Análise do livro "Ânsia Eterna"

Em sua obra "Ânsia Eterna", a escritora carioca Júlia Lopes de Almeida reúne contos das mais variadas temáticas em uma abordagem que privilegia a perspectiva feminina no contexto histórico do início do século XX, tendo em vista os marcantes acontecimentos que permearam tal período na conjuntura brasileira, uma vez que despontavam no horizonte político a esperança de um regime republicano e a efervescência da abolição da escravidão, movimentos que tiveram seu reflexo na cultura do povo eternizada em ânsia na obra literária em questão, pois é inegável o engajamento de Júlia Lopes (assim chamada antes de casar-se com o poeta português Filinto de Almeida) em questões sociais. Sem receio de transparecer seus ideais abolicionistas e republicanos em sua escrita, a autora torna evidente seu tom de denúncia, apropriando-se das mazelas que mancham o povo brasileiro e narrando-as de modo poético e revolucionário em seus textos provocativos e irônicos, considerando-se que aspectos do cotidiano e o flerte com a possibilidade de epifanias são elementos nítidos na obra. A partir disso, não se pode negar a influência de Clarice Lispector, em razão de sua prosa intimista delineada pelo universo feminino e a de Machado de Assis, atentando-se à proximidade literária entre Júlia e Machado, sendo que ambos podem ser inseridos na mesma escola literária: o Realismo. No entanto, Júlia Lopes se destaca pela presença de concepções naturalistas aliadas ao realismo machadiano que lhe foi legado, a autora acrescenta ainda contornos que reviram as feridas da moralidade e das dimensões humanas, aproveitando-se do fato insólito, do episódio supostamente inenarrável e recheando seus contos com imaginação e com traços de seu pensamento singular. Diante de tamanho intelecto literário, sua bravura se estende para além do mundo das histórias fictícias, pois Júlia escreveu sua própria história na luta feminista em uma época de profunda submissão patriarcal, em que o direito ao reconhecimento de suas obras se erguia como uma façanha impensável.

Além disso, a escritora foi uma das idealizadoras da Academia Brasileira de Letras, entretanto, a face sexista da História encarregou-se de apagar a autora do conhecimento cultural compartilhado com a coletividade, e seu destino quanto escritora desembocou sem consolo no esquecimento, comum e desolado por tantos outros expoentes femininos que presentearam a cultura do país com tanta reverência, sem ao menos receberem como forma de agradecimento, o reconhecimento de seu lugar por mérito em nossa história. Certamente o nome Júlia Lopes de Almeida é completamente desconhecido pela maioria dos brasileiros, visto que relegadas ao segundo plano, personalidades femininas nunca dispuseram da mesma credibilidade de autores consagrados reconhecidos como grandes nomes da literatura no Brasil, e sendo comparados com os grandes clássicos mundiais de todos os tempos. Não se pode apagar os passos de Júlia Lopes e o tesouro de sua escrita, é fundamental reparar os erros do passado conservador por meio da recordação de preciosas heranças adormecidas, mas não de todo esquecidas, já que de vez em quando se observa o reavivamento de escritores pouco conhecidos fora do círculo acadêmico, cujo valor é finalmente reconhecido, após incontáveis anos de ânsia eterna.

É desse modo que o livro começa: com um conto cujo título carrega o nome do livro e que guiará as demais narrativas, em uma semiótica escrita que propõe a metalinguagem como figura central do conto, tanto em relação ao seu conteúdo, quanto aos vínculos que podem se estabelecer com o restante da obra. O conto "Ânsia Eterna" anuncia os mais novos ares literários ao tecer uma crítica ao Romantismo, tendência que será sucedida pelo viés do realismo e trata sobre o tema amoroso cobrindo-o com o véu da ironia, sob a ótica de uma ânsia que transcende o amor tal qual é retratado, e se amplia para a temática da tarefa da escrita como vocação e sentido de vida, capaz de imortalizar o ser em suas palavras ecoadas pelas páginas e sopradas para o mundo. Uma das personagens coadjuvantes do conto carrega traços de Macabéa, personagem do romance "A Hora da Estrela", o que novamente, estabelece uma ponte simbólica entre essas duas grandes autoras. O conto é escrito em terceira pessoa, assim como os demais contos do livro, e a autora o dedica ao jornalista João Luso, cuja trajetória assemelha-se aos episódios da vida da autora, em virtude da obsessão lusófona compartilhada, que poderia até tornar a subserviência à pátria uma responsabilidade menos nobre que o amor incondicional à Língua Portuguesa.

