai Cassi Jones?" Fiquei apavorada e não lhe respondi. Ela também não insistiu. Porém eu não conseguia entender. [...]

Depois do desenvolvimento, o clímax do enredo chega arrebatador conseguinte aos asteriscos utilizados para demarcar a troca de cena do texto. Nessa parte, a protagonista é confrontada pela premonição funesta de sua vó –provavelmente vinda da predição de Lima Barreto-, passando pelas agressões que ela sofreu pela mãe de Cassi Jones e resultando no posterior homicídio do jovem rico. Tal sequência é evidenciada pelas frases abaixo, retiradas do início e do fim do clímax do conto (RIBEIRO, 1991):

“[...] Nunca mais esquecerei aquele dia, porque tudo aconteceu tão rápido. Era Dia de Todos os Santos. Começou de manhã, quando tomávamos chá.

[...] – Matei – respondi. "Como soube disso?", interroguei-me.

– Bravo! Esse era o outro final que eu queria para o cafajeste do Cassi Jones. [...]”

Por fim, o desfecho dessa narrativa é consumado por meio da comemoração de Lima Barreto relativa ao assassinato, o que se sucede na chegada sorrateira da polícia, os delírios simbológicos da protagonista e a fuga dela para algum lugar distante em que poderia se esconder e, após alguns anos, escrever a carta para alguma antiga amiga que a pedira sobre como estava a sua avó. Tais acontecimentos localizam-se entre os dois trechos destacados abaixo (RIBEIRO, 1991):

“[...] “O escritor tirou da máquina o papel, rasgou em pedacinhos e jogou no lixo. Olhou para vovó e disse: ‘Obrigado. Eternamente obrigado’. [...] Não sei como conseguiu me achar. Mas, por favor, guarde eternamente este segredo.”

Em relação aos personagens da história, observa-se que a protagonista, como já foi exaustivamente comentado, é a jovem mulher que foi morar com a avó. Além disso, ela e a vovó Olívia são as únicas personagens consideradas redondas, pois o texto conta que ambas eram afrodescendentes, como aborda o trecho “[...]Tinha a mesma cor, o rosto igualmente sem nenhuma ruga. Magra e baixinha, e cabelos de algodão [...]” e o trecho “[...]Você é a quinta negra que meu filho deflorou [...]”. Além disso, a protagonista é apresentada como uma menina pobre, ignorada pelos pais e mostra-se, de começo, ingênua, inocente e medrosa; porém, com o desenrolar dos fatos, sua personalidade transforma-se em culpada, corajosa e sórdida, pois cometeu o homicídio à queima-roupa. No caso da avó, o texto aponta que ela “era firme e autoritária”, “geniosa” e a narrativa deixa implícito que, embora elas só ocupassem dois cômodos, ela tinha uma casa e um terreno grande, além de ser bastante antirracista. Lima Barreto é quase uma personificação fantasmagórica da vó Olívia, como diz o trecho: “[...] Talvez fosse impressão, porém ela tinha no rosto o mesmo sorriso daquele homem [...]”; o que também o torna um personagem com características bem similares às da avó. Já Cassi Jones e a mãe dele executam o papel de antagonistas e são considerados tipos planos, por não terem aprofundamento de suas características. O papai e a mamãe da protagonista, bem como a mulher da rua, são personagens secundários, os quais também são tipos planos.

No tocante à narração, ela é em primeira pessoa e é realizada pela narradora personagem que também é a protagonista da história. Tudo o que acontece na trama vem das experiências vividas por ela, até porque o conto é escrito em forma de carta pessoal destinada a uma antiga amiga. Essa narração é aferível no seguinte trecho (RIBEIRO, 1991):

[...]Tudo começou quando eu, papai e mamãe fomos despejados da nossa quitinete em Copacabana. Fui morar com vovó Olívia no subúrbio do Rio de Janeiro. Moráva­mos na Rua Major Mascarenhas, no Bairro de Todos os Santos. Eu devia ter uns onze anos na época. [...]

No que diz respeito ao tipo de discurso predominante no texto narrativo, percebe-se que o discurso indireto livre faz-se presente. Segundo Gancho (2001), esse discurso é “um registro de fala ou de pensamento de personagem, que consiste num meio-termo entre o discurso direto e o indireto, porque apresenta expressões típicas do personagem mas também a mediação do narrador”, como o excerto abaixo (RIBEIRO, 1991):

[...] Conversavam e riam muito. Por um momento, juro tê-lo ouvido dizer: "Esperávamos por você. Entre". Eu pensava: "Tudo está acontecendo ao mesmo tempo".

– Você matou Cassi Jones? – Ele interrompeu o meu devaneio.

– Matei – respondi. "Como soube disso?", interroguei-me. [...]

