Acabou chorare, de Novos Baianos


Com uma proposta de vida bem ao estilo hippie, um grupo de amigos decidem morar no Cantinho do Vovô, um pequeno sítio em Jacarepaguá no Rio de Janeiro. Todos, baianos, com exceção da fluminense Baby Consuelo, com uma energia musical correndo nas veias intensamente, formam uma das bandas mais icônicas da Música Popular Brasileira. O nome do grupo surgiu quando o coordenador da quinta edição do Festival da Música Popular Brasileira da Rede Record, Marcos Antônio Riso, em 1969, os apresentou como os “novos baianos”, uma vez que, em 1967, baianos como Caetano Veloso e Gilberto Gil já haviam se consagrado na onda dos festivais. A apresentação desses novos baianos prometia com uma canção repleta de referências musicais psicodélicas das guitarras dissonantes, ao gosto tropicalista de Os Mutantes.

Quanto ao álbum Acabou chorare, de 1972, destaca-se a influência da Bossa Nova, através do mestre João Gilberto. Luiz Galvão também é de Juazeiro da Bahia, como João, e eram amigos. Este apresentou o samba “Brasil Pandeiro”, de Assis Valente, o qual figurou como música de abertura do álbum. João Gilberto acompanhou os Novos Baianos e deixou um pouquinho de sua Bossa Nova correr no estilo eclético do grupo.

O álbum conta com dez faixas:

1. “Brasil Pandeiro” é um samba de exaltação com solo melódico em ritmo de chorinho. A imagem da brasilidade mestiça é contagiante. O contexto remete aos Estados Unidos, que estavam se deliciando com a voz da luso-brasileira Carmen Miranda; o Tio Sam “está querendo conhecer a nossa batucada”, além de ter o seu prato melhorado com o “molho da baiana”. A culinária com cuscuz, acarajé, abará; o ecletismo religioso dos terreiros e das pastorinhas; o batuque e o samba são representações de nossa cultura. Espaços como a “Penha” e “Morro do Vintém” se contrastam com a “Casa Branca”, porém, esta já está se recheando de elementos brasileiros, assim como nós absorvemos muito da cultura estadunidense, eis o processo antropófago preconizado por Oswald de Andrade em 1928.

2. “Preta Pretinha” é uma composição harmônica e melodicamente simples, tendo no solo do bandolim sua maior ornamentação. As repetições são constantes em estrutura de anáforas e de antecantos. A aliteração é outro recurso estético muito presente, ou seja, a repetição de consoantes. Semanticamente, o eu lírico não tem a correspondência do ser amado. A barca corre entre os chamados, restando a saudade. Biograficamente, Luiz Galvão confidenciou que a canção surgiu de um insucesso amoroso com uma moça que conheceu em Niterói.

3. “Tinindo Trincando” cumpre bem a antropofagia oswaldiana, pois mescla ritmos como baião, rock, swing e samba. Dialogando com a suave voz de Baby Consuelo, o solo da guitarra de Pepeu Gomes contribui para o tom lisérgico. O título traz um verbo onomatopeico, “tinir” que remete ao som vibrante de metais ou vidros, ao mesmo tempo que remete metaforicamente ao calor do sol. O verbo “trincar” também remete a ruído metálico, configurando um pleonasmo; além de ser sinônimo de triturar, partir em pedaços. Contudo, metaforicamente é usado para se referir a bebidas bem geladas, o que cria uma antítese com tinir, sol tinindo, muito quente. Na verdade, a antítese é a chave da canção como em “venho e vou”, “chegar e ir”. A imagem antitética se confirma também na expressão idiomática “assim assado”, remetendo a um jeito e outro jeito.

4. “Swing de Campo Grande” inicia-se com a metáfora: “minha carne é de carnaval”, afirmando já a identidade cultural brasileira. Carnaval não só na carne, o que remete ao prazer mundano, mas também no coração, dentro de si. O amor como uma seta arremessada, tal qual um cupido, porém lançada em “qualquer pedaço”. Nesse sentido, “swing” está ligado a uma troca de casais, rompendo com a convenção do amor somente a dois. De toca em toca, de moita em moita, sem marcar nenhum lugar ou pessoa específica, o “campo é grande” para isso. Eis aí a grande festa da vida pelo carnaval, em que amores são vividos sem compromissos. A letra da canção também pode ser interpretada numa perspectiva mais mística, diante do contexto ditatorial de vigília mais intensa. Virar toca e virar moita seria um disfarce, como numa alegoria carnavalesca, em que as fantasias ocultam o folião. Paulinho, em uma entrevista, afirmou que o refrão “eu não marco toca, eu viro toca, eu viro moita” é uma expressão de reza para evitar o mal.