A suposição do contraste que se estabelece pelas aparências em detrimento da essência torna-se ainda mais perceptível no conto "O Caso de Ruth", dedicado ao colega presente na tribo de intelectuais fundadores da ABL: o jornalista Valentim Magalhães. A pesada carga social desse conto constrói-se a partir do retrato detalhado das relações na rígida hierarquia familiar perante a indecência da mulher e de seu fim trágico por consequência, trazendo à tona de forma objetiva e sem pudor, os tabus de época, como a castidade, o materialismo, o abuso sexual, que culminam em uma morte inaceitável aos severos padrões cristãos: o suicídio. A forma como Júlia Lopes incendeia suas narrativas com o forte apelo às incriminações sociais, confere à sua obra, impressionantes finais com matizes de ensinamento e sensatos alertas. A condição da mulher restrita aos moldes machistas também se repete no conto "Esperando", em que a mulher é colocada em posição de passividade e submissão inerentes ao pacto do casamento, tida como objeto ao qual não é necessário maiores explicações sobre as faltas e recorrentes demoras do marido. Por outro lado, a completa indiferença se mostra como fatalidade na vida de mulheres que optaram por viver na contramão das regras impostas pela tradição. Tal cenário se vê no conto "Incógnita", no qual o destino do desafio à norma é esmaecido pelo timbre obscuro enquanto a história se passa em um necrotério iluminado apenas pela especulação sobre quem seria a mulher em questão, desprovida de identidade por não ter sua liberdade cerceada.

Adotando uma postura radical até mesmo na escolha de sua filiação artístico-literária, Júlia Lopes explora os meandros mais pútridos que formam o ser humano, sendo o Naturalismo muito propenso à descrição sem distorções de um mundo às avessas. Ouso afirmar que o conto "Os Porcos" é aquele que melhor expressa características naturalistas, pois torna explícita a maldade humana com a mulher cabocla e abandonada grávida, designada a alimentar os porcos da fazenda com o fruto do próprio ventre, a mando de seu pai. Outro conto de forte teor naturalista é "A Caolha", que tem como eixo central a temática da ingratidão filial para com sua mãe, de aspecto repugnante. O tema do descaso entre mãe e filho também pode ser visto no conto "A morte da velha", que guarda como semelhança com "A Caolha", a noção de deficiência, vista como impedimento para o amor do filho, que diferentementemente do amor de mãe, não é ilustrado como um afeto incondicional. Os multifacetados conflitos entre pais e filhos são ainda assunto de discussão no conto "Pela Pátria", que se conclui de forma trágica, atendo-se a um ideal que transcende as relações familiares e se estende ao nacionalismo exacerbado, motivo de horror por parte da mãe cujo filho fora morto pelo próprio irmão. Já no conto "As histórias do conselheiro", o personagem nutre um profundo orgulho pelo filho, o que impede a aceitação de que o mesmo poderia cometer crimes e atrocidades, assim, o filho é visto com idealização e transformado em uma projeção frustrada de um pai que apenas enxerga a inocência de sua prole transviada. Abrandando o caráter inexorável dessa escola literária, o conto "In Extremis" apresenta o ciúme como sentimento diferenciador e surpreende pelo fato inusitado de enxergar no corpo da mulher, uma fonte de cura e profunda gratidão, terreno até então reservado à tentação da sedução carnal despertada no homem. É interessante notar que o conto "Perfil de Preta", um dos mais populares do livro, é dedicado a Machado de Assis, por tecer uma homenagem ao Realismo, ainda que contenha alusões sobrenaturais, bastante típicos da obra de Júlia. Mais uma vez o ciúme é colocado em pauta, e a forte inclinação para o Naturalismo é observada pelo determinismo biológico colocado em cheque e pela analogia entre o personagem chamado de João Romão e o personagem da obra " O Cortiço" de Aluísio de Azevedo, considerada o símbolo máximo do Naturalismo no Brasil. Assim, com os personagens dividindo o mesmo nome, Júlia Lopes propõe uma reflexão acerca dos papéis masculinos que se correspondem de maneira tão similar em diferentes circunstâncias.

