Kamchatka – um ato de resistência

Argentina, março de 1976. Os militares tomam as ruas. A presidente Isabelita Perón é derrubada pelas forças armadas em um golpe de Estado. Com um discurso de reorganização nacional, opositores são presos, torturados e barbaramente assassinados nos porões e cárceres da ditadura. Aqueles que acreditavam que todas as maneiras de levar essa história para os cinemas já haviam sido esgotadas estão enganados.

Kamchatka (2002) é um desses filmes repletos de dualidade e simbolismo. Longe de ser apenas mais um longa-metragem politizado sobre as ideologias revolucionárias de esquerda. Antes de tudo, ele foge à tônica de outros obras, de diferentes nacionalidades, que abordam a violência dos regimes autoritários, como Batismo de sangue, O último rei da Escócia, Visões e O que é isso, companheiro?.

Desta vez, é o olhar de uma criança de dez anos que narra toda a trama. Nesse ponto, o filme flerta com o brasileiro O ano que meus pais saíram de férias. E as similaridades não param por aí. O filme do cineasta argentino, Marcelo Piñeyro, conta o drama de uma família que precisa se refugiar do regime militar em um sítio no interior do país catalão.

Daí, pai (Ricardo Darín), mãe (Cecilia Roth), os filhos Harry (Matías Del Pazo) e Baixinho (Milton De La Canal) vivem um cotidiano conturbado pelo medo, angústia e ansiedade. Momentos de alegria e descontração também acompanham todo o desenrolar da história. Até aqui, o único problema mais evidente é a maturidade apresentada pelo narrador, muito superior para um menino da idade dele. Mas nada que não possa ser perdoado.

Na tentativa de retomar os rumos da vida e, mesmo assim, manter a identidade em segredo, a família cria um jogo entre fantástico e real. A imaginação divide as tomadas com os afazeres cotidianos. Cozinhar, arrumar a casa, ir para a escola e cortar lenha se transformam em um ato de resistência. Em pelo menos três momentos, a interação entre os dois mundos pode ser associada à mudança de rumo no longa.

Primeiro, os integrantes da família adotam nomes secretos relacionados à série de ficção científica estadunidense Os Invasores. Segundo, Harry (narrador) encontra um livro sobre a vida do escapista Houdini, e sonha em um dia realizar as peripécias e façanhas do mestre húngaro. Terceiro, as intermináveis batalhas travadas pelo pai e Harry no tabuleiro de T.E.G. (nosso War), trabalham a tensão do período de semi-reclusão e as lições de vida estampadas no filme.

As cenas de violência explícita, tiros, derramamento de sangue e espancamento, comuns em outros trabalhos que abordam a questão, desaparecem. O enredo é construído de forma linear, sem muitas novidades históricas, mas extremamente instigante e inteligente. A grande novidade de Kamchatka é a forma como o drama foi contado por Piñeyro.

Essa afirmativa fica evidente em um dos trechos marcantes do filme. Harry faz perguntas sobre a vida de Lucas, estudante interpretado por Tomás Fonzi, que se junta à família no sítio. A cada questionamento inconveniente, Lucas responde com tom de brincadeira à Harry: “Pergunta incorreta”. Mesmo trabalhando com uma temática sombria e corriqueira no mundo cinematográfico, a leveza da abordagem surpreende. A Ditadura Militar poderia ser apenas o plano de fundo escolhido pelo roteirista, mas a construção profunda e psicológica das personagens ignora essa afirmação.

Com fotografia singela, Kamchatka é uma obra forte e comovente. A cor verde dos campos predomina em quase todas as tomadas. Um belo contraponto ao amarelo vivo do carro da família, que passeia e se esconde na paisagem. As cores da esperança, de um futuro melhor, promissor e repleto de alternativas de felicidade, em um país livre, aparecem sempre após as gravações noturnas e, vice-versa.

Kamchatka não propõe inovações lingüísticas e de formato, mas exibe apuro técnico e detalhado em toda a construção da obra. A pesquisa de figurino, o acabamento das cenas, os cortes e passagens dão ritmo a uma história construída em uma locação provinciana da Argentina, que em momento algum remeteria aos horrores vivenciados pelos moradores das grandes cidades no período.

Em uma das tomadas dentro de casa, Harry, contrariando as ordens dos pais de não ligar para ninguém, telefona para o amigo Bertuccio (Nicolas Cantafio). Nesse momento, acontece o mais belo jogo de câmara da montagem. A experiência de focar o primeiro plano e tirar o foco do segundo, e inverter esse recurso, explicita o pensamento do garoto. A saudade do amigo e da antiga relação. Curioso, ambos os meninos assistiam ao mesmo episódio de Os Invasores no momento do truque.

Kamchatka é um filme de superação, resistência e busca pela liberdade. Um novo olhar de subversão sobre valores estabelecidos por uma elite dominante. Os laços de amizade são fortalecidos pela entrega e aprendizado. Recorrendo ao clichê das lições de vida, o filme deixa evidente que é possível acreditar nos sonhos e, para realizá-los, escolhas decisivas farão parte da trama.

FICHA TÉCNICA

Titulo Original: Kamchatka

Título em Português: Kamchatka

País: Argentino, 2002

Diretor: Marcelo Piñeyro

Gênero: Drama

Duração: 105 minutos, Cor

Branco Di Fátima
Enviado por Branco Di Fátima em 30/06/2010
Código do texto: T2350974