5. “Acabou chorare” é a canção que nomeia o álbum. Seu título veio de uma história que João Gilberto contou a Luiz Galvão: enquanto João estava no México, sua filha sofreu uma queda, e o pai foi acudi-la; a criança para acalmá-lo disse “acabou chorare”, num “portunhol” ainda em formação. Essa garotinha se tornou a cantora Bebel Gilberto. E obviamente, a Bossa Nova na originalidade dos Novos baianos está presente nesta música. No tom lúdico, a canção é repleta de sugestões de falas infantis num processo de construção de palavras como em “no bu bu bolindo”, além das recorrentes onomatopeias. Na letra, o eu poético percebe uma abelhinha que entra “talvez pelo buraquinho”, invadindo lhe a casa, acordando-o na cama e sentando em sua mão. Imagens também criativas do universo lúdico como um “carneirinho” e um “sapo na lagoa” completam essa canção icônica.

6. “Mistério do planeta” traz, na letra, o mistério do ser que se joga no mundo, sendo o que puder ser, “andando por todos os cantos e pela lei natural dos encontros” se deixando e recebendo “um tanto”; tal qual a experimentação da lei da ação e reação de Isaac Newton. Na antítese da nudez e do vestido, do passado e do presente, somos todos participantes do mistério do planeta. O eu poético da canção é “um moleque do Brasil”, um malandro que pede e dá esmolas, ou seja, um homem simples, tipicamente popular que se esbarra no “tríplice mistério do stop”. Esse “parar” remete metaforicamente ao Regime Militar. A canção, portanto, é representativa do próprio estilo hippie dos Novos Baianos, os quais transgrediam o sistema imposto com sua rebeldia malandra e música enigmática. A linguagem essencialmente conotativa, carregada de imagens metafóricas é uma das formas de dizer, sem dizer; e, com esse disfarce, se mostrar e se representar, andando e pensando “sempre com mais de um, por isso ninguém vê” sua “sacola”. Aí dentro está bem escondido o anseio de uma juventude transviada.

7. “A menina dança”, na voz de Baby Consuelo, é a repleta alegria, dançando por fora e por dentro. O eu feminino se harmoniza com a voz da cantora que chega depois que tudo está revirado, depois de esgotado o tempo regulamentar, numa alusão alegórica a sua presença depois de grandes cantoras já terem se consagrado como Elis Regina, Nara Leão e Gal Costa. Se virando nesse meio, “no canto do cisco, no canto do olho, a menina dança”. Com ou sem plateia – “se você fecha o olho” – a menina ainda dança “até o sol raiar”. Destaque para o intertexto com Narizinho de Monteiro Lobato: “o meu nariz arrebitado”, menina que não leva desaforo para casa.

8. “Besta é tu” é um convite ao “carpe diem” e um alerta para aqueles que negam este mundo na expectativa de uma outra realidade. O coro (backing vocals) é uma constante sob a voz de Moraes Moreira com o fundo “besta é tu” e “por que não viver?”. A vida está aqui, neste mundo, a vida está lá fora com sua pujança: no sol, no futebol do Maracanã, na rua com seus perigos, no brinquedo do menino, na morena do Rio. “E pra ter outro mundo é preci-necessário viver”, uma construção neológica que traz à mente a frase latina de Pompeu, “navegar é preciso, viver não é preciso”, entendida aqui, fora sua polissemia, como viver a vida sem precisá-la, sem limitá-la, enfrentando os percalços que ela nos apresenta. Quanto ao título, Moraes Moreira teria esclarecido que “besta é tu” é uma onomatopeia no aprendizado do violão para o samba, bem popular na Bahia. Sem dúvida, tanto pelo tom jocoso onomatopeico, tanto pela letra, a canção nos convoca a quebrar limites, tradições e viver a vida com sua intensidade, dialogando assim com os ideais hippies.

9. “Um bilhete para Didi”, única composta por Jorginho Gomes, que todas as outras são de Luiz Galvão, algumas com parcerias, salvo “Brasil pandeiro” que é de Assis Valente, o qual não é integrante de Novos Baianos; a canção é totalmente instrumental. Tendo por instrumentação básica cavaquinho e triângulo, o ritmo tipicamente nacional, num misto de frevo, baião, chorinho, vai se acelerando até culminar em um rock progressivo de guitarra elétrica, bem ao gosto da antropofagia oswaldiana. A história da música conta com uma experimentação do percussionista Jorginho com um cavaquinho de uma corda só, com a contribuição de seu irmão Pepeu com a guitarra. O convite de fato ocorreu a Didi Gomes, o terceiro irmão, para substituir o baixista da banda, Dadi.

10. “Preta pretinha” se reprisa ao final do álbum numa versão mais reduzida, sem, contudo, perder a sua essência.

Segundo a Revista Rolling Stone Brasil de 2007, o álbum Acabou Chorare obteve o primeiro lugar entre os cem discos mais influentes. Formado inicialmente por Moraes Moreira; Baby Consuelo; Paulinho, boca de cantor; Luiz Galvão; Jorginho; Pepeu Gomes e Dadi; os Novos Baianos viveram como cantaram, num estilo de vida de contracultura revisitado, com ecos da marginália, da canção de protesto, da bossa nova, do tropicalismo, do rock. Deixaram com seu visual, homens de cabelos grandes, por exemplo, com seu modo de vida, comunidade alternativa, com seu ritmo musical antropofágico, uma marca icônica na história da cultura brasileira.

 

Novos Baianos. Acabou chorare. Som Livre, 1972. Ouvir o álbum