Muitos contos de Júlia Lopes de Almeida apossam-se do mundo da imaginação e se utilizam da mesma matéria que constitui os sonhos, embalando a narrativa em misticismo e profundidades sobrenaturais que beiram o plano metafísico. Pode-se perceber claramente o impacto da vanguarda europeia surrealista em suas obras, intrincadas de fartas questões existenciais. Em "A casa dos mortos", com o intuito de se aproximar de um relato e atribuir pessoalidade ao conto, Júlia Lopes escreve em primeira pessoa sobre sua ida até uma casa desconhecida em busca de sua mãe morta. Há o predomínio de descrições saudosistas em uma atmosfera onírica, cenário em que se desenrola uma morte figurada e personificada, que reitera de modo conclusivo, a certeza de que o amor perdura na alma. A temática da morte pode ser vista outrossim, no conto "Ondas de ouro", em que a lembrança da filha morta é evocada de forma simbólica pelo pai. Afastando-se da morbidez, no entanto preservando as nuances do jardim fértil da imaginação, no conto "A alma das flores", o personagem tem seu campo de visão e de entendimento ampliados pelos sentidos e pelas figuras que sua mente cria, pois ao invés de visualizar um jardim com flores comuns, ele contempla um canteiro em que as rosas transfiguram-se em mulheres. Combinando variadas sensações, a brincadeira sinestésica confere ao texto, traços de sentidos e texturas que estimulam o imaginário.

O apreço por temas universais e instigantes aos seres humanos é outra característica que se destaca. Ao analisar o conto "E os cisnes", a temática da loucura é colocada em posição relevante, sendo que o título do conto fornece os indícios sobre o motivo da condição de psicose. Aqui também percebe-se o diálogo da narrativa de Júlia Lopes com Machado de Assis, com especial ênfase à obra "O Alienista", na qual o escritor brasileiro descreve o hospital de loucos (Casa Verde) sob a gestão do médico responsável Dr. Bacamarte. Pode-se estabelecer ainda, uma conexão literária com a obra "Cemitério dos vivos", do escritor Lima Barreto, o qual relata a trajetória de Vicente Mascarenhas e sua passagem pelo Hospício do Rio de Janeiro, sendo considerado um romance inacabado com traços autobiográficos e uma sinédoque do Brasil. Outro ponto importante na obra de Lima Barreto, que explica muitas atitudes e pensamentos do personagem central, é o alcoolismo. O mesmo tema é abordado por Júlia Lopes no conto "A primeira bebedeira", que é inclusive dedicado ao ultrarromântico Álvares de Azevedo, denotando um mau costume por parte do mesmo e da legião de escritores liderada pela intensidade de uma vida extrema, porém doentia e breve. Já "A nevrose da cor" é um conto bastante diferente dos demais, sendo ambientado no Antigo Egito. A história conta a obsessão de uma princesa pela cor vermelha e sua insistência em nutrir-se de sangue. O termo "nevrose" pode ser substituído por "neurose" e indicar um distúrbio psicopatológico de princípio de loucura, visto que seu fervor rubro a conduz rumo a seu próprio fim, o que se compara de modo análogo à fragmentação do eu em função da perda de identidade que a loucura batalhou para apreender.

Júlia Lopes de Almeida nos convida a uma imersão literária que mescla os aspectos mais íntimos do ser humano com os ecos sociais que sua obra carrega e pretende emitir. Entre os trinta contos que compõem a obra "Ânsia Eterna", a condição da mulher ascende como a mais digna temática a ser retratada, o que se caracteriza como uma ousadia diante do terreno das letras, pertencente por convenção aos homens. Muitos dos contos aludem à cegueira dos personagens, tal aspecto de sua escrita constitui uma perfeita metáfora acerca da invisibilidade feminina, o tema é pincelado de forma sutil em algumas passagens, já em outras, a recusa do olhar e a indiferença são tratados como o ponto principal de sua narrativa, que frisa a necessidade de desconstrução e a inclusão da mulher em esferas sociais de grande valor. Tal feito é ainda amplamente aguardado no século XXI, assim como o seu reconhecimento como exímia escritora de seu tempo, a luta se alonga, e a ânsia é eterna.

Flora Fernweh
Enviado por Flora Fernweh em 31/01/2022
Reeditado em 01/02/2022
Código do texto: T7441787
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