Em relação à época em que a história se passa, nota-se que, como o conto foi lançado em 1991, a trama deve ocorrer nos anos finais da década de 1980, pois o texto mostrou que Lima Barreto datilografava: “[...] Porém, quando olhei lá dentro, no lugar de vovó costurando sobre a mesinha, vi o mesmo homem do quadro e que brincava comigo. Ele datilografava alguma coisa apressadamente [...]”; e que as características da casa eram antigas: “[...] O portão e o muro eram de madeira e bem altos [...]”. O tempo do conto é psicológico, pois, como se trata de uma carta escrita a uma amiga, a protagonista apenas deixou suas ideias fluírem e as escreveu no papel, sem preocupar-se com a linearidade dos fatos, como aparece no fragmento: “Vovó Olívia costurava uma colcha de retalhos. Costurava ponto por ponto. Não tenho certeza, pois nunca vi a colcha pronta”. Já a duração da história da carta é de, em média, seis anos, pois a protagonista conta que foi morar lá aos onze anos e que o incidente final ocorreu quando ela tinha dezessete anos, como as duas passagens abaixo demonstram (RIBEIRO, 1991):

“Fui morar com vovó Olívia no subúrbio do Rio de Janeiro. Moráva­mos na Rua Major Mascarenhas, no Bairro de Todos os Santos. Eu devia ter uns onze anos na época. [...]Os anos foram passando, eu estava com dezessete anos, mas meu corpo parecia de uma mulher. [...] ”

Concernente ao espaço e ao ambiente do conto, a narradora nos descreve detalhadamente a seguinte localização geográfica: “[...] Tudo começou quando eu, papai e mamãe fomos despejados da nossa quitinete em Copacabana. Fui morar com vovó Olívia no subúrbio do Rio de Janeiro. Morávamos na Rua Major Mascarenhas, no Bairro de Todos os Santos [...]”. Entretanto, nenhuma informação relativa à religião foi exibida durante o transcorrer da história. A situação econômico-política retratada nessa obra literária, por seu turno, é envolvida, provavelmente, pelo início da Nova República em território nacional, o que coincide com a redemocratização do país. Com isso, os pais da protagonista veem-se na situação de despejo por não terem muitos recursos financeiros, o que resulta, então, na habitação da casa de sua avó, a qual parece ter mais condições. Em decorrência de todos os fatores relatados até aqui, depreende-se, pois, que o clima psicológico das situações descritas e narradas é carregado por uma aura misteriosa, excêntrica e desconfiança acerca da identidade do escritor Lima Barreto, pois é sabido que ele morreu décadas atrás. Ademais, o clímax do conto desvela uma atmosfera de violência exacerbada –devido ao esfaqueamento-, bem como de frieza e bravura, pois a protagonista foi muito destemida ao matar seu namorado à sangue frio.

Constata-se, dessa maneira, que o conto “Guarde Segredo” é uma narrativa que denuncia o racismo excruciante que era vigente no Rio de Janeiro de três décadas atrás. Esmeralda é extremamente habilidosa em traçar um paralelo com o romance “Clara dos Anjos”, o qual foi o último livro escrito pelo autor afro-brasileiro Lima Barreto, que, embora tenha morrido em 1922, é personagem recorrente no conto (NEVES, 2009). Na trama, Barreto tem uma importância fundamental e vital na existência de vó Olívia, pois, muito provavelmente, deve ter marcado significativamente as experiências de leitura da senhora, visto que o escritor, na sua época, foi revolucionário ao abordar o racismo escancarado daquela sociedade. Nesse sentido, o autor adquire uma forma fantasmagórica -ou até mesmo divina- na casa e no imaginário da mulher e da neta. Prefiro acreditar na teoria de ser algo divino, pois as atitudes dele me lembraram muito as deusas gregas conhecidas como as três irmãs moiras, as quais teciam o fio da vida na Roda da Fortuna e determinavam o destino dos humanos e dos outros deuses.

Essa releitura do clássico pré-modernista permitiu a subversão comportamental da personagem principal. Como ela foi posta em circunstâncias mais modernas, ela não se submete à humilhação e à violência moral e física de pessoas que se consideram -erroneamente- superiores e, por estar exaustar de lutar contra esse preconceito arcaico que já deveria estar extinto, toma a decisão de se vingar delas. Por isso, torna-se válido resgatar a sentença que a avó Olívia proferiu após saber do incidente ocorrido: "Nós não devemos aceitar o destino com resignação". É notável, então, a extrema importância que Lima Barreto e a vó Olívia –pessoas mais velhas com anos de luta contra o racismo- tiveram na história de vida da protagonista.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DUARTE, Eduardo de Assis. Por um conceito de literatura afro-brasileira. 17/10/2010. Terceira Margem. Rio de Janeiro. Número 23. p. 113-138. Julho/dezembro de 2010.

GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. Série Princípios. Editora Ática. Ano de 2001.

LITERAFRO. Esmeralda Ribeiro. 07/04/2020. Disponível em: < http://www.letras.ufmg.br/literafro/autoras/244-esmeralda-ribeiro>. Acesso em: 30/08/2021.

NEVES, José Eugênio das. Esmeralda Ribeiro e Lima Barreto: um diálogo sem segredos. Terra Roxa e outras terras: Revista de Estudos Literários. 30/12/2009. Disponível em: < http://www.uel.br/pos/letras/terraroxa/g_pdf/vol17B/TRvol17Be.pdf>. Acesso em: 30/08/2021.

RIBEIRO, Esmeralda. “Guarde Segredo” Literafro: o portal da literatura afro-brasileira. Disponível em: < http://www.letras.ufmg.br/literafro/autoras/24-textos-das-autoras/961-esmeralda-ribeiro-guarde-segredo>. Acesso em: 30/08/